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Gato – Um Deus para Chamar de Seu

Leia um trecho do novo livro da SUPER – o capítulo sobre o início da domesticação dos gatos.

Por Guilherme Castellar
25 jun 2019, 15h49

“O gato domesticou o homem.” A frase é forte, tem seu efeito. Mas peraí: também se encaixa para quase todos os animais que saíram da selva e trouxemos para perto de nós – uma via de mão dupla, aliás, pois os bichos não entraram nessa desinteressados. A ovelha nos dá o leite ou a lã, e nós retribuímos com feno e segurança contra lobos sanguinários. As abelhas fabricam o mel que adoça o nosso waffle, a própolis para sarar a garganta… e recebe em troca uma caixa segura e transporte para perto das melhores floradas. É o mutualismo, portanto, que configura essa relação doméstica, quando a associação entre dois seres vivos acontece para benefício de ambos. Água e alimento grátis, segurança particular contra presas, plano de saúde e, dependendo do bicho, até um carinho na cabeça, uma coçadinha na barriga. Dá para recusar?

Junto do homem, afinal, a vida fica mais fácil que em campo aberto, sob os olhares famintos de predadores (felinos, principalmente) e as intempéries (secas, tempestades, nevascas). Não por acaso, a expectativa de vida de um animal domesticado é maior que a de seu congênere selvagem – nem precisamos mencionar os animais que vão para o abate. Hoje, com as melhorias na criação, alimentação e cuidados veterinários, os gatos domésticos ultrapassam os 20 anos de idade, enquanto na selva raramente chegam aos 18  (em 2018, o gato doméstico mais velho do mundo tinha 30 anos, segundo o Guinness Book, mas o recorde anterior era de incríveis 38 anos). 

A domesticação é um bom negócio para ambas as partes, mas todos tiveram de ceder em algo.

Ou seja, a domesticação é um bom negócio para ambas as partes, mas todos tiveram de ceder em algo. Os animais abriram mão de sua liberdade; os homens tiveram de encontrar tempo para afeto e cuidados. Quando nossos antepassados, entre 32 mil e 16 mil anos atrás, aceitaram dividir alimento com aqueles lobos que se aproximavam cada vez mais, num primeiro momento podem tê-lo feito pelo prazer da companhia. Mas não devem ter demorado para notar utilidades nos novos companheiros, como os sentidos aguçados que serviam de alarme contra predadores. Atrair e manter essas feras, no entanto, não saía de graça.

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Era preciso dar comida, algo que, naquela época, não brotava da terra – até brotava, mas os primeiros pet lovers da humanidade eram caçadores e coletores, estavam milhares de anos distantes de dominar a técnica do cultivo agrícola. Enfim, conseguir alimento era punk. Especialmente estressante no caso da proteína animal, em que caçar envolvia o risco de você mesmo virar refeição ou morrer num acidente de trabalho. Tinha que valer muito a pena. E valeu: os cães parecem ter sido usados pelos nossos antepassados para ajudar na caça de animais pequenos, como cervos e javalis.

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Mas e o gato? O que nos oferece em troca de tanto carinho e alimento que damos a ele? Há o ronronar no colo. O dormir de conchinha numa noite fria de inverno. As lambidas na mão enquanto os dois assistem TV. O esfregar daqueles tufos de pelo sedosos que faz esquecer qualquer dia pesado no trabalho…

Tirando esses momentos fofos, não sobra muito. Nada que se compare, por exemplo, com os indóceis cavalos selvagens, que domamos para fazer trabalho pesado e nos levar para onde desejamos – até para batalhas sangrentas. E o que seria da humanidade sem o leite da vaca e a carne do boi? Até o descomunal elefante, difícil de ser adestrado, é um ótimo caminhão de carga, e também já foi um aterrorizante tanque de guerra – Alexandre, o Grande, mandava sua infantaria ferir os animais, enfurecendo-os, para as lutas contra persas e hindus. O porco, bom esse, nos dá o bacon e a feijoada – contribuição mais do que suficiente. E o “melhor amigo do homem”, então? O cão, além da amizade fiel, primeiro nos emprestou o potente faro para perseguir a caça e nos proteger de predadores – e, mais recentemente, para impedir atentados terroristas. Ainda hoje, cachorros são adotados para a segurança da casa – que seja, ao menos, para justificar a placa no portão: “Cuidado: cão bravo!” Cães são tão bons guarda-costas que nem precisam ser treinados para reagir quando o dono é ameaçado. 

