Viagem no tempo
Fazer turismo é um hábito novo: por muito tempo, as pessoas achavam um sacrifício ter que viajar, ir à praia ou descer cachoeiras.
Texto Eduardo Szklarz
Estamos em Copacabana, o calor é de rachar e o mar convida para um mergulho. Mas a praia está vazia. Não há ninguém pegando sol nem jogando futevôlei. Apenas corpos de escravos jogados na areia e urubus competindo por um naco de carne. E não só em Copacabana. Até o fim do século 18, lagartear ao sol era coisa de calango; tomar banhos de mar, uma afronta ao mundo civilizado. Ninguém pensava em se divertir escalando montanhas ou descendo cachoeiras. Não havia estradas, nem hotéis, nem colônias de férias. Aliás, não havia férias. As pessoas achavam viajar um sacrifício.
A história está cheia de exemplos de turismo entre os antigos: os egípcios do século 2 a.C. visitavam as pirâmides, os fenícios faziam périplos pelo Mediterrâneo e os gregos lotavam o santuário de Apolo, em Delfos. Mas os deslocamentos eram em geral motivados por devoção, fuga ou sobrevivência. Com a formação das nações, as jornadas viraram parte de campanhas militares e religiosas, do comércio e dos estudos. O turismo como conhecemos tomou forma somente no século 19, com a evolução do transporte e as visitas dos nobres aos balneários europeus. Até virar um costume tão forte hoje em dia, todo o jeito com que vivemos e trabalhamos teve que mudar.
Os pioneiros
“Durante milênios, a viagem foi uma obrigação. Os primeiros a cruzar a Europa buscavam abrigo e caça ou fugiam de inimigos e catástrofes”, diz o psicólogo espanhol Alexandre García-Mas, autor de La Mente del Viajero (“A Mente do Viajante”, sem edição brasileira). “Se olharmos os registros escritos, vemos que os viajantes seguintes eram soldados, peregrinos, comerciantes, diplomatas e uns poucos estudantes e aventureiros.”
O primeiro salto do turismo aconteceu na Grécia antiga lá pelo século 5 a.C. Milhares de gregos viajavam a cada 4 anos a Olímpia para ver os jogos em homenagem a Zeus. O evento era bem diferente da Olimpíada atual: além dos torneios esportivos, incluía discursos filosóficos, recitais de poesias e sacrifícios. Mulheres e escravos ficavam de fora.
Vem daquela época a noção de hospitalidade. Para quem morava no caminho dos templos, receber bem os forasteiros era um ato de honra. Muitos gregos também perambulavam pelo mausoléu de Halicarnasso e pelas pirâmides do Egito – construídas por volta do século 25 a.C., as pirâmides eram tão antigas para os gregos como a Grécia antiga hoje para nós. Também nasceu durante os Jogos Olímpicos gregos o turismo predatório – aquela mania de rabiscar o nome no artefato histórico. “Vários desses monumentos exibiam nomes de viajantes ou marcas riscadas na pedra para mostrar que eles tinham estado lá”, afirmam os pesquisadores José Roberto Yasoshima e Nadja da Silva Oliveira, no livro Turismo no Percurso do Tempo. Esse costume já foi praticado por muita gente ilustre. Em 1810, o poeta britânico Lord Byron, então com 22 anos, grafitou seu nome em uma coluna do templo de Posêidon, na Grécia.
As viagens gregas só aconteciam graças ao sistema monetário, que possibilitava a troca de moedas entre as cidades-Estado, e o uso do grego como idioma comum. Mas não era nada fácil dar uma de Heródoto, o historiador grego que viajou pelo Egito, Síria, Pérsia, Macedônia e Itália. Era preciso se sujeitar a crises de enjôo e ataques de piratas. Séculos depois, os imperadores romanos deram um jeito nisso ao inaugurar na Europa uma rede de estradas e pontes feitas de areia, laje, brita e pedras lisas. Os súditos podiam circular nelas desde que portassem diploma (espécie de passaporte) e viajavam mais de 60 quilômetros por dia em cavalos ou veículos de tração animal como a birota, que tinha duas rodas e levava duas pessoas, e a raeda, para grandes grupos. Os mais ricos preferiam uma liteira carregada por 8 escravos. Esses “turistas” privilegiados ficavam em choupanas chamadas de diversoria e se orientavam consultando o itinerarium, avô dos guias de turismo atuais.
