Biólogo , Paul Ewald
O biólogo americano conhecido como o Darwin do mundo dos germes diz que vírus e bactérias causam ataques cardíacos e câncer
O inventor grego Arquimedes descobriu o princípio da hidrostática numa banheira. Já o biólogo Paul Ewald teve o seu grande insight científico numa privada improvisada num acampamento em Kansas, Estados Unidos, em 1977. Ewald estudava beija-flores quando foi alvo de uma forte diarréia. O desarranjo o levou a pensar sobre como aplicar o princípio da evolução de Darwin ao microorganismo que o estava atacando. Sua pergunta era: a diarréia é uma estratégia do germe para proliferar pela água e contaminar mais gente? Ou uma defesa do corpo para expulsar esse invasor de uma forma pouco confortável?
Suas especulações sobre a evolução dos micróbios foram publicadas num artigo em 1980 e, desde então, ele trocou o estudo de pássaros pelo de vírus e bactérias – o que lhe garantiu a alcunha de “Darwin do mundo dos germes”. Ewald rebate dizendo que Darwin também é o Darwin dos germes. “A seleção natural foi sempre usada apenas para explicar a evolução de animais como zebras e elefantes, como se não fossem válidas para vírus e bactérias”, diz o biólogo. “O irônico é que são os seres microscópicos que mais causam danos ao homem.”
Para Ewald, o estudo da evolução desses seres vai revolucionar a prevenção de doenças infecciosas. “Alterando o ambiente e os meios de propagação desses organismos, podemos fazer com que as espécies menos danosas ao homem prevaleçam”, diz o biólogo. “Isso vai mudar a pesquisa médica no futuro.” No seu mais recente livro, Plague Time (“Tempo de pragas”, inédito no Brasil), ele diz que os principais vilões do câncer e de doenças cardíacas são os vírus e as bactérias. “Há cada vez mais evidências de que as doenças crônicas não são genéticas e sim fruto da ação de microorganismos”, diz Ewald, que falou à Super pelo telefone.
Super – As causas do câncer e de problemas cardíacos são atribuídas aos genes e ao estilo de vida do paciente. Como você pretende provar que vírus e bactérias são os principais vilões dessas doenças?
Várias pesquisas nos últimos dez anos indicam que diversas doenças que eram atribuídas à genética ou ao estilo de vida do paciente são, na verdade, resultado da ação de vírus e bactérias. A úlcera é um bom exemplo. Até há pouco tempo, qualquer médico lhe diria que a principal causa da úlcera era o estresse, a alimentação e outros fatores. Sabe-se hoje que quase a maioria das úlceras no duodeno são causadas pela bactéria Helicobacter pylori – e em 90% dos casos ela pode ser curada, em menos de um mês, com antibióticos. Atualmente, há estudos que relacionam doenças cardíacas à bactéria Chlamydia pneumoniae. O mesmo ocorre com diversos tipos de câncer, como o cervical, que está sendo ligado ao vírus HTL V-1. E quanto mais estudamos, mais aumenta o número de doenças ligadas aos microorganismos.
E por que a medicina ignorou por anos o papel dos germes nessas doenças?
Por várias razões. Uma delas é que as pessoas tendem a esperar sintomas evidentes de doenças causadas por vírus e bactérias. Ou seja: elas associam a ação do microorganismo a uma série de sintomas para identificar e classificar a doença, como na catapora, no sarampo, na rubéola, entre outras. Mas essa classificação não se aplica facilmente às doenças crônicas como, por exemplo, as doenças cardíacas – em que os sintomas podem demorar para aparecer. Esse foi um dos motivos que desencorajaram as pessoas, nas décadas de 1960 e 1970, a tentar ligar essas doenças crônicas à ação de micróbios. Por outro lado, desde 1910 o pesquisador Peyton Rous já havia provado que galinhas infectadas com o vírus conhecido hoje como sarcoma de Rous desenvolviam câncer. De certa forma, acho que a medicina disse ok, isso é válido para os animais, mas o câncer humano tem outras causas. O engraçado é que, hoje, os médicos acham curioso que a principal causa da úlcera tenha permanecido por tanto tempo associada ao estilo de vida, mas continuam resistentes em admitir novos dados que mostram essa relação em outras doenças.