Mas, de novo: e os gatos? Bom, eles nos deram os memes da internet… O fato é que os felinos extrapolaram a lógica da domesticação. Foram tão bem-sucedidos na conquista dos corações humanos que praticamente nos convenceram de que não precisavam mais trabalhar. A sua companhia bastava! Só que a fama de preguiçosos é recente. Eles foram, na verdade, muito úteis, por milhares de anos. Principalmente no extermínio de pragas: até meados do século 19, os gatos estavam entre os melhores serviços de desratização disponíveis. 

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Sim, eles entraram na história da humanidade para nos proteger dos ratos. Entre 13 mil e 11 mil anos atrás, homens e mulheres começavam a viver o sonho da casa própria – cansados da vida nômade de caçadores e coletores. O Crescente Fértil, área em forma de meia-lua que abraça pedaços do que hoje chamamos de Egito, Palestina, Israel, Síria e Jordânia, estendendo-se até o sul do Iraque, foi palco do nascimento da civilização. Era um lugar abençoado, oásis banhado por quatro famosos rios: Nilo, na África, Jordão, Tigre e Eufrates, no Oriente Médio. Lugar perfeito para o povo natufiano usar como laboratório para domesticar plantas e animais. O nascimento da agricultura e da pecuária representou um grande salto tecnológico, um passo imenso para a humanidade, que pôde finalmente criar raízes e parar de perambular atrás de alimentos – focando sua energia para desenvolver ainda mais sua inteligência. Agora era só tirar da terra. Surgiam os conceitos de lar, cidade e produção. 

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Porém, nem tudo eram flores. Como o prefeito de qualquer cidadezinha sabe, aglomerações humanas geram também dor de cabeça. A colheita, por exemplo, precisava ser armazenada para não se deteriorar. Então inventaram os silos. “Ideia brilhante”, pensaram os Mus musculus domesticus, nome científico e engraçado para o popular camundongo. De certa forma, quando o homem inventou a civilização, inventou também a praga dos ratos-domésticos – até então, esses roedores eram selvagens, alimentavam-se de grãos também selvagens. Arqueólogos acharam restos de dentes de camundongos em celeiros datados em 11 mil anos, em Israel. Na Síria, encontraram um pingente na forma de cabeça de rato, de cerca de 9.500 anos. Sinal de que já faziam parte do cotidiano dos primeiros cidadãos. Biólogos evolucionistas acreditam que os M. m. domesticus se aproximaram dos povoamentos de Homo sapiens pois, por mais perigoso que fosse, era mais proveitoso do que competir com os camundongos selvagens. Outro atrativo para os roedores podem ter sido as nutritivas pilhas de lixo, que se mostravam um problema urbano já naquela época. 

E foi assim que, sem querer, o homem domesticou o rato. Mas essa movimentação toda de pequenos animais nos primeiros assentamentos obviamente chamou a atenção de predadores. E aí pronto: os gatos selvagens que viviam no Crescente Fértil também acharam brilhante a ideia dos silos natufianos. Começava ali o jogo de gato e rato – e de gato e Homo sapiens. 

Para os primeiros agricultores, os pequenos felinos foram uma dádiva divina. Um serviço de controle de pragas eficiente e gratuito. Não sabemos quando esse contrato foi firmado, nem o local exato e muito menos de quem partiu a iniciativa. Dificilmente teremos certeza de quem flertou primeiro e quem primeiro se entregou. Mas é razoável desconfiar que as cartas foram dadas ao acaso. A abundância de ratos era um bufê irresistível. Ou seja, motivo suficiente. Também pode ter acontecido do mesmo jeito que ocorre hoje: animais silvestres encaram o medo dos humanos e adentram regiões urbanas por necessidade, quando seus habitats estão prejudicados. Raposas, na Inglaterra, são vistas com frequência revirando lixo. Na caatinga de Pernambuco, em 2016, foram registrados ataques de jaguarundis (Puma yagouaroundi) – um felino comum (mas pouco famoso) em toda a América Latina – contra cabras de produtores rurais. Se essas feras encaram esse risco de se aproximar dos humanos, é sinal de que estão com dificuldade de achar presas em seu ambiente natural. No caso do sertão pernambucano, a culpada é a forte seca que castigou a região nos anos anteriores. Algo nessa linha também pode ter acontecido, há 10 mil anos, com o antepassado dos gatos domésticos. 