Com o fim de Roma, no século 5, o turismo sofreu um retrocesso. As estradas foram depredadas pelos bárbaros e o que sobrou delas foi usado por peregrinos que partiam rumo à Terra Santa, Roma e Santiago de Compostela. Uma caravana da Itália a Jerusalém podia levar 9 meses, belo sacrifício pela fé. Havia algumas hospedagens pelo caminho, mas insuficientes para tantos devotos. O peregrino não escolhia o itinerário nem a duração da viagem, não sabia onde dormir nem se acharia comida. Na maioria das vezes, viajar era algo incômodo e inseguro.
Grand tour
Essa noção começou a mudar com o Renascimento e a Reforma Protestante, que reduziram a obsessão pelo plano divino e valorizaram o indivíduo. Aliado ao ressurgimento das cidades, do comércio e das artes, o pensamento humanista inspirou uma corrente de viajantes que não queriam saber de adorar deuses, mas de conhecer e catalogar cada palmo do mundo real. Um deles foi o pensador francês Michel de Montaigne, que em 1581 percorreu Itália, Alemanha, Suíça e Áustria, anotando em seu diário as impressões sobre cada cultura.
Na Inglaterra, os novos valores mudaram a visão sobre o ensino da elite: estudantes na faixa dos 25 anos, recém-formados nas Universidades de Oxford e Cambridge, deveriam completar seus conhecimentos com uma grande viagem a outros países, na companhia de um tutor. Conhecida como grand tour (de onde vem “turismo”), a empreitada durava de 6 meses a 2 anos – e era bancada pela rainha da Inglaterra. A idéia era conhecer diferentes culturas e ficar pronto para se tornar um membro da elite.
O grand tour ganhou muitos adeptos entre os intelectuais europeus. O filósofo inglês John Locke não cansou de elogiar esse tipo de instrução e o colega Adam Smith foi tutor do filho de um duque. O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau defendia um método autodidata que tinha a natureza como mestra suprema. Não é à toa que o Dicionário Larousse de 1875 descreve Rousseau batendo pé pela Europa, mochila nas costas e cajado na mão, como um discípulo da natureza. O imperador dom Pedro 2º não ficou de fora: visitou as pirâmides do Egito em 1871 e, 5 anos mais tarde, percorreu o Líbano, a Síria e a Palestina.
Foi também nessa época que a aristocracia européia redescobriu o prazer das termas e dos banhos de mar – um antigo hábito romano que havia minguado na cristandade medieval por ser sinônimo de luxúria. Até então, os europeus pensavam que o mar era um território demoníaco, onde vivia o monstro bíblico Leviatã. O escritor italiano Dante Aliguieri deixa isso claro na Divina Comédia: para ele, aquela imensidão de águas carregava a desgraça. Aos poucos, porém, as pessoas começaram a expor o corpo sem culpa, munidos de conselhos médicos sobre os benefícios das imersões na água salgada. A cidade inglesa de Bath virou sinônimo de banhos termais e o município de Spa, na Bélgica, inspirou a máxima do “corpo são, mente sã”. Os ingleses também inventaram as temporadas de inverno no sul da França e o esqui nos Alpes.
É isso mesmo: os pontos turísticos foram sendo inventados como produtos da evolução sociocultural. “O turismo causou mutações profundas. Ele mudou nosso olhar sobre as paisagens. Até mesmo as imagens, os utensílios e os habitats tradicionais só encontram um valor histórico a partir do momento em que a comunicação turística toma conta deles”, diz o historiador francês Marc Boyer, autor de História do Turismo de Massa.
Quem hoje pratica escalada e rapel pode achar estranho, mas até o século 18 as montanhas não eram apreciadas. Ao contrário: os europeus as descreviam como um território de pavor. “Nos mapas, elas eram representadas por espaços brancos com dragões e criaturas terríveis. A maioria dos cumes não tinha nome e alguns eram chamados de malditos e pavorosos por mercadores que precisavam atravessá-los”, diz Boyer.
Toda essa redescoberta das paisagens no século 18 formou o que Boyer chama de “a invenção do inútil”. O processo funcionava assim: primeiro, alguém da alta sociedade identificava uma nova prática em um novo lugar – por exemplo, escalar os Pirineus. Essa pessoa era o gate keeper, o guardião, que abria as portas da cultura aos demais. Depois alguns nobres imitavam a tal prática, que finalmente caía no gosto das pessoas de alta renda (cerca de 10% da população européia). Tratava-se de uma dinâmica bem elitista. Para se popularizar, o turismo ainda precisaria da Revolução Industrial.
Turismo para o povo
Lembra-se das velhas estradas do Império Romano? Pois elas só se aposentaram de vez com a adoção de locomotivas e barcos a vapor no século 19. Com essas máquinas em cena, o trajeto entre Roma e Londres se reduziu de 3 semanas para 3 dias. As cabines de trens e navios se diferenciavam de acordo com a classe social dos passageiros, um resquício que dura até hoje. Planejar as viagens também ficou mais fácil graças ao telégrafo.
