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Cozinho, logo sou humano

O controle do fogo nos deu comida gostosa, segura, fácil de digerir. Sem ele, teríamos cérebros menores.

Por Mariana Weber
17 jan 2018, 13h18

Somos macacos que cozinham. O ato de processar os alimentos por meio do calor não só nos diferencia de outros animais como foi uma inovação tecnológica fundamental para nos tornarmos humanos. Sem o controle do fogo para o cozimento, “seríamos primatas, com o tamanho e o cérebro de um chimpanzé, que se sustentam em duas patas e se comunicam com grunhidos e gritos”, diz o britânico Richard Wrangham, professor de antropologia biológica de Harvard (EUA), e autor daquilo que ficou conhecido como hipótese do cozimento.

Wrangham não foi o primeiro a defender a importância da dieta cozida, mas foi quem a colocou, baseado em elementos biológicos, como elemento-chave da evolução. Em 1773, o escritor escocês James Boswell já definia o homem como “o animal que cozinha”. Cem anos mais tarde, quando viajou o mundo e teve que se virar para preparar comida com chamas criadas pela fricção de gravetos, o naturalista britânico Charles Darwin classificou a descoberta de iniciar uma fogueira como “provavelmente a mais notável já feita pelo homem, excetuando-se a linguagem”.

Para Darwin, cozinhar é um feito humano. Para Wrangham, humanos não teriam simplesmente descoberto que cozido é melhor do que cru. Eles teriam se tornado humanos por adotar essa alimentação. Na teoria dele, exposta no livro Pegando Fogo – Por Que Cozinhar nos Tornou Humanos, a dieta cozida impulsionou mudanças fisiológicas e comportamentais decisivas. E isso aconteceu muito antes de o Homo sapiens surgir sobre a Terra, 200 mil anos atrás. O antropólogo supõe que nossos ancestrais hominídeos começaram a cozinhar há 2,5 milhões de anos e, 600 mil anos depois, já havia populações totalmente adaptadas à comida cozida ou inaptas para consumir só comida crua – caso do Homo erectus, nosso ancestral direto.

Abastecido de alimentos fáceis de processar, o sistema digestivo dos hominídeos encolheu: boca, dentes, estômago e intestinos diminuíram; a mandíbula enfraqueceu. Em relação aos gorilas e chimpanzés, o tubo digestivo reduzido permite ao ser humano uma economia de pelo menos 10% de energia, segundo cálculos dos antropólogos Leslie Aiello e Peter Wheeler. Em nossos ancestrais, esse excedente de energia possibilitou um aumento significativo do cérebro. Também ficamos maiores e deixamos para trás vários traços simiescos dos australopitecinos – nossos ancestrais mais remotos, que andavam eretos, mas subiam em árvores como macacos, tinham ventre saliente, focinho projetado e cérebros pouco maiores que os dos chimpanzés.

Antes da hipótese do cozimento, a explicação mais aceita para esse crescimento cerebral era um aumento do consumo de carne. Mas Wrangham acha que essa ideia, conhecida como hipótese do caçador, esclarece só uma parte da história e não combina com modificações como dentes menores. Segundo ele, uma expansão do volume do cérebro em cerca de um terço, dos australopitecinos para o Homo habilis – o primeiro animal do gênero Homo, o nosso –, ocorreu, sim, pela adoção de uma dieta mais carnívora associada a métodos de processamento.

Usando porretes de madeira e pedras esféricas como ferramentas, os habilis podem ter quebrado ossos para extrair tutano, cortado pedaços da carne e socado esses bifes para amaciá-los, rompendo tecido conjuntivo e assim facilitando sua digestão. Dos habilis para o mais antigo Homo erectus, que surgiu há 2 milhões de anos atrás, houve um aumento de 40% da capacidade craniana, acompanhado de um crescimento corporal significativo (o peso médio passou de 35 quilos para 61 quilos) – e essa seria a passagem explicada pela dieta cozida. Mais tarde, aperfeiçoamentos das técnicas de cozimento e caça explicariam outros desenvolvimentos cerebrais.

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Para chegar a essas conclusões, Wrangham olhou para os chimpanzés, animais com que trabalha desde 1970, quando se juntou à equipe da primatóloga britânica Jane Goodall no Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia. Na verdade, mais do que observar, o cientista compartilhou refeições com os primos primatas. “Tentei comer tudo, ou quase tudo, que eles comiam”, afirma Wrangham.

Quase tudo porque alguns dos itens eram intragáveis, como a Warbugia ugandensis, uma fruta semelhante a uma ameixa pequena com a qual os chimpanzés se refestelam, mas que para nós tem um sabor desagradável parecido com óleo de mostarda. A maior parte dos alimentos era fibrosa, com um gosto pungente que parecia alertar para a presença de toxinas, sem a doçura e a maciez das frutas que encontramos no mercado. Consumi-los era uma ginástica, já que muitos eram cheios de sementes duras e protegidos por cascas, membranas e pelos. “Aprendi que não podemos sobreviver com alimentos de chimpanzés, e aquela constatação me levou a suspeitar que humanos não podem viver de comida crua na natureza em nenhuma circunstância normal.”

Com uma dieta crua como a dos chimpanzés, passaríamos cinco horas do dia mastigando.

Se vivêssemos de plantas tão cheias de fibras indigeríveis, gastaríamos no mínimo cinco horas por dia com o ato de mastigar, quatro a mais do que gastamos hoje. Ou seja, além de cérebros maiores, com o cozimento ganhamos tempo livre para desenvolver outras atividades – entre elas, perseguir presas e obter alimentos altamente calóricos. Chimpanzés gostam de carne, mas não caçam muito, provavelmente porque não podem se dar ao luxo de parar de mastigar por longos períodos para se dedicar a buscas incertas (coincidentemente o tempo médio de suas caçadas, 18 minutos, cabe dentro dos 20 minutos que costumam durar as pausas entre rodadas de ingestão de vegetais).

