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El Niño: Um susto com data marcada

Por trás de catástrofes como cheias, secas e fome, que no Brasil costumam chegar com o verão, se encontra o fenômeno climático mais estudado neste fim de século e que aos poucos vai sendo desvendado pelo cientistas.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 28 fev 1993, 22h00

Cheias, secas e até fomes. Por trás de boa parte dessas catástrofes, que no Brasil costumam chegar com o verão, se encontra o fenômeno meteorológico mais estudado neste fim de século e que aos poucos vai sendo desvendado pelos cientistas.

Nos últimos anos, os brasileiros se habituaram a conviver com um fenômeno sobre o qual recai boa parte da culpa pelas desgraças naturais que, de tempos em tempos, assolam os mais variados cantos da Terra . No Brasil, o susto chega sempre com data marcada. Vem com as águas de março, uma época que, para os habitantes do Sul do país, deixou há muito tempo de ser o período de sonho das férias, da praia e das festas para se tornar um pesadelo de enchentes. Para os nordestinos, já tão castigados pela seca, sobra a certeza de que nem um pingo d’água da chuva deverá visitá-los nos próximos meses. Graças a esse fenômeno, também, associações extravagantes como relacionar o desaparecimento das enchovas na costa peruana com invernos amenos na América do Norte ou as secas na Austrália com enchentes devastadoras no Sul dos Estados Unidos hoje em dia soam perfeitamente normais. Apesar da aparência de um quebra-cabeça incompreensível, todos esses desastres e alterações no clima global repousam sobre uma única explicação: o El Niño.

Conhecido há mais de duzentos anos, inicialmente ele não mereceu muita atenção da ciência. Associado a um aquecimento anormal das águas do Pacífico na costa do Peru, durante muito tempo o El Niño foi considerado como um fenômeno estritamente local. Um tipo de patrimônio folclórico da região, batizado pelos próprios pescadores peruanos: em espanhol, El Niño significa “o menino”, numa referência ao Menino Jesus, já que o fenômeno se manifestava sempre em dezembro, pouco depois do Natal. A partir do final da década de 50, porém, viria a conclusão espantosa: aquele aquecimento das águas era apenas uma pequena parte de um distúrbio planetário, cujos efeitos dramáticos não têm endereço nem nacionalidade.

Na época, os cientistas descobriram que uma estranha coincidência acontecia durante o El Niño. De um lado, os oceanógrafos perceberam que as águas aquecidas não apareciam somente nas costas do Peru e do Equador, mas se estendiam por todo o Pacífico. De outro, os meteorologistas descobriram que os ventos alísios que sopram sobre o oceano pareciam se tornar mais fracos justamente na época em que essa massa de mar quente aparecia. Ou seja, enquanto, na maioria dos anos, os ventos sobre o Pacífico sopravam com força e constância em direção à Indonésia, quando as águas aquecidas tomavam conta do oceano ao longo da linha do Equador, essas rajadas de ar diminuíam de forma substancial.

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Para os estudiosos do clima, estas constatações foram extremamente significativas: elas não só mudaram radicalmente a face do Pacífico central, como se tornaram a chave para ligar o fenômeno às catástrofes que costumam se encadear pelo mundo afora quando o El Niño se manifesta. O que conjuga a mudança dos ventos e do mar é um segredo que os cientistas ainda não desvendaram, mas é certo que o vento é um dos principais vilões dessa história. “Hoje, ninguém mais duvida de que a diminuição dos ventos é uma das causas do El Niño”, conta o meteorologista Carlos Nobre, chefe do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). “O que não se descobriu é por que isso acontece.”

Este ano, tudo indica que ele não vai dar muito que falar. A despeito das chuvas que já caíram e das que não, o El Niño está fraco e promete não causar pânico. Depois de cobrir a superfície do Pacífico ao longo de 1992, a camada de água quente que caracteriza o fenômeno está recuando de volta à região da Indonésia. Em princípio, portanto, a estiagem no Nordeste brasileiro não poderá mais ser posta na sua conta e, no Sul, as chuvas talvez não se tornem sinônimo de inundações. Em compensação, na Amazônia o Rio Negro está ameaçando provocar uma das maiores cheias do século, e mais uma vez o nome do culpado de plantão está de volta às manchetes. Entre os técnicos em meteorologia, imagina-se que, como o El Niño reteve as nuvens chuvosas durante o ano passado — em junho, a falta de água baixou tanto o nível dos rios que a represa de Balbina, no Pará, foi obrigada a desligar quatro de suas cinco turbinas —, elas agora vão despencar sem cerimônia sobre a região.

Apesar de suas causas serem obscuras, o mecanismo de funcionamento do El Niño já deixou de ser um mistério para os pesquisadores. Sabe-se, por exemplo, que o fenômeno costuma se manifestar com regularidade, geralmente em intervalos de três a sete anos, e que a influência dos ventos alísios está na importância que têm na renovação das águas superficiais do oceano: vindos do nordeste e do sudeste, eles se encarregam de deslocar as águas, normalmente mais quentes, do Pacífico central em direção ao sul do continente asiático, abrindo caminho para que a corrente fria e profunda que chega do Pólo Sul, a Humboldt, venha à tona. Além disso, nos anos em que a situação está dentro dos padrões normais, eles ajudam a manter essas águas quentes literalmente presas na região da Austrália e da Indonésia. A tal ponto que, lá, o nível do mar chega a ser até 40 centímetros mais alto do que na costa da América do Sul.

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Enquanto esse bolsão de água quente está em seu devido lugar, na Indonésia e na Austrália, o clima da região costuma funcionar com a precisão de um relógio suíço: o mar aquece o ar, bombeando vapor para a atmosfera, o ar sobe, a umidade forma densas nuvens e fortes chuvas se precipitam sobre a região. É o que se chama de áreas de baixa pressão, aquelas em que há chuvas abundantes. Livre da umidade, o ar segue então seu trajeto em direção às altas camadas da atmosfera, se resfria e desce sobre o oceano, nas proximidades da costa sul-americana, criando uma área de alta pressão, onde as chuvas são raras. Dali, ele é carregado pelos ventos de volta à Indonésia, onde tudo começa de novo. Esse movimento circular é o que se chama de Célula de Walker, homenagem ao meteorologista inglês sir Gilbert Walker, que no início do século desvendou o jogo das pressões nessa região.

Com o El Niño, tudo isso muda. A começar pelos ventos, que diminuem sua intensidade. Por que não se sabe, mas o fato é que, sem a força dos ventos, a bolsa de água aquecida acumulada no sul da Ásia consegue se libertar, esparramando-se ao longo da linha do Equador até a costa do Peru: a água quente aos poucos toma conta da superfície do oceano e as correntes frias ficam retidas nas profundezas. É isso, aliás, o que torna a chegada do El Niño tão incômoda para os pescadores peruanos: como são as correntes frias que transportam os nutrientes do fundo do mar para a superfície, quando a água quente impede que elas cheguem à to-na, acabam provocando a escassez de pescado, já que os peixes morrem de fome e praticamente desaparecem. Para os meteorologistas, porém, mais interessante do que as conseqüências ecológicas do El Niño é o fato de que o “mar quente” nunca viaja sozinho.

No seu deslocamento rumo à América do Sul, as águas quentes sempre levam com elas o sistema climático da sua região de origem. Isto é, as formações chuvosas da Indonésia também fogem para o meio do Pacífico, dando início a uma espécie de reação em cadeia que empurra todos os sistemas climáticos dos trópicos para leste: a Austrália, onde antes havia fartura de chuvas, passa a ser castigada pela seca, enquanto as águas que deveriam estar caindo lá são despejadas no oceano, nas proximidades da Polinésia. Ao mesmo tempo, as chuvas que antes caíam sobre o mar, perto da costa americana, invadem o continente e passam a abençoar as lavouras peruanas, enquanto o ar, que sobe com as precipitações no Peru, vai descer justamente na região costeira do Nordeste brasileiro, banindo as chuvas dali.

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No que diz respeito ao Brasil, as catástrofes de 1982 e 1983, quando ocorreu a maior manifestação , do El Niño neste século, se encarregaram de confirmar essas teorias. A área de alta pressão que se formou junto ao Nordeste, por causa das chuvas no Peru, trouxe uma das mais fortes estiagens já registradas na região. Em 1983, 85% da área do Nordeste ficaram secos e 89% de seus municípios em estado de emergência. Simultaneamente, o Sul do Brasil também foi castigado de forma impiedosa por chuvas torrenciais, chamando a atenção para outro problema ligado à mudança nas águas do Pacífico: o bloqueio de frentes frias no sul do continente pelas correntes-de-jato.