Agora motorizado, o turismo foi agregando novos elementos ao cenário urbano. Um deles foi o restaurante, como o Dicionário de Trévoux observava em 1771: “Estabeleceram-se em Paris estalagens que vendem restaurants (bebidas reconfortantes) e são chamadas de restauranteurs”. Outra novidade foi o moderno hotel, palavra que até então significava apenas um rico domicílio urbano. Ao contrário das estalagens de beira de estrada, os hotéis ficavam no coração das cidades, perto do teatro ou da ópera.
Mas mesmo com tanta novidade as pessoas ainda não viam sentido em sair de casa para pegar trens fumacentos. Era bem mais divertido caçar pato ou lutar esgrima. Até que, no verão de 1841, o pastor inglês Thomas Cook teve uma brilhante idéia. Ele alugou um trem e levou 570 fiéis de Leicester à vizinha Loughborough para assistir a uma palestra sobre os males do álcool. Por poucos centavos de libra, os passageiros tinham direito a chá e sanduíche de presunto, jogar críquete e curtir o show de uma banda.
A excursão foi um sucesso e Cook realizou outras 3. Depois, organizou viagens ao litoral de Liverpool, desta vez voltadas apenas ao lazer. Cook viu que podia fazer negócio com as empresas de transporte usando uma regra óbvia dos dias de hoje: tarifas reduzidas aumentam a demanda, e os lucros vêm com a escala. Foi assim que, aos 30 e poucos anos, esse pregador metodista se tornou o primeiro agente de viagens do mundo. Sua agência, a Thomas Cook & Son, montou pacotes para Nova Zelândia, EUA, Suíça e Oriente Médio. No final do século 19, a agência de Cook já tinha 1 700 empregados. Foi assim que o turismo se uniu a outra característica moderna: o capitalismo.
Não tem preço
“O turismo, como é concebido hoje, tem origem na concepção capitalista da vida”, diz a antropóloga e socióloga Deis Siqueira, da UnB. O capitalismo possibilitou não apenas a acumulação de riqueza: ele mudou nossa maneira de lidar com o tempo. No passado, as várias atividades humanas conviviam no Ocidente de forma integrada: trabalho, religiosidade, diversão, ócio e festa. Foi apenas com a lógica produtiva que veio a separação entre tempo de trabalho e tempo livre.
“Com o desenvolvimento do capitalismo, passou-se do ócio – o fazer nada contemplativo, valorizado no Oriente – ao lazer, isto é, ocupar o tempo livre com atividades”, afirma Deis. Empresários, comerciantes e profissionais liberais foram se apropriando das práticas e dos lugares do turismo aristocrático. Em 1870, os pastores suíços montaram as primeiras colônias de férias para os filhos dos operários. Essa iniciativa permitia que crianças pobres pudessem sair da poluição das cidades e respirar o ar puro das colinas. Também é dessa época a criação dos albergues da juventude, dos camping clubs e do Movimento Amigos da Natureza, que ampliou o lazer do proletariado.
Após muita pressão dos sindicatos, os trabalhadores foram conquistando o direito ao descanso e à jornada de 8 horas. Na década de 1920, cerca de 17% da mão-de-obra inglesa já tinha férias remuneradas. Em 1936, esse direito virou lei na França e se estendeu a outros países da Europa. O tempo livre virou até objeto de políticas públicas – principalmente de países autoritários. Mussolini criou o Dopolavoro (“depois do trabalho”), um programa que “educava” a massa por meio de torneios esportivos e excursões ao mar Adriático. Hitler organizava férias para operários nos Alpes bávaros e Stálin levava trabalhadores a temporadas no Leste Europeu.
Nos países democráticos, o turismo de massa ganhou impulso no período de 1945, quando acabou a 2ª Guerra, à crise do petróleo de 1973. Foi quando a classe média entrou para valer nos circuitos turísticos. Nada mais natural, já que as ondas de turismo sempre começavam com poucos privilegiados e em seguida se popularizavam. Foi assim com o grand tour, com as viagens de trem, os passeios de carro e os pacotes aéreos.
Hoje, essa dinâmica está saindo dos trilhos. Parte do público já não quer seguir roteiros inventados pelos outros. O filósofo francês Gilles Lipovetsky, autor de A Era do Vazio, diz que os “turistas que não querem ser turistas” caracterizam um novo fenômeno, o hiperconsumo. Ou seja: a pessoa consome não para ter status, mas para ter prazer e viver alguma coisa contra a corrente. Não basta ir ao lugar, mas trabalhar lá como voluntário, andar de bike, ter uma experiência que seja única. Hoje, o grande desafio não é inventar novas práticas nem novos lugares para viajar. É inventar a si mesmo.