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Depois que aprendemos a usar o fogo a nosso favor, passamos também a tirar mais energia de cada mordida. As mesmas raízes, folhas, frutas e carnes tornaram-se mais proveitosas. Isso porque o calor gelatiniza o amido do interior das células vegetais e desnatura proteínas, abrindo sua estrutura e expondo-a à ação de enzimas digestivas. Amolecido, o alimento é digerido com mais eficiência e rapidez, o que poupa nosso esforço metabólico. Ou seja: a comida cozida providencia mais calorias que a comida crua.

O dilema do crudívoro

Se os seguidores do crudivorismo – dieta restrita ao consumo de alimentos crus – conseguem viver sem ingerir nada cozido, é porque têm à sua disposição uma gama de alimentos e equipamentos impensável há 2 milhões de anos. Podem, por exemplo, aumentar a digeribilidade da comida ao processá-la no liquidificador. Também não sofrem com períodos anuais de escassez: supermercados garantem fornecimento constante de frutas, nozes, cereais, farinhas, óleos prensados a frio e mesmo carne seca e peixe seco.

Ainda assim, um estudo conduzido na Alemanha e citado no livro Pegando Fogo constatou que adeptos de dietas de 70% a 100% cruas eram mais magros do que os comedores de dietas cozidas – a diferença de peso era em média 9,9 quilos para homens e 12 quilos para as mulheres. Entre essas, quanto maior fosse a proporção de consumo de comidas cruas, menor era o Índice de Massa Corporal e maior a chance de que as mulheres parassem de menstruar ou tivessem ciclos menstruais irregulares. Para Wrangham, está aí mais um indício de que os primeiros comedores de cozido tiveram vantagem no jogo evolutivo. “Eles sobreviveram e se reproduziram melhor do que antes. Seus genes se espalharam.”

A favor da sobrevivência dos cozinheiros conta também o fato de o fogo tornar a comida mais segura. “Muitas plantas que são tóxicas quando ingeridas cruas, incluindo tubérculos como a mandioca, tornam-se inofensivas e mais nutritivas se submetidas ao calor”, diz o escritor americano Michael Pollan no livro Cozinhar – Uma História Natural da Transformação. “Outros alimentos são purificados no cozimento pelo fogo, que queima bactérias e parasitas; ele também retarda a deterioração da carne.”

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A comida então ficou mais farta, mais segura, mais rica, mais gostosa – dada a opção, animais em geral tendem a preferir alimentos cozidos, provavelmente por perceber no sabor e na textura deles indícios de um bom negócio em termos de calorias. Mas as refeições ficaram também demoradas de preparar. E isso transformou completamente as relações sociais. Antes, o que aqui se colhia aqui se comia, ou, diante do resultado de uma caçada, cada um agarrava a carne que podia. O cozimento, de qualquer forma, leva ao que o historiador britânico Felipe Fernández-Armesto definiu como uma vida mais focada: há agora um local compartilhado para o ato de comer. “A cultura começa quando o cru se torna cozido”, escreveu o autor dos livros Então Você Pensa que é Humano? e Comida: uma História.

Cozinhar leva tempo e chama a atenção. Em grupos de chimpanzés, consumidores principalmente de frutas pequenas, a descoberta de um alimento de tamanho considerável, que demore para ser consumido, como uma fruta-pão ou uma carcaça de animal, gera disputas ferozes seguidas por súplicas dos perdedores. Rodeando e mendigando, às vezes machos mais fracos e fêmeas conseguem um naco dado ou roubado. Se tal situação se repetisse entre os primeiros cozinheiros, eles nunca seriam capazes de preparar uma refeição. Ou criavam-se laços ou nada de churrasco.

Nessa cultura que se formou em volta do fogo, já aparece, segundo Wrangham, um padrão que se repetiria em todas as sociedades: a mulher cozinha para o homem. “Minha hipótese é que isso ocorra entre humanos porque comida cozida precisa de um protetor para criar uma barreira cultural contra roubos”, diz o antropólogo. Para uma mulher, essa barreira podia vir de uma ligação especial com um dos fortões do pedaço. “Ter um marido assegura que as comidas coletadas por uma mulher não serão tomadas por outros; ter uma esposa assegura que o homem terá uma refeição vespertina.”

O fogo também nos amansou. Para ficar ao redor dele, próximos uns dos outros, precisamos nos tornar mais tolerantes (como, na evolução para se tornarem cães, foram favorecidos os mais calmos entre os lobos que se aproximavam das aldeias cheias de gente e alimento). Outras consequências vieram. Reunidos em torno de uma fogueira, tínhamos mais segurança para dormir no chão. Com algo para nos aquecer em noites frias, abrimos mão de muitos dos pelos que cobriam nosso corpo – e ganhamos maior conforto térmico para percorrer longas distâncias.

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Para Wrangham, esse controle do fogo que levou ao primeiro grelhado aconteceu há mais de 2 milhões de anos. Provavelmente, antes de serem capazes de iniciar uma chama, nossos antepassados simiescos aprenderam a cuidar de uma tirada de focos de incêndio florestal ou produzida por centelhas obtidas sem querer ao golpear pedras. Nossos ancestrais talvez já usassem esse fogo para acuar animais na caça e para se proteger à noite quando cozinharam sem querer pela primeira vez. Pedaços de comida podem ter caído no fogo por acidente. O grupo provou, gostou e repetiu a experiência, de propósito, no dia seguinte. E no outro. E no outro. Até hoje.

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