No momento em que o mapeamento dos genes humanos está praticamente completo, você não se sente nadando contra a corrente…
Não. Até mesmo porque não estou dizendo que os fatores genéticos e ambientais não têm importância e sim que diversas doenças crônicas que hoje são atribuídas a esses fatores são, na verdade, causadas por microorganismos – mesmo que essa relação não seja tão evidente. Esses organismos agem como um pedaço de arame solto no motor de um carro. O automóvel pode andar sem problemas por um tempo, mas o fio de arame está lá causando problemas. Alguns organismos atuam dessa forma em nosso corpo. Eles danificam lentamente nossas células aumentando as chances de câncer e de outras doenças agindo na surdina. Estudando a evolução desses seres, poderemos favorecer as espécies que causam menos danos ao homem e eliminar as mais danosas.
Então, é possível usar Darwin para controlar as doenças?
O princípio da seleção natural de Darwin define como todos os organismos vivem e se modificam com o tempo, seja um elefante ou um vírus. Acho que ninguém discorda disso. Mesmo assim, é surpreendente que até há pouco tempo ninguém tivesse pensado em usar a evolução para controlar doenças. Modificando o ambiente e bloqueando alguns meios de transmissão é possível favorecer algumas espécies em detrimento de outras.
Você tem um exemplo?
Um dos melhores exemplos naturais inclui o Brasil e está ligado ao vibrião do cólera. O cólera chegou ao Peru em 1991 e, em dois meses, se propagou por países vizinhos como Brasil, Chile e Equador. Em um ano, estava em quase toda a América Latina. Mas, dependendo das condições do tratamento de água do local, verificamos que a linhagem do vibrião mudava. No Chile, onde a água era melhor tratada, prevaleciam os de linhagem menos tóxica. No Peru, no Equador e em algumas regiões do Brasil, onde eles podiam se propagar mais facilmente pela água, prevaleciam as linhagens mais danosas.
Por que isso ocorre?
Há uma crença tradicional de que qualquer organismo tem uma tendência a coexistir pacificamente com o seu hospedeiro – afinal, se um vírus provocar a morte do seu hospedeiro, ele não poderá se reproduzir. Mas isso nem sempre acontece. Os organismos que encontram outros meios para se propagar – seja pela água contaminada seja por um mosquito – não precisam poupar o seu hospedeiro. Ou seja: onde há espaço para eles se espalharem pela água ou por outro meio, como no Peru e no Equador, prevaleceu a linhagem mais tóxica do vibrião do cólera durante a década de 90. No mesmo período, no Chile, onde a água é bem tratada, prevaleceu o tipo menos danoso. As diferenças de linhagem podem ser encontradas também no Brasil, dependendo da qualidade da água em cada Estado – a conclusão é que, se você pode controlar a transmissão pela água, você também pode controlar o grau de periculosidade do organismo.
Esse mesmo raciocínio pode ser usado para combater a Aids?
Acho que não poderemos eliminar a doença, mas certamente poderemos torná-la menos devastadora. As evidências mostram que as variantes do HIV mais nocivas estão nos países onde há mais transmissão por via sexual. No Senegal, onde a potência de transmissão pelo sexo é baixa, prevalece o HIV2, que é mais ameno. Olhando para as diferenças de padrões do HIV ao redor do mundo você encontra suporte para sustentar a idéia de que bloqueando alguns canais de propagação desses organismos você favorece a prevalência das variantes menos nocivas ao homem. Os benefícios de programas do uso de camisinha são maiores do que as pessoas imaginam. Eles não apenas evitam a transmissão da doença como alteram a própria evolução do HIV. No futuro, o estudo desses seres sob o ponto de vista da biologia da evolução deve revolucionar a pesquisa médica.
Frase
“Estudando a evolução de vírus e bactérias poderemos tornar o HIV menos nocivo ao homem”