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Cachorros, por que eles viraram gente?

Ele escolheu deixar a natureza para viver entre nós. Aprendeu a falar com a gente, enganou nossos instintos e virou nosso filho. Só tem um problema: isso está matando o nosso melhor amigo

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h31 - Publicado em 24 jan 2011, 22h00

Alexandre Versignassi, Bruno Garattoni, Emiliano Urbim, Karin Hueck, Larissa Santana

Fiquem tranquilos, diz a mulher. “Nesta creche cuidamos das crianças com muito carinho. No primeiro dia, cada uma ganha uma mochila e uma agenda para observações sobre qualquer problema. Temos um quarto de recreação e um berçário, onde as crianças ficam separadas de acordo com o tamanho. Os pais podem ver tudo pela internet, por webcams. E não usamos nenhuma gaiola. Deixamos as crianças soltas, viu?” É assim que a Pet do Parque, uma creche de São Paulo dedicada exclusivamente a cães, se apresenta. Ali, eles são tratados como filhos. Algo, aliás, bem comum. Até 80% dos cachorros são considerados membros da família, 35% deles dormem na mesma cama que o dono, e 30% têm festinha de aniversário todos os anos. Sim, tratamos nossos cachorros como se eles fossem nossos filhos. E isso faz todo o sentido. A ciência diz que eles despertam quase tanto amor e carinho quanto um bebê. Mas tanta afinidade está transformando profundamente os cachorros – para o bem e para o mal.

Um caso de amor

Nós amamos crianças e cães da mesma forma. É o que diz um estudo feito no Japão. Ele indica que a chave para isso está num hormônio, a ocitocina. A ocitocina é o hormônio que desperta a sensação de apego por outras pessoas e é liberado, por exemplo, nas mulheres durante o parto. Na experiência feita pelos cientistas, cada voluntário falava sobre sua relação com o cachorro e depois brincava com ele durante meia hora. Enquanto isso, os cientistas contavam quantas vezes, e por quanto tempo, os cachorros fixavam o olhar em seus donos – uma forma de comunicação que nós, humanos, usamos com pessoas queridas. Ao final do exercício, faziam um exame para medir a ocitocina no sangue dos donos. Adivinhe só no que deu. As pessoas mais ligadas aos cachorros tinham os maiores níveis de ocitocina. “Não podemos dizer com certeza se o amor que sentimos pelos cachorros é o mesmo que temos por humanos, mas a pesquisa indica que sim, isso é possível”, afirma Takefumi Kikusui, da Universidade de Azabu. Não só cuidamos de nossos cachorros como se fossem nossos filhos mas também os amamos de forma muito parecida.

Amor do tipo de exibir foto do cão na mesa de trabalho, de sentir saudade, de passar noites em claro se o bichinho não estiver bem. Tem gente que faz testamento para o cachorro (como a bilionária americana Leona Helmsley, que deixou sua fortuna de US$ 12 milhões para a cadelinha Trouble), e há até quem queira se casar com ele: o site marryyourpet.com oferece cerimônias e certidões de casamento. “Oliver é meu salvador. Sem ele, eu não acreditaria no amor”, diz Carolyn, uma mulher que está casada com seu cãozinho há 5 anos. São maluquices, mas confirmam uma tendência: nossa ligação emocional com os cães está aumentando. “Os cachorros estão se tornando mais e mais nossa fonte de apoio”, diz James Serpell, biólogo da Universidade da Pensilvânia, nos EUA. “A tendência é que eles ocupem o vazio deixado por casamentos desfeitos e pela demora em ter filhos, muito comum hoje em dia.” Isso é sentido na prática: pessoas separadas e viúvas consideram o cachorro mais importante do que a própria família – para elas, os animais fazem o papel de amigos próximo ou de filhos. Trinta e quatro por cento das mulheres e 23% dos homens americanos dizem que seu cãozinho seria o par ideal, se fosse humano. E 60% dos donos não abriria mão de seu cachorro depois do fim de um namoro.

