Genoma: O livro da vida, edição integral
É uma revolução: a ciência quer decifrar o genoma - a enciclopédia que registra em código toda hereditariedade do homem.
Flávio de Carvalho
No começo, a idéia tinha um tom quixotesco. Uma turma de cinqüenta biólogos, reunidos em março de 1986 no Laboratório Nacional de Los Alamos, famoso por ter sido palco do desenvolvimento da bomba A americana, discutiam uma empreitada fora do comum, tanto que um dos presentes a comparou à saga dos cavaleiros da Távola Redonda em busca do cálice de Cristo. “Decifrar o genoma humano vai ser o Santo Graal da Genética” ousou, entusiasmado o biólogo norte-americano Walter Gilbert, prêmio Nobel de Química de 1980, para uma platéia entre cética e espantada. Para começar, mesmo os geneticistas evitavam usar a palavra genoma, pois designa algo amplo demais – o patrimônio completo da herança genética de um ser vivo.
Mas, ao fim da reunião de Los Alamos, não só a palavra acabava de ser entronizada, como a proposta de Gilbert tinha seduzido seus colegas. Nascia, em suma, um dos mais audaciosos projetos de investigação científica já imaginados pelo homem – desvendar, um a um, todos os segredos da hereditariedade e do código genético humano. Três meses depois, em outra reunião, Gilbert rabiscou no quadro-negro a cifra que daria ao projeto uma dimensão histórica: 3 bilhões de dólares, a serem gastos ao longo de quinze anos. A partir de então, a idéia passou a conquistar adeptos entre cientistas e leigos, todos de olho no fruto dourado que ela promete – revolucionar a Medicina, descobrindo a origem e talvez a cura das mais de 3 mil doenças hereditárias que afligem a humanidade.
Numa escalada sem precedentes na história da ciência, pouco menos de dois anos depois de lançado, o Projeto Genoma entrou na reta final para obter o apoio financeiro do governo dos Estados Unidos. E, em fevereiro último, foi oficialmente apoiado pela Associação Americana para o Progresso da Ciência (equivalente à SBPC brasileira). Trata-se de um avanço portentoso para um ramo do conhecimento com apenas um século de existência. De fato, faz pouco mais de cem anos que o abade austríaco Gregor Mendel (1822-1884) lançou as bases da Genética. Foi somente em 1944 que se descobriu o lugar onde se escondia, nas células, a molécula portadora das regras da hereditariedade.
Mais recentemente ainda, em 1953, os americanos James Watson e Francis Crick descobriram enfim a estrutura dessa prodigiosa molécula que faz passar, de geração em geração, todos os segredos da vida. Batizada de DNA, ácido desoxirribonucléico, ela comanda tudo: faz uma única célula de um embrião transformar-se nos 40 trilhões de células de um humano adulto e cumpre centenas de milhares de outras tarefas como determinar cada característica de um ser vivo. Ostenta a condição de mais longa molécula do corpo humano: completamente desenrolada alcança quase 1,80 m. Mas, aninhada no núcleo de uma célula, é discreta: ocupa o modestíssimo espaço de 6 milionésimos de metro.
Chamar o genoma de livro da vida, como fazem os cientistas, é mais que uma analogia. De fato, interpretar o que contém a molécula de DNA é um trabalho semelhante ao de organizar uma enciclopédia com todos os seus volumes, capítulos, verbetes (com as respectivas sentenças, palavras e sinais de pontuação). Os 23 pares de cromossomos armazenados no núcleo das células representariam os volumes da coleção, com os membros de um par trazendo informações mais ou menos correlatas. O par XX ou XY, por exemplo, tem a ver com a determinação do sexo. Se os cromossomos são os volumes, os capítulos em que se dividem são os genes – aproximadamente 100 mil ao todo, carregando as receitas para a fabricação das proteínas necessárias a coisas tão variadas como a nutrição das células ou a constituição dos músculos ou ainda as defesas contra as infecções.
O alfabeto que a natureza usa para escrever essas mensagens químicas é de uma simplicidade espantosa. Tem apenas quatro letras, chamadas bases, que andam sempre aos pares e têm os nomes de adenina (A), tinida (T), citosina (C) e guanina (G). A base A só faz par com a T, assim como C com G. Também o modo de escrever nessa curiosa língua é peculiar: na verdade, o livro inteiro da vida tem apenas uma única e compridíssima linha que lembra uma dupla espiral ou uma escada retorcida. Cada degrau é formado por um par de bases. Uma seqüência de três degraus forma uma palavra – o tripleto, na linguagem dos cientistas. Todas as palavras tem o mesmo tamanho. O vocabulário que essas palavras formam também é restrito — apenas 20 significados, cada qual correspondendo a um aminoácido, as substâncias básicas da vida que chegam às células via alimentos.
Os aminoácidos se juntam numa seqüência vigorosamente determinada pelos genes e assim constituem as proteínas que, por sua vez, constróem os tecidos, músculos, nervos, ossos – enfim, todo o organismo e todas as substâncias de que ele necessita. Ora, como 4 letras combinadas 3 a 3 produzem 64 possíveis resultados e como apenas 20 dessas palavras bastam para codificar aminoácidos, o que acontece com os 44 restantes?
A ciência ainda não tem uma resposta absolutamente segura para isso. Mas. ao que tudo indica. muitas dessas são apenas sinônimos, ou seja, codificam o mesmo aminoácido. Outras não codificam coisa alguma — aparentemente funcionam como uma espécie de ponto final. Quando aparecem, é sinal de que o gene já acabou de fornecer a seqüência completa de uma proteína, liderando a maquinaria celular para outras atividades. Como se não bastasse toda essa semelhança, algumas combinações de palavras genéticas agem como advérbios, regulando a intensidade da ação de outros genes. Em todo caso a gramática do livro da vida só poderá ser plenamente entendida quando todas as seqüências dos pares de bases formados pelas substâncias A, T, C e G – que constituem o genoma — forem identificadas e postas na ordem certa.
Compreende-se o custo e a duração do Projeto Genoma: o número de bases a seqüenciar é da ordem de 3 bilhões. Para se ter idéia da enormidade da tarefa, a mais comum e mais estudada das bactérias, a Escherichia coli, que habita o intestino humano, com menos de 2 mil genes, até hoje não teve seu DNA completamente decifrado. No caso da espécie humana, só se conseguiu por enquanto seqüenciar, isto é, saber letra por letra, apenas 1 por cento dos genes. O Projeto Genoma parte da premissa de que será possível completar esse seqüenciamento em quinze anos, usando máquinas automáticas. Numa segunda fase deverão entrar em cena sistemas avançados de computação para interpretar os resultados do seqüenciamento.
Isso porque dos aproximadamente 3 bilhões de bases do genoma apenas 5 por cento parecem comprometidos com a síntese de proteína. Os 95 por cento restantes, segundo os cientistas, formam uma espécie de genes obsoletos ou são simplesmente mensagens sem sentido – algo como ruídos de estática numa transmissão de rádio. Para ajudar a resolver esse problema, até a CIA, o serviço de espionagem americano, deu sua contribuição. Modelos de uma futuro máquina de seqüenciamento vão usar um chip projetado originalmente para separar automaticamente informações valiosos nos milhares de hora de sinais de rádio soviéