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Cadáver , o plastificador de corpos

O alemão Gunther von Hagens fala da sua exposição de cadáveres dissecados que vem chocando platéias do mundo inteiro.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 31 ago 2002, 22h00

Juliano Zappia

Em 1977, Gunther von Hagens criou um método inovador de preservação dos corpos que mudaria para sempre sua vida profissional. Sua técnica começa com o congelamento imediato do cadáver e a substituição de todos os seus fluidos por acetona. Depois, a acetona é drenada e substituída por polímeros (materiais compostos de grupos de moléculas que se repetem em cadeia). O resultado é uma verdadeira aula de anatomia que faz parte da exposição Body Worlds (Mundo de corpos), que fica na Atlantis Gallery, em Londres, Grã-Bretanha, até o final de setembro – ainda sem previsão para chegar ao Brasil.

Ao expor cadáveres sem pele como o de uma mulher grávida com o feto exposto, Hagens vem despertando reações mistas de revolta e admiração. Em Londres, um visitante indignado chegou a usar um martelo para destruir um dos cadáveres. Em compensação, cerca de 4000 visitantes assinaram um documento com a intenção de doar os seus corpos para que, no futuro, eles sejam usados em exposições semelhantes. “Apesar de ser uma espécie de escultor, não me considero um artista”, diz Hagens. “Minha idéia é apenas mostrar esqueletos, músculos e outros detalhes da anatomia de uma forma agradável.”

Super – Quando você começou a se interessar por cadáveres?

Aos seis anos de idade, passei sete meses dentro de um hospital. Sofro de hemofilia e me lembro de que, na época, mesmo estando em coma, escutava as pessoas conversando sobre as minhas chances de sobrevivência. Foi a primeira vez que estive próximo da morte. Logo depois, fui a uma exposição de esculturas e decidi me tornar um escultor. Fiquei com essa idéia na cabeça por um bom tempo. Aos dez anos, vi um bezerro natimorto na fazenda do meu tio e lhe pedi que me deixasse dissecar o animal. Ele não deixou, mas me deu o coração do bezerro e eu fiquei tentando entender como ele funcionava. Quando completei 16 anos, larguei a escola por não estar tirando boas notas e fui trabalhar em um hospital, como ascensorista. No mesmo hospital, virei telefonista, ajudante de escritório e assistente de enfermeiro. Como morria alguém a cada semana, acabei acompanhando uma autópsia e fiquei completamente fascinado. Cheguei a levar escondido um cérebro para minha casa para estudá-lo e desenhá-lo. O curioso é que, hoje, o meu trabalho está bem próximo da minha idéia original de ser um escultor.

E por que o senhor não se considera um artista?

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Nunca estudei arte e não preciso da criatividade de um artista para fazer o que faço. Não considero os corpos expostos obras de arte. Sou uma espécie de inventor, um artesão.

Mas boa parte da crítica e do público chama o seu trabalho de arte…

Encaro isso como um elogio. Mas acho que é tudo fruto da sensação que as pessoas têm quando olham pela primeira vez partes desconhecidas da sua própria anatomia. É importante lembrar que eu não mudo nada nos corpos. Não faço os corpos mais bonitos. Eu apenas os conservo de uma maneira diferente.

Mas o senhor busca poses estéticas para exibir os corpos.

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Isso é muito interessante. No Japão, quando montamos a primeira exibição, passamos semanas discutindo a melhor maneira de expor os corpos. Começamos colocando-os no chão, como se estivessem deitados. Mas as pessoas reclamavam e pareciam não gostar muito. Quando coloquei os corpos em posições que davam uma sensação de vida, movimento, duas coisas surpreendentes aconteceram: a exposição começou a lotar e eu passei a ser considerado um artista.

E como o senhor define em que posição cada corpo deve ser exposto?