Mas por quê, entre os bilhões de espécies que existem no planeta, justamente o cachorro ganhou o nosso coração? A resposta é simples: porque ele nos entende. Cães são animais muito bem qualificados para interpretar gestos e sinais humanos. Cientistas chegaram à conclusão de que eles entendem o que um dedo apontado quer dizer, e sabem seguir uma indicação humana. O teste é simples: basta esconder um pedaço de comida debaixo de dois potes e dar a dica para o animal. Quando a pessoa aponta com o braço, com a perna ou olha fixamente para o lugar, o cão entende e escolhe o pote certo. Pode parecer banal, mas lobos, gatos e macacos não passaram nesse teste. Só os cachorros. “Os cachorros imitam naturalmente ações humanas e podem ser treinados para milhares de tarefas diferentes com poucas instruções”, diz Ádám Miklósi, biólogo da Universidade Eötvös, na Hungria, e especialista em inteligência canina. Em 2006, ele conduziu um estudo provando que os cachorros não apenas sabem nos imitar como também preferem fazer isso a tomar suas próprias decisões. Por isso é tão fácil educá-los para conduzir cegos, comandar ovelhas ou dar a patinha – eles adoram ter alguém que lhes diga o que fazer.

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Rico, um border collie que mora na Alemanha, é o melhor exemplo disso. Ele entende mais de 200 palavras diferentes. Mesmo se o seu cachorro não for lá um Einstein (ou um Rico), é bem provável que ele saiba o que você está dizendo. E vice-versa. Um estudo publicado no Journal of Comparative Psychology revelou que, em mais de 60% dos casos, as pessoas sabem diferenciar se o latido de um cachorro é agressivo, desesperado, feliz, brincalhão ou medroso. Mesmo quem não tem cachorro é capaz de traduzir latidos. Isso porque nascemos com a habilidade de interpretar esses sons, que o cachorro desenvolveu só para se comunicar conosco (seu ancestral, o lobo, praticamente não late). Isso está escrito nos genes dele. Por quê? Porque de certa forma ele é nosso filho mesmo. Darwin vai explicar.

De onde eles vieram

Fim da última Era Glacial, 15 mil anos atrás. O Homo sapiens começava uma vida nova. Depois de passar mais de 100 mil anos vagando por todo canto, em busca de animais para caçar e vegetais para catar, aprendeu a plantar. Era o início da agricultura. Agora os homens se juntavam em vilas. Eram as primeiras cidades do mundo. E, como toda cidade do mundo, elas eram rodeadas por lixo: restos de comida, frutas podres, ossos…Mas o que a gente via como dejeto era almoço grátis para vários bichos. Entre os ratos e baratas que se aproveitavam dos restos estavam os lobos – que até hoje frequentam lixões, tanto que os fotógrafos de natureza selvagem vão a esses lugares quando querem conseguir imagens dos animais (tirando os detritos do enquadramento, claro). Só que o lobo tende a fugir quando pessoas se aproximam. Um comportamento antissocial que não ajuda. Desse jeito, o bicho não conseguia ficar muito tempo perto de uma vila para comer nossas sobras. Isso até a lógica da evolução entrar em cena.

Os poucos lobos que nasciam sem ter medo de gente começaram a se alimentar melhor, já que não fugiam toda hora. Quem come melhor fica mais saudável, vive mais e faz mais sexo. Quem faz mais sexo deixa mais descendentes, passa seus genes para a frente. De carona, vão as características que fizeram o animal ter mais sucesso que os outros. No caso dos lobos comedores de lixo, a característica mais vital era uma só: não ter medo de gente.

