José Lopes
Banir gatos
Erro – Ter perseguido e matado os bichanos durante a peste negra.
Quem – Praticamente toda a Europa, por influência de crendices.
Quando – Século 14, durante a baixa Idade Média.
Consequências – Aumento da população de ratos, que eram os principais responsáveis pela disseminação da peste.
No século 14, baixa Idade Média, a Europa foi devastada pela peste negra. Estima-se que algo entre um terço e metade da população tenha morrido. Alguns dos motivos para tamanha catástrofe – além da falta de antibióticos, que nem existiam ainda – eram a sujeira e o esgoto a céu aberto que predominavam nas cidades e nos povoados. O lixo era jogado na rua, a água não era tratada e o contato com animais domésticos era próximo, mas muito próximo mesmo. Nas noites mais frias de inverno, por exemplo, era comum reservar um espaço na cama para uma cabra ou uma ovelha. Ratos estavam por toda parte, infestando navios, atacando celeiros e devorando as rações dos exércitos em pleno campo de batalha. E eram eles que desempenhavam um papel decisivo na disseminação da epidemia.
O agente causador da doença era a bactéria Yersinia pestis, que começou contaminando marmotas na Ásia Central. As pulgas que picavam esses bichos mordiam também os mercadores que transitavam pela movimentada Rota da Seda, que ligava a Europa ao Extremo Oriente. Em algum momento, a bactéria começou a contaminar também os ratos europeus. E foi então que a epidemia começou a se alastrar mais rápido que um foguete.
Clima de medo
Gatos seriam uma boa numa situação como essa, não seriam? Afinal, eles são predadores naturais e obstinados de ratos. Podiam não ser o remédio, mas certamente ajudariam a controlar a disseminação da peste. O problema é que os felinos andavam em falta, apesar da abundância de alimento. Tudo porque os bichanos – especialmente os negros – eram associados à bruxaria, talvez por seus hábitos noturnos, sua estranha agilidade ou seu jeitão independente.
Muita gente na Idade Média considerava os gatos verdadeiras encarnações do capeta. Como o povo já andava estressado, achando que a epidemia tinha sido mandada por Deus, a maioria achou por bem não dar mole a quem flertava com o demônio. Mulheres consideradas bruxas pelos mais variados motivos eram discriminadas, perseguidas, muitas vezes mortas e incineradas. Os felinos, coitados, acabaram entrando na mesma roubada.
O clima de medo era tamanho, nessa fase da Europa, que levava as pessoas a acreditar nas histórias mais absurdas. Uma das crenças era a de que demônios assumiam a forma de gatos para transar com as bruxas, suas servas na terra. Milhares de felinos acabaram indo parar na fogueira ou tiveram o couro transformado em tamborim medieval por causa de crendices desse tipo. Sorte dos ratos, é lógico. Sem precisar correr dos gatos, tinham muito mais tempo para se multiplicar – e espalhar o terror da peste negra com mais velocidade ainda.
DOIS LADOS DA MESMA MOEDA
• A vocação dos gatos para caçar camundongos era admirada pelos antigos egípcios, que confiavam aos bichanos a missão de evitar que as colheitas fossem atacadas. Os europeus da Idade Média, no entanto, preferiram acusá-los de heresia.
• Na vila medieval que deu origem a Ypres (Bélgica), os gatos eram atirados do alto de uma torre em todo início de primavera, para simbolizar a expulsão dos maus espíritos. A tradição permanece, mas com gatos de pelúcia no lugar dos de verdade.
Atalho para a morte
Outra grande burrice da Idade Média foi o autoflagelo, que fazia das pessoas vítimas ainda mais fáceis para a peste
Sem a compreensão moderna sobre a existência de micróbios ou a transmissão de doenças, era natural que a população europeia da Idade Média enxergasse em catástrofes, como a peste negra, a própria ira de Deus. E foi por esse motivo que, além de exterminar os gatos, a Europa cristã cometeu outro erro perigoso em tempos de epidemia: rendeu-se ao autoflagelo. “As pessoas se feriam com chicotes e instrumentos metálicos variados [alguns inventados especificamente para esse fim] como forma de penitência”, explica o biólogo americano Robert Wyman, da Universidade Yale. “Eram os chamados flagelantes.” Debilitadas, essas pessoas eram presas ainda mais fáceis para uma série de doenças, inclusive a peste negra. E como tinham a mania de peregrinar pelas vilas e cidades europeias, para convencer os outros de que o autoflagelo era a solução, acabaram virando outro agente transmissor da epidemia. “Elas levavam a peste de lugar para lugar”, diz Wyman. “Achavam que a penitência iria protegê-las da peste negra. Na verdade, estavam abrindo um caminho para que a morte chegasse mais rápido.”