Do Rio a Cuiabá – de barco
Se você reclama do caos dos aeroportos brasileiros, precisa ver como era viajar pelo país no período colonial. Na falta de uma estrutura de transporte, o jeito era embarcar pelo traçado tortuoso dos rios ou se aventurar pelos caminhos que os bandeirantes usavam para buscar ouro e pedras preciosas. Nos dois casos, o turista estava sujeito a doenças, enfrentamentos com índios e ataques de onças e cobras.
Numa viagem a partir de Cuiabá rumo ao Rio de Janeiro, aí, sim, a coisa complicava. “Em 1856, a comunicação entre o Mato Grosso e o Atlântico era feita através da bacia do rio da Prata. A Guerra do Paraguai interrompeu essa via, que foi reaberta em 1870”, diz o pesquisador Edil Pedroso da Silva, autor de Nos Caminhos Fluviais de Mato Grosso.
Se quisesse pegar um sol em Copacabana, o mato-grossense tinha que passar por 3 países (Paraguai, Argentina e Uruguai). Os barcos zarpavam pelo rio Cuiabá, alcançavam o São Lourenço e daí o Paraguai; deste, atravessavam Corumbá (MS) e Assunção, seguindo pelos rios Paraná e Prata até enfim chegar ao Atlântico. O trajeto levava em média 30 dias e o luxo dependia do tipo de embarcação.
O vapor Coxipó, por exemplo, era tão grande que tinha até galinheiro. Em 1884, o alemão Karl von den Steinen viajou nele rumo a Cuiabá e anotou em seu diário o cotidiano da aventura. Todos acordavam cedo e tomavam café, chá ou conhaque; almoçavam às 10 horas e jantavam às 17 horas. Os homens se reuniam na mesa contando piadas até altas horas. As mulheres dormiam “apinhadas como sardinhas em lata”, ocupando bancos e às vezes o piso dos camarotes. Não bastasse o calor, o ranger das madeiras e as picadas de mosquitos, muito gringo morria de susto quando peixes saltavam para dentro do barco. O pior era quando ele encalhava em tocas de jacarés.
No Sudeste, as viagens eram um pouco mais fáceis. Um dos caminhos mais freqüentados era a estrada Real, que cresceu com o escoamento de metais e pedras preciosas e com a chegada de trigo, bebidas e outros suprimentos de Portugal. No início, os viajantes saíam a pé ou a cavalo de São Paulo, passavam por onde é hoje Lorena (SP) e entravam em Minas Gerais pelo município de Passa Quatro (pois tinham que passar por 4 pontes) rumo a Ouro Preto.
“Os bandeirantes iam no sentido da aventura, em busca do Eldorado, sem saber se voltariam vivos”, diz Eberhard Hans Aichinger, diretor do Instituto Estrada Real. Como o porto de escoamento era Paraty, o trecho que ligava a cidade a Ouro Preto ficou conhecido como Caminho Velho. Para percorrê-lo, levava-se de 75 a 90 dias.
Por volta de 1790, a mudança do porto para o Rio de Janeiro demandou outro caminho que ligasse Ouro Preto à costa carioca – daí a construção do Caminho Novo. Essa rota consumia 25 dias de galope (hoje são apenas 5 horinhas de carro). Com a busca frenética por diamantes, a estrada Real ganhou um terceiro caminho até a região de Diamantina, totalizando 1 400 quilômetros. Ao longo do percurso, apareceram postos de abastecimento onde o pessoal plantava milho, feijão e mandioca e criava porcos e galinhas. Em vez dos atuais radares de velocidade, os viajantes eram surpreendidos por pontos de roubo. O alto da serra da Mantiqueira virou um clássico da tocaia. “Os assaltantes ficavam ali esperando para abordar as tropas fatigadas”, diz Aichinger. “Tanto que o alferes Tiradentes foi contratado pela Coroa para comandar a segurança do Caminho Novo.” Pensando bem, nada como uma filinha de aeroporto.
Para saber mais
História do Turismo de Massa
Marc Boyer, Edusc, 2003.
História das Viagens e do Turismo
Ycarim Melgaço Barbosa, Aleph, 2002.
Turismo no Percurso do Tempo
Mirian Rejowsky (org), Aleph, 2002.
História Social do Turismo
Deis Siqueira, Vieira, 2005.