Com o tempo (pouco tempo), já havia duas classes de lobos: os totalmente selvagens e os que viviam perto de pessoas, e que ficaram dependentes das aglomerações humanas para sobreviver. Além de ficarem mais amigáveis, esses bichos foram ganhando uma aparência bem distinta da dos lobos. Estes últimos têm corpo forte e cérebro relativamente avantajado. São duas coisas essenciais para um predador que come búfalos e prepara estratégias de caça em grupo, mas são uma bagagem inútil para um bicho que se profissionalizou em comer restos. Corpo e cérebro grandes eram desvantagem para ele, já que exigem bastante energia para funcionar. Muita energia significa muita comida (como nós, cabeçudos, sabemos bem). E quem precisava de muito mais que os outros para viver acabava morto de fome. Roer osso, afinal, é bem menos nutritivo que abocanhar um filé de bisão. Quem levou mais vantagem, então, foram os mais mirrados e de cérebro menor.

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E a transformação desse novo bicho não parou por aí. Continuou firme, e agora se aproveitando de uma fraqueza nossa: adorar filhotes. Qualquer filhote de mamífero parece agradável para nós. Pode olhar no Google Images: até os morcegos nenéns são uma fofura só. Os olhos grandes e os traços delicados dos recém-nascidos de outras espécies nos fazem identificar neles as características dos nossos bebês. Afinal, todos nós, mamíferos, temos um único tataravô, um ancestral comum parecido com um rato que viveu há 60 milhões de anos. Já que somos praticamente irmãos de qualquer coisa que dê de mamar, gostamos naturalmente dos filhotes deles.

E eles de nós também. Se você pegar para criar um filhote de leão, de urso ou de lobo, ele vai ser uma graça no início da vida; tão brincalhão e inofensivo quanto uma criança humana. Por isso mesmo muita gente cria filhotes de animais selvagens como bicho de estimação. O problema é quando ele virar bicho grande: sempre vai parecer (e ser) algo ameaçador. Você não vai querer um leão adulto no seu apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando você chegar. Nem ele vai querer estar lá.

Mas aqueles lobos amigáveis queriam. Então aconteceu com eles uma coisa inédita no mundo animal. Os que tiveram mais sucesso – os mais bem alimentados, mais sexualmente ativos e com mais decendentes – foram os que continuaram com jeitão de filhote mesmo depois de adultos. Eram, afinal, os que mais agradavam os humanos. Nós enxotamos os lobos mais ferozes e paparicamos os mais dóceis, que passaram a receber comidinha na boca a vida inteira. Assim eles enganaram nossos instintos.

E suprimiram os deles: essa nova espécie, que 15 mil anos depois ganharia o nome de Canis familiaris, se separou totalmente do Canis lupus (o lobo propriamente dito). Desaprendeu a caçar para comer e se especializou em ganhar a comida de seres humanos. Em vez de formar matilhas, preferiu virar membro das nossas famílias. Desenvolveu o latido para chamar nossa atenção. E os instintos que sobraram foram os que parecem mais agradáveis para a gente. Por exemplo: sabe quando o cachorro vai lamber a cara do dono? É porque as lobas regurgitam comida para seus filhotes. Os cachorros não comem da boca de suas mães, mas mantiveram esse traço de comportamento selvagem-infantil com os humanos, já que para nós a coisa parece uma tentativa de beijo – não de comer vômito. Bom, na verdade sobraram mais instintos de lobo. Para caçar, por exemplo, o lobo combina várias habilidades inatas, que estão escritas em seus genes: procurar a presa, cercá-la, matar e trazer carne para o resto da matilha. Cada uma é um instinto independente. E todos precisam estar em sintonia para a caçada dar certo. Mas os cães não precisam caçar. Eles conseguem sua comida com as pessoas. Então alguns dos genes que eles herdaram dos lobos acabaram desligados. É por isso que alguns cães adoram perseguir e intimidar outros animais, por exemplo, mas não têm o instinto de matá-los. Isso também explica o comportamento daqueles cachorros que ficam correndo atrás dos carros, mas não sabem o que fazer quando um automóvel para.

À primeira vista, essas crises de identidade podem parecer inúteis. Mas aprendemos a usá-las a nosso favor. Primeiro na caça: nada mais eficiente para o homem pré-histórico que sair para caçar com um bicho que sabe perseguir presas como se fosse um lobo, mas que, em vez de comê-las, só “traz a carne de volta para a matilha” – no caso, para os homens.

