Crânio de 3,8 milhões de anos dá um rosto aos nossos mais antigos ancestrais
Descoberta mais relevante em décadas no campo dos estudos sobre hominídeos lança luz em quem eram os antepassados da Lucy — e pode reescrever história dos Australopithecus.
Meio metro de cocô de cabra soterrava um verdadeiro tesouro de tempos muito, mas muito longínquos. Um testemunho da aurora do ser humano passou 3,8 milhões de anos dentro de um substrato de arenito, onde virou fóssil. Até que, num certo dia de fevereiro de 2016, um pastor da Etiópia cavou uma toca no estrume para proteger suas cabrinhas das hienas. E lá estava ela: uma mandíbula que pode reescrever os manuais de paleoantropologia.
É claro que, quando pegou o fragmento de osso na mão suja de excrementos caprinos, Ali Bereino não sonhava que seu achado casual se desdobraria em uma das descobertas mais importantes das últimas décadas no estudo dos primeiros hominídeos — os ancestrais que originaram nossa espécie, Homo sapiens.
Bereino levou o maxilar até o paleoantropólogo etíope Yohannes Haile-Selassie, do Museu Cleveland de História Natural de Ohio, nos EUA. E foi aqui que o potencial da descoberta começou a despontar.
Cientistas passaram parte dos últimos três anos cavando a área para retirar uma abundante quantidade de cocô de cabra e encontrar outras peças para montar aquele “quebra-cabeça” craniano do antigo primata. E conseguiram: desenterraram o crânio quase completo. Foram realizadas datações para determinar o período em que o protohumano que virou fóssiu viveu e análises para definir sua espécie. Concluíram se tratar de um Australopithecus anamensis.
Por muito tempo, os especialistas desse campo pensaram que era a essa espécie que pertenciam os “vovôs”, ou melhor, os antepassados, do famoso crânio australopiteco conhecido como Lucy, que pertence à espécie A. afarensis. Mas o novo fóssil, como argumentam os autores dos dois artigos publicados nesta quarta (28) na revista Nature, promete chacoalhar as teorias dos primórdios da evolução humana.
Australopithecus eram grandes primatas que aprenderam a andar eretos e viveram na África entre 4,2 milhões e 2 milhões de anos atrás. Existem seis espécies conhecidas de Australopithecus, sendo o anamensis considerado o mais antigo de todos. Esse consenso partiu da descoberta de uma ossada com mandíbulas e dentes no Quênia em 1995, de um indivíduo que viveu há 4 milhões de anos.
Por isso, os cientistas concluíram que o ancestral teria sumido depois de gradualmente evoluir até se tornar o afarensis, que existiram entre 3,7 milhões de 3 milhões de anos atrás.
Segundo esta visão, portanto, teríamos uma visão superdefinida da linha do tempo dos australopitecos. Por 300 mil anos, de 4 mi a 3,7 mi anos atrás, tinhamos os anamensis. Quanto mais recente a ossada, mais moderna seria a aparência de um anamensis. Já nos 700 mil anos seguintes, teríamos o domínio dos descendentes afarensis. Ou um, ou outro, a depender do ponto na linha do tempo, certo? Só que esta visão, graças ao novo fóssil, está em xeque.
É que o novo crânio descoberto que, lembrando, é de um anamensis, traz fortes indícios de que a gradual mudança do anamensis até o afarensis não rolou.
O problema é o seguinte: as feições do crânio e o cérebro desse espécime parecem simplemente modernos demais – muito semelhantes às de Australopithecus mais recentes, como o africanus. Isso leva a crer que o Australopithecus anamensis durou muito mais tempo como espécie do que se pensava, se modernizando mas sem se “transformar” numa espécie diferentes. Em vez de simplesmente dar origem ao afarensis e sumir, o mais provável é que essas duas espécies, tenham coexistido por 100 mil anos. A segunda derivou da primeira, sim, mas não a substituiu.
Nem todos os especialistas, é claro, concordam com essa ideia. É preciso mais de uma única ossada para transformar um consenso científico. Os pesquisadores seguiram, portanto, à procura de evidências que esclareçam esse capítulo da história dos hominídio, mesmo embaixo de terrenos escatológicos.