Há ainda uma justificativa menos nobre para os gatos se aproximarem das aldeias: o mesmo lixo que atraiu os ratos. Na natureza selvagem, fome e sexo costumam ser as prioridades de qualquer animal. Gatos são exímios caçadores, mas, num contexto de ausência de alimento, são espertos o suficiente para explorar recursos em meio ao lixo. Essa é uma teoria menos glamorosa para o início da domesticação, mas não menos realista. Basta lembrar que gatos ferais fazem isso até hoje, revirando lixo nas cidades. 

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Mais curioso é que os gatos selvagens que encararam o risco de se meter no meio desses povoamentos tinham algo diferente dos demais Felis silvestris lybica que habitavam a região. Eram legítimos lybicas – segundo o teste de paternidade conduzido pelo time de pesquisadores de Carlos Driscoll –, mas suas personalidades tinham sutilezas que os distinguiam dos demais gatos-selvagens-africanos, mais reservados e ariscos. Esses fundadores da subespécie domesticus eram mais adaptados para o ambiente humano. Estavam longe de serem dóceis, mas eram menos arredios. A ponto, inclusive, do limite de seus territórios selvagens fazer fronteira com esses aglomerados humanos – o que já demonstrava certa tolerância. 

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(Lisa Stirling/Getty Images)

Vale dizer que um animal só é considerado manso se topa deixar suas crias perto de pessoas. Quando a ninhada nasce em ambiente humano, temos um quadro de domesticação. No caso dos felinos, deve ter levado tempo até chegar a esse ponto. Foi quando passamos a recompensar e alimentar as pequenas feras com leite e miúdos como forma de encorajá-las a ficar por perto. E aí a seleção natural fez o resto. Os indivíduos mais sociáveis entre os que vinham comer os ratos nas aldeias eram os que ganhavam mais carinho e comida. Esses se tornaram mais saudáveis e passaram a viver mais. Deixaram mais descendentes que os felinos antissociais, que preferiram uma vida mais dura no mato. Com o tempo, os bichanos mais amigáveis foram se proliferando pelos vilarejos de todo o Crescente Fértil. E assim os Felis silvestris lybica começaram a virar Felis silvestris catus. Um ciclo que se fechou por completo quando, enfim, os humanos – crianças, principalmente – começaram a ter contato com os filhotes desses bichanos. Aí a sedução foi completa. Afinal, quem consegue resistir aos olhos esbugalhados de um gatinho? 

Claro, nenhum dos envolvidos deve ter tido pressa. O processo de amansamento foi lento. Até porque o gato não ajudava. Idiossincrasias felinas tornaram a sua domesticação um fenômeno especial: mesmo convivendo em vilarejos humanos, os mais mansos ainda procriavam com gatos selvagens – eles fazem isso até hoje, como vimos no capítulo anterior. E a independência felina também complicava. A maior parte dos outros animais domesticados pelo homem nessa mesma época tinha comportamento coletivo, vivia em manadas ou bandos. Na domesticação deles, o homem foi quem assumiu o papel de líder e passou a ditar as regras. Mas não com o gato – esse bicho independente e competitivo por natureza, que não gosta de dividir território nem fontes de alimento. Foi um processo, enfim, lento, cheio de idas e vindas. E só dá para contar essa história com muitas lacunas, pois faltam testemunhos históricos e arqueológicos. 

Além disso, a genética tem limitações técnicas. Biologistas usam o que eles chamam de “relógios moleculares” para identificar mutações no DNA que indicariam os marcos evolutivos de um ser vivo. É como os historiadores fazem com grandes episódios históricos: “Olha, aqui houve a queda do muro de Berlim, daí em diante a civilização mudou significativamente”. Mas tal ferramenta só funciona em escalas de tempo maiores, não num espaço de 11 mil anos, quando os natufianos começaram a atrair ratos com seus estoques de grãos. Aí é preciso apelar para a arqueologia.  