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Por volta de 9000 a.C. surgiria aquela que provavelmente é a maior revolução na história da economia mundial até hoje: a criação de gado – que permitiu o acesso a quantidades antes inimagináveis de comida. E os instintos tortos dos cachorros foram fundamentais nesse mundo novo. Os que tinham mais jeito para cercar presas foram usados para conduzir rebanhos. Os mais agressivos eram ensinados a proteger as ovelhas e bois como se fossem sua própria matilha, defendendo-os inclusive de lobos.

A partir daí, essas habilidades viraram o grande critério de seleção entre os cães – os que mais se davam bem entre as pessoas eram os que trabalhavam melhor em suas áreas. Com mais comida e abrigo que os outros, esses eram os que passavam seus genes adiante com mais facilidade. Depois o homem acelerou o processo por conta própria, colocando os indivíduos mais eficientes (ou mais elegantes ou mais fofos) para se reproduzir entre si. Isso dividiu a espécie dos cães em tipos bem distintos, coisa que hoje chamamos de “raça”. Na Roma antiga, por exemplo, já havia raças de cães de guarda, de pastores, de cachorrinhos de colo… E o bicho deixava definitivamente de ser mais um animal para se tornar membro da humanidade. Mas a história dos cachorros como os conhecemos hoje ainda nem tinha começado.

Linha de montagem

A Revolução Industrial pode ter trazido grandes mudanças para a humanidade, mas revolucionou mesmo a vida dos cães domésticos. Antes de ser pai do cachorro, o homem era seu patrão. “Até o começo do século 19, a maioria dos cachorros tinha de trabalhar para viver”, conta Lisa Peterson, porta-voz do American Kennel Club e especialista em história canina. Guiar ovelhas, guardar a casa, puxar trenós: era a função que garantia a ração. Mesmo os caçadores especializados da aristocracia (hounds de raposas, lobos, veados, javalis, lontras, além de farejadores e perseguidores) precisavam mostrar serviço. E assim foi até que o êxodo rural, a migração em massa do campo para as cidades, desequilibrasse as coisas. “Na Inglaterra, principalmente, muitos cachorros ficaram ‘desempregados’ “, conta Lisa. Mas isso não levou a uma extinção em massa ou a um boom de cães selvagens. O que aconteceu foi uma nova peneira: assim como na Pré-História os lobos mais gentis haviam entrado nas aldeias, agora eram os cachorros mais dóceis e adaptáveis que entravam nas primeiras metrópoles. Livre das obrigações da lida rural, os cães passaram a usufruir de mimos, guloseimas e passeios. Transformado em bibelô e símbolo de status, o cachorro deixou de ser avaliado pela sua função, e passou a ser pela aparência.

Os primeiros dog shows, mistos de olimpíadas e concursos de beleza, foram realizados na Inglaterra na década de 1830 – alguns especialistas insinuam que seu público vinha das lutas de cachorro, proibidas em 1835. Como os prêmios eram divididos por raça (nessa época, as reconhecidas eram duas dúzias), havia um estímulo para a criação de novas raças, que abocanhassem novos prêmios. E logo essa demanda ultrapassou o mundinho das passarelas: ter um cachorro diferente em casa passou a ser um símbolo de status. Partindo da matriz britânica, de 1873, pelo mundo inteiro surgiram kennel clubs promovendo o desenvolvimento de variedades regionais. A International Encyclopedia of Dogs (“Enciclopédia Internacional dos Cães”, ainda sem versão em português) traça esse big-bang: as cerca de 20 raças existentes em 1800 dobraram para 40 em 1873, e chegaram a 70 na 1ª Guerra Mundial. Hoje, segundo a Federação Cinológica Internacional, que estabelece os padrões das raças, há cerca de 400, dos mais diferentes tamanhos, cores e formas. Mas essa busca desenfreada pela variedade, e pela beleza, acabaria levando a vários problemas.