Formadas pelo encontro das massas de ar quente dos trópicos com o ar gelado do Pólo Sul, essas correntes, localizadas no topo da atmosfera (entre 10 e 12 quilômetros de altura), são extremamente velozes e até úteis em certas viagens aéreas. Durante o El Niño, porém, com as águas quentes tomando conta de toda a extensão do oceano e produzindo gigantescas massas de ar aquecido, o excesso de ar quente aumenta sua força. Com isso, as correntes-de-jato passam a funcionar como verdadeiras barreiras de ar, que impedem que as frentes frias, carregadas de chuvas, sigam seu trajeto normal em direção ao norte. “A chuva que deveria ser distribuída ao longo da costa leste da América do Sul acaba caindo toda num só lugar”, conta a meteorologista Cíntia Uvo, do INPE, já que as frentes estacionam sobre a região entre o Norte da Argentina e o Sul do Brasil. Uma boa idéia do que isso significa em termos de água pode ser dada pelos números das enchentes de 1983 em Santa Catarina. Só nos dias 11 e 12 de julho, o índice de chuvas alcançou nada menos do que 300 milímetros — o que corresponde a 300 litros de água por metro quadrado —, três vezes e meia mais que a média de todo o mês anterior, de 90 milímetros, que já tinha sido extremamente alta.

Hoje os cientistas já conhecem com uma certa segurança o modo de funcionamento, mas as causas do El Niño estão distantes de serem decifradas, apesar de não faltarem teses que tentem explicá-las. Uma das mais recentes delas, elaborada pelo físico americano Paul Handler, da Universidade de Illinois, defende que o fenômeno seria provocado pela erupção de vulcões tropicais. Em sua controvertida teoria, Handler, que se baseou em comparações estatísticas, defende a idéia de que tudo começa com o bloqueio da luz do Sol pelas nuvens de partículas lançadas na atmosfera pelos vulcões: como elas provocam o esfriamento dos trópicos, isso afetaria o funcionamento normal dos ventos na região, dando início então ao El Niño. Até hoje ele não conseguiu demonstrar o mecanismo dessa influência.

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Até que se encontre uma explicação satisfatória, capaz de aumentar a capacidade dos cientistas para se anteciparem ao fenômeno, o El Niño continuará a ser uma grande incógnita. Embora já se tenha uma noção de sua periodicidade, a intensidade do fenômeno continua sendo uma fonte de surpresas. Para os brasileiros, normalmente desagradáveis. Para outros, nem tanto. E, apesar de ser sempre motivo de preocupação, dependendo do ponto de vista e da localização de quem olha, ela pode ser bem menor.

Se para os pescadores peruanos o El Niño significa escassez de peixe e dificuldades, não muito longe dali ele chega como uma dádiva dos céus para os agricultores do Peru, trazendo chuvas e abundância para as lavouras. Correntes-de-jato iguais àquelas que são responsáveis pelas trágicas inundações do Sul têm uma função extremamente benéfica na região do Golfo do México, onde se encarregam de dissolver a formação dos furacões que vivem provocando estragos naquela região. Mesmo as estiagens que ressecam a Austrália e o Nordeste brasileiro têm uma contrapartida agradável: para os habitantes do Norte dos Estados Unidos, durante o El Niño seus invernos serão mais amenos.

Para saber mais:

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Será que vai chover?

(Super número 3, ano 11)

Carona nas asas do vento

Para quem está em terra, as correntes-de-jato, que bloqueiam as frentes frias sobre o Sul, são sempre motivo de preocupação. Para quem está sentado confortavelmente num avião, no entanto, elas não passam de uma questão de tempo. Com “rotas” mais ou menos estabelecidas no céu — so-prando sempre de noroeste para sudoeste —, esses ventos ultravelozes, que atingem até 150 quilômetros por hora, podem tanto ajudar como atrapalhar as viagens aéreas. Em viagens de ida para a Europa ou a África, por exemplo, quando estão a favor, as aeronaves que pegam carona nas correntes gastam muito menos tempo para chegar ao destino do que se estivessem viajando em direção à Amé-rica do Sul.

Em números, isso significa que um avião comercial, que voa a cerca de 860 quilômetros por hora, alcança até 1 000 km/h quando se instala no meio da corrente-de-jato. E não é só o tempo de vôo que diminui: o consumo de combustível também cai. Em compensação, na viagem contra a corrente, a situação se inverte: o consumo aumenta e a velocidade chega a cair para 715 km/h. Como na rota sulista que liga Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a Santiago, no Chile: enquanto a ida leva 2 horas, na volta, com a ajuda do ven-to, gastam-se 1 hora e 40 minutos.

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