Em 2001, arqueólogos do Museu de História Natural de Paris que escavavam uma cova rasa em uma vila neolítica em Shillourokambos, na ilha mediterrânea de Chipre, deram de cara com um gato. Com os restos dele, na verdade. O esqueleto completo de um felino com cerca de 8 meses de idade. E ele não estava sozinho. A menos de 40 cm de distância, jazia a ossada de um adulto humano (não se sabe o sexo). Provavelmente alguém que gozou uma vida de status elevado, já que foi enterrado com ferramentas de pedra polida, machados de sílex e um pedaço de ocre, usado para pintura. Os corpos de ambos estavam voltados para a mesma direção: Oeste. Os arqueólogos e seus colegas suspeitam que homem e criatura foram enterrados no mesmo jazigo intencionalmente, o que pode sugerir que o bicho seria especial para o falecido. As duas ossadas foram datadas com 9.500 anos. Cientistas sabem que os Homo sapiens já faziam enterros com honraria desde 14 mil anos atrás. “Como gatos não são nativos das ilhas mediterrâneas, sabemos que foram trazidos de barco, provavelmente da costa oriental ao lado”, escreveu Carlos Driscoll em seu estudo sobre a domesticação dos felinos. O bichano estava lá por utilidade prática ou por ser de estimação. “Juntos, o transporte de gatos à ilha e o enterro do humano próximo ao animal indicam que os povos do Oriente Médio já tinham uma relação especial, intencional, com os felinos há quase 10 mil anos.” 

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Os povos do Oriente Médio já tinham uma relação especial com os felinos há quase 10 mil anos.

A ilha mediterrânea, aliás, parece ter sido um grande gatil. Outras ossadas do felino foram achadas por ali, inclusive uma datada de 7.500 anos, também enterrada junto de um humano. Mas, de modo geral, após o gato de 9.500 anos, sepultado com o dono, a história vai ficando mal contada. Há uma lacuna de pistas arqueológicas da presença de gatos perto de aglomerados humanos. Só surgem rastros isolados aqui e ali. Em um sítio, em Israel, foi achado o dente molar de um felino. Datação histórica: 9 mil anos. Outro dente apareceu mais tarde, e de uma época menos distante, um com 4 mil anos de idade, no Paquistão. Mas eles não dizem muito sobre seus donos e como foram parar próximos de aglomerados de seres humanos. Afinal, enterros coletivos – uma informação valiosa para atestar uma proximidade quase afetiva entre homem e animal – são raros no caso de gatos. Mas há o registro de mais um, com 6.500 anos: no túmulo de um artesão do Egito pré-dinástico, havia também ossos de uma gazela e de um gato. A primeira deve ter sido colocada como alimento para a travessia pós-morte – coisas da fé egípcia. O gato provavelmente foi o bicho de estimação do defunto. Já entre os cães, a honra de ser sepultado com o seu dono era rotineira desde 8 mil anos atrás, o que revela que nesse tempo os lobos domesticados gozavam de um status muito mais nobre que o dos gatos: eram, disparado, os melhores amigos dos homens.

 

Mas, em 2013, um achado quase mudou os primeiros capítulos da biografia do nosso incompreendido Felis catus. Yaowu Hu e seus colegas da Academia de Ciência publicaram as conclusões de um achado impressionante. Em um sítio arqueológico de uma das primeiras vilas agrícolas da China, em Quanhucun, na província de Shaanxi, havia restos de diversos felinos que, segundo as análises biométricas e do colágeno dos ossos feitas pelos pesquisadores, deviam ser da mesma subespécie do gato doméstico. A datação via carbono indicou que o vilarejo tinha entre 5.280 e 5.560 anos de idade. No lugar ainda acharam recipientes para guardar grãos projetados para impedir a entrada de roedores. Ou seja, a praga do rato também era comum no outro lado da Ásia. Mas a descoberta era mais empolgante ainda: análises dos ossos dos gatos sugeriram que eles também se alimentavam de painço, o grão que era base da dieta dos moradores locais. Isso significa que esses felinos, hipercarnívoros, estavam comendo a mesma maçaroca feita de gramíneas com a qual seus donos se deliciavam. Era a primeira prova da relação comensal entre gatos e homens – e o mais antigo testemunho cabal da domesticação do Felis catus. Mais que isso: ela estava acontecendo a milhares de quilômetros do Crescente Fértil, terra do seu progenitor F. s. lybica.

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Incrível. Todavia, o espasmo da comunidade científica durou cerca de dois anos. Em janeiro de 2016, Jean-Denis Vigne, o arqueólogo francês que achou o gatinho de Chipre, voltou a analisar os ossos e acabou com a festa oriental: os felinos de estimação seriam de outra espécie, o gato-leopardo (Prionailurus bengalensis), natural daquela região e muito parecida com os gatos domésticos. Nem chegava a ser outra subespécie de Felis silvestris. Um erro grosseiro dos chineses. Mas que não anula a importante descoberta de que, naquele lado do planeta, os agricultores estavam tentando domesticar felinos. E com o mesmo objetivo: caçar ratos. Só que sabemos que não deu certo, já que não há o DNA de nenhum P. bengalensis entre os gatos domésticos de hoje – na verdade, há, na raça doméstica Bengal, o híbrido californiano de que já falamos aqui, cruzado propositalmente com Felis catusmilhares de a≠nos depois, por criadores profissionais. 