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Zack tem 2 anos de idade. Ele é um cachorro bonito e obediente, que adora pessoas – os animais da sua raça, boxer, costumam ser extremamente so-ciáveis. Mas, quando conhece gente nova, Zack não age como um cão normal. Em vez de pular e latir, ele cai no chão e começa a tremer, babar e se contorcer incontrolavelmente. Quando a convulsão termina, solta um ganido terrível. Ele tem epilepsia, doença que afeta até 5,7% dos cães – taxa 8 vezes maior que entre os humanos. Já a pastora alemã Sybil, 7 anos, não tem nenhum problema de saúde; só não aguenta ficar sozinha. Quando isso acontece, começa a detonar a casa com uma fúria autodestrutiva – se não for contida, chega a quebrar os próprios dentes.

Talvez você não tenha visto casos tão extremos, mas certamente conhece algum cachorro que ficou cego, surdo, manco, morreu antes da hora por alguma doença… Mesmo com todo o esforço para aprimorar as raças, 1 em cada 4 cachorros carrega algum defeito genético sério. Eles sofrem mais problemas nos olhos e nos ossos e têm mais câncer do que nós. Como se isso não bastasse, também estão herdando as aflições humanas: um terço dos cachorros é gordo, e boa parte deles é neurótica. Segundo um estudo recém-publicado no Journal of Animal Behavior, 14% dos cães sofrem da chamada síndrome de separação, um distúrbio que causa dependência insuportável do dono. Isso significa que, percentualmente, o mundo tem 9 vezes mais cachorros doidos do que gente doida (1,5% da população humana tem algum transtorno mental). O que está acontecendo?

Dê uma boa olhada nas imagens da página ao lado. Essas rações não existem. Mas está vendo o “antes e depois” dos cachorros, bem no meio do pacote? É uma comparação real, feita a partir de dados fornecidos pelo Museu Suíço de História Natural, e mostra as transformações que duas raças sofreram nos últimos 100 anos. Ou melhor: as mudanças que nós impusemos a elas. Em apenas um século, reduzimos drasticamente o cérebro do buldogue e deixamos o bull terrier com crânio de dinossauro – alterações bizarras que, mesmo se viessem a ocorrer naturalmente, provavelmente levariam milhares de anos. Nós acabamos com o focinho do pug, reduzimos pela metade as patas do salsicha, turbinamos as dobrinhas do shar-pei e as orelhas do bassê… Tudo isso porque, a partir do século 20, os cães assumiram uma única função. Eles não têm de caçar, guardar nem pastorear; na maioria dos casos, só precisam ser bonitinhos para agradar aos donos. Para satisfazer a essa demanda puramente estética, os criadores foram selecionando os animais que possuíam as características desejáveis, e castrando ou matando os demais. Mas acabaram indo longe demais.

Isso porque, para acelerar o desenvolvimento das raças, os canis recorrem ao incesto. É considerado normal colocar indivíduos da mesma família para se reproduzir entre si – mãe com filho, avô com neta, etc. -, pois isso ajuda a reforçar as características dos animais. Se uma família de cães é orelhuda e seus integrantes só se reproduzem entre si, há chances enormes de que os descendentes também saiam orelhudos. Mas, a cada geração, todos os defeitos presentes no DNA da família são mantidos e reforçados, até explodir numa avalanche de doenças genéticas. É por isso que 63% dos golden retrievers têm câncer, 47% dos são-bernardos sofrem problemas nos quadris e 80% dos collies ficam total ou parcialmente cegos. Toda a população dessas raças se origina de um número pequeno de indivíduos, que tinha esses problemas. Existem mais de 500 doenças genéticas, que se espalham por praticamente todas as raças. É por isso que, mesmo se o cachorrinho da sua avó ficou cego, ela provavelmente não ficou: os cães têm 3 vezes mais doenças genéticas que nós.

E isso, além de todo o sofrimento emocional que provoca, também tem um custo: só nos EUA, o dinheiro gasto com cachorros quintuplicou nos últimos 5 anos – e as despesas que mais crescem são, justamente, com veterinário. Nossos cães nunca estiveram tão doentes. “Algumas raças estão num beco sem saída. Se elas não forem misturadas, poderão caminhar para a extinção”, acredita o biólogo Ray Coppinger, da Universidade Hampshire, nos EUA. Quer dizer: no futuro, todos os cães poderão ser meio vira-lata. Ou, no mínimo, bem diferentes do que são hoje.

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O Kennel Club inglês decidiu alterar os padrões oficiais de 209 raças para tentar reverter os exageros e driblar as falhas genéticas. O bassê não pode mais ter pele solta, o labrador não pode ser gordinho, o pastor alemão deve ter as patas traseiras maiores. E ficam terminantemente proibidos os cruzamentos entre cães da mesma família. As novas regras começam a valer em junho, mas só na Inglaterra, pois ainda não foram ratificadas pela Federação Cinológica Internacional. E, mesmo se a reforma pegar, seus efeitos só serão percebidos daqui a várias gerações de cães. Os 400 milhões de cães que existem pelo mundo necessitam de ajuda imediata – e para uma questão ainda mais urgente.

Cachorros-zumbis

Faça de conta que você é um cachorro. Seu dono pega a coleira e vocês saem para um passeio de manhã – se você tiver sorte, quem sabe à noite ele repita a dose. No resto do tempo, 98% do tempo, você fica no quintal ou enclausurado dentro de casa. Seu grande passatempo é tentar chamar a atenção do seu dono. Só que ele dificilmente tem tempo, ou energia, para brincar o tanto que você quer, até a exaustão. Ou você fica doido, ou começa a descontar a frustração fazendo o que não deve: rasga roupas e sapatos, faz xixi no sofá, come sabão, rosna enciumado quando alguém se aproxima do seu dono… Acredita-se que 42% dos cães tenham algum tipo de problema comportamental. E seus donos estão resolvendo isso do jeito moderno: com remédios. Já existem ansiolíticos, antidepressivos e até inibidores de apetite para cachorros. Nos EUA, primeiro país a liberar essas drogas, a coisa pegou. Em 2003, 25% dos cães americanos tomavam algum tipo de remédio. Hoje, são 77%. Mas será que é justo drogar nossos cachorros para que eles se adaptem melhor ao estilo de vida moderno, com pouco espaço e muita comida? “Muitos dos supostos ‘problemas’ são, na verdade, parte do comportamento normal dos animais”, afirma o veterinário Nicholas Dodman, da Universidade Tufts, nos EUA. O desenho animado 101 Dálmatas fez com que muita gente quisesse ter um cachorro dessa raça. Só que o dálmata foi criado, no século 19, para ser um cão de guarda: dominante, territorial e às vezes agressivo. “Isso contraria a expectativa das pessoas. Elas acham que os dálmatas são amigáveis como no filme da Disney”, afirma Dodman. Dopar os cachorros pode parecer cruel, mas não é totalmente inválido – os calmantes poderiam poupar muitos dos 1,5 milhão de cães que são sacrificados, todo ano, porque morderam alguém (e isso só nos EUA). Nossa relação com os cachorros já não é tão harmoniosa.

Ficamos tão acostumados a tratá-los como bebês que frequentemente nos esquecemos de algo primordial: o cachorro quer, e precisa, que mandemos nele. “Se o dono não sabe o que quer do cachorro, o animal não vai saber se comportar”, diz o especialista húngaro Ádám Miklósi. E cientistas dos EUA conseguiram provar o que sempre se suspeitou: o temperamento do cão é diretamente influenciado pela personalidade do dono. Donos carentes e/ou inseguros têm cães mais ansiosos e agressivos, independentemente da raça. Paparicar demais o cachorro, como é comum hoje em dia, também faz mal para a cabeça dele. “Quando o dono é muito apegado, aumenta o risco de que o cachorro desenvolva síndrome de separação”, diz Dodman, autor de vários estudos a respeito.