Assim como os renascentistas, minha preocupação é expor um corpo de uma maneira que revele os detalhes da sua anatomia. Minha idéia é mostrar o esqueleto, os músculos e outros detalhes do corpo de uma forma agradável. A estrutura dos ossos, por exemplo, tem uma beleza típica de uma obra de engenharia. As poses são definidas em função dessa estrutura, não por um impulso artístico. Cada corpo exposto tem um vale anatômico, não estético.

E não é exatamente isso que parece incomodar tanto as pessoas?

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É claro que tenho o desejo de atrair o maior número de visitantes, mas a minha intenção é dignificar o corpo e não desrespeitá-lo. Não troco, por exemplo, o pênis por algo sarcástico nem apelo para outros artifícios.

Mesmo assim, a exposição enfrenta protestos em todo lugar por onde passa…

É verdade. Na Alemanha, por exemplo, sofremos as mais diversas reações. Em Manheim, os líderes da igreja local tentaram fechar a exibição argumentando que o que faço “não é digno para os corpos”. Em Colônia, a igreja escreveu artigos pedindo para os fiéis não visitarem a exposição. O resultado foi um público de três milhões de pessoas. Já em Oberhausen, um padre decidiu ver a mostra antes de criticá-la. No meio da exposição, ele ouviu uma mulher que, espantada com o tamanho de um feto de três semanas, disse a uma amiga grávida: “Nossa, é isso que já está na sua barriga. Dá até para ver o pezinho dele. Você devia pensar melhor antes de abortar”. Depois desse diálogo, ele acabou achando a mostra educativa.

Como a maioria das pessoas costuma reagir?

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Alguns adoram, outros sentem repulsa. Curiosamente, alguns estudantes de medicina ficam revoltados. O engraçado é que, durante o curso de medicina, se você dá um fígado ou um rim para eles estudarem, eles não se incomodam. Já quando se trata de olhar de frente para um corpo inteiro, o cadáver ganha um status humano e alguns deles não se sentem muito bem.

O que você espera que o público aprenda com o seu trabalho?

Fico satisfeito quando o visitante passa duas horas vendo os detalhes do esqueleto, dos músculos, dos órgãos. A exposição é uma grande oportunidade para que qualquer pessoa possa ver, em pouco tempo, o que um estudante de medicina levaria seis meses ou mais para aprender.

Essa exibição também mostra um corpo dissecado de um coelho e de um cavalo. O senhor planeja dissecar algum outro animal?

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Sim. Recentemente trabalhei com o corpo de um camelo e o de um gorila. Agora estou à procura de algo maior, um elefante, quem sabe.

Você teria algum problema se alguém da sua família quiser passar pelo mesmo processo de conservação do corpo?

De jeito nenhum. Aliás, todos eles já autorizaram. Meu pai, minha mulher, meu filho, todos vão passar pelo mesmo processo. Eu até já fiz isso com o corpo do meu melhor amigo…

E não foi estranho?

Foi. Acabei percebendo que é verdade quando dizem que um cirurgião não pode operar alguém da sua família. Nessa época, tive pesadelos terríveis. Nos meus sonhos, a mão do meu amigo tentava me puxar para a morte com ele. Isso atrapalhou muito o meu trabalho e decidi que, quando um membro da minha família morrer, vou passar a tarefa para a minha equipe.

E o que ainda choca o senhor?

Ainda me choco quando corto o pulmão de um fumante. O barulho é terrível. A textura é completamente diferente da de um pulmão normal. Parece que estou cortando areia. E o pior é ver que as pessoas continuam fumando. O atentado terrorista nos Estados Unidos me chocou muito. Mas também me deu uma idéia. Pretendo fazer uma exposição que explique o que um ser humano pode fazer numa situação de emergência, como a do ataque às duas torres do World Trade Center.

Gunther von Hagens

• Casado, mora em Dalian, China, onde mantém um instituto.

• Quando não está trabalhando na dissecação de corpos, gosta de andar a cavalo.

• Está expondo simultaneamente em dois lugares. Em Londres, até o dia 29 de setembro desse ano. Em Seul, na Coréia do Sul, até o dia 2 de março de 2003.

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