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Do estudo chinês, restou um legado importante: uma amostra de que mesmo gatos selvagens, que se alimentam exclusivamente de proteína animal, aceitaram comer carboidratos e proteína vegetal oferecida pelos donos. Essa capacidade, inclusive, é uma das (poucas) características fisiológicas que diferem os felinos selvagens dos domésticos: estes possuem o intestino mais longo, capacidade adaptativa desenvolvida justamente para processar outras coisas que não apenas carne.  

O que tentaram fazer com o gato-leopardo na China obviamente se repetiu em outros cantos do planeta. Felinos selvagens deviam ser capturados a torto e a direito e levados para casa. Fosse para ajudar no controle de roedores, fosse pelo mesmo motivo que até hoje move o nosso interesse por eles: gatos são feras lindas e sedutoras. E essa perspectiva se aplica mesmo à época em que éramos nômades: é fácil imaginar a cena de um caçador capturando filhotinhos de gato selvagem para presentear a mulher ou o filho. Entretanto, esses bichos ariscos e desconfiados se mandavam na primeira oportunidade. A diferença é que com o Felis silvestris lybica aconteceu algo diferente: eles ficaram. 

E não foi na China que isso aconteceu, mas no Crescente Fértil e também numa região um pouco para cima, na Anatólia (península onde está a Turquia). Hoje sabemos que nesse canto do planeta aconteceu o primeiro grande evento de domesticação do F. s. lybica  comprovado geneticamente por um estudo de junho de 2017, de um time liderado pelo paleontogeneticista Claudio Ottoni, da Universidade de Oslo. Ele foi além do trabalho de Driscoll e, além de colher DNA de gatos vivos, analisou amostras genéticas de ossos, dentes, pele e cabelos de mais de 200 gatos encontrados em sítios arqueológicos no Crescente Fértil, na África e na Europa.

As descobertas de Ottoni sugerem que o DNA do gato que desenvolveu uma relação comensal com as primeiras comunidades agrícolas no Crescente Fértil, a partir de 8 mil anos atrás, bate com o dos felinos domésticos encontrados na Europa e Oriente Próximo, 2 mil anos depois. Isso sugere que agricultores migratórios provavelmente levaram o bichano com eles, já que eram uma “ferramenta” muito eficiente contra os ratos. Carregaram os pequenos caçadores para o Leste Europeu, mais para dentro da Ásia, e talvez para o Egito. Lá, milhares de anos depois, aconteceu o segundo grande episódio domesticador. E esse gerou marcas mais profundas no Felis catus que estava nascendo. 

A partir de 4 mil anos atrás, vestígios arqueológicos da domesticação do gato voltam a aparecer às pencas no noroeste da África. Um deles é uma parede pintada na tumba de Nakht, em Tebas, de um gato de estimação se deliciando com um peixe aos pés de uma cadeira em que sentava a esposa de um nobre. Essa figura, com 3.550 anos, é representativa: o felino já estava dentro de casa e comia carne, alimento valioso na época. Duzentos anos antes, outra obra mostra um felino preso pelo pescoço aos pés de uma mesa. Em uma tumba de cerca de 4 mil anos, em Abydos, ao norte do Egito, foram enterrados também pelo menos 17 gatos. E, junto deles, inúmeros potinhos que provavelmente continham leite. Alguém arrisca dizer que esses animais não seriam de estimação?

Também os egípcios usavam os gatos como controle de pragas de roedores. Mas não só para isso. Os felinos tinham ainda uma função de “cães de guarda”: o F. s. lybica é um dos poucos predadores que sabem caçar cobras (hoje o gato é o único bicho de estimação que consegue se virar com uma serpente). O assédio desses répteis escamosos devia ser um problemão com as crianças da época – mais um motivo para o gato cair nas graças dos egípcios. Falando em graça, o gato era tão querido e tão útil para o povo do Egito que ele levou esse amor a outro patamar: o animal começou a ser visto como um presente dos céus. E olha que não faltavam deuses para eles. Não tardou, então, para que os egípcios criassem um deus-gato. No caso, uma deusa-gata. 


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