Em suma: para que o seu cachorro seja independente e feliz, você precisa ser. Para que ele tenha uma vida saudável, você precisa ser saudável. Nada mais natural em se tratando de uma criatura que nós inventamos, aperfeiçoamos e moldamos à nossa imagem e semelhança. Cara de um, focinho do outro.

Minha vida de cachorro
Os cães herdaram quase todos seus gestos de seu ancestral direto: os lobos. Mas de um jeito bem peculiar

Trazer coisas de volta
Eles não sabem caçar para comer, mas os instintos predadores do lobo estão lá. Por isso todo cachorro gosta de correr atrás de coisas e trazer de volta, como se estivesse levando comida para a matilha.

Fazer xixi no poste
Os machos fazem o número 1 de perninha levantada para a urina ficar na altura do focinho de outros cães. É como os lobos demarcam território. Algumas fêmeas fazem isso por terem sido expostas a testosterona quando estavam no útero.

Dar beijo
Os lobinhos comem comida regurgitada pela mãe. Os cachorrinhos não. Mas eles mantêm traços desse instinto: algumas raças têm o hábito de comer o próprio vômito e, quando seu cão pula na sua cara para dar “oi”, ele está pedindo para você regurgitar comida para ele.

Cavar
Lobos também comem presas pequenas, como marmotas, que se escondem debaixo da terra. Então já nascem sabendo cavar. O instinto passou para os cães, e foi aprimorado pelo homem (via seleção genética) em raças usadas para caçar coelhos e raposas.

 

Do lobo ao limbo
A maioria das raças que conhecemos hoje tem menos de 200 anos, e é fruto do boom de criação no século 19

15000 a.C.
Os primeiros cachorros eram como lobos menores e mais dóceis, que se agregaram à humanidade como estratégia de sobrevivência.

2000-1000 a.C.
Os cachorros se espalham pela Eurásia e surgem as primeiras raças, selecionadas naturalmente para os diferentes habitats de seus donos.

Século 2
Os antigos romanos e chineses começaram a experimentar com seleção de espécies, criando cachorros para caça, guarda, pastoreio ou só para ficar no colo mesmo.

Século 19
Com o surgimento dos concursos e kennel clubs, a seleção artificial de cães virou negócio sério e lucrativo. Se em 1800 havia uma dúzia de raças, em 1900 eram mais de 70. A hiperespecialização gerou uma variação enorme dentro da mesma espécie.

 

Metamorfoses ambulantes
Os cachorros sofreram alterações radicais nos últimos 100 anos. Veja como estas raças eram e como nós as transformamos – e os graves problemas de saúde provocados por isso.

1. O buldogue só ficou gordo e enrugado porque nós achamos bonito; na versão original, era bem mais atlético.

2. Cérebro pra quê? Deixamos nossos cachorros bocudos – e com uma cabecinha bem menor.

3. Pode parecer difícil de acreditar, mas o bull terrier já teve um focinho normal. Seu narigão é obra do homem.

4. Tantas mudancas enfraqueceram os cães – uma mera infecção de pele pode ser fatal para o bull.

 

Mutações de colo
Na evolução das raças menores, o critério puramente estético foi decisivo na hora de escolher quais cães iriam se reproduzir. Os resultados são belos – e esquisitos também.

1. Um belo dia, alguém teve a ideia de colocar dobrinhas e turbinar (radicalmente) as orelhas do bassê.

2. Você gostaria de passar a vida arrastando a barriga no chão? Foi isso que impusemos ao dachshund.

3. O pug é o Michael Jackson dos cachorros: de tão manipulado, ficou praticamente sem nariz.

4. Algumas raças têm dificuldades crônicas para andar, pois nascem com deformidades nos ossos.

Para saber mais

The Well-Adjusted Dog
Nicholas Dodman, Houghton Miffin Books, 2008.

The Domestic Dog
James Serpell, Cambridge University Press, 1995.

Dog
Ádám Miklósi, Oxford University Press, 2007.

Canine Inherited Disorders Database
https://www.upei.ca/~cidd/intro.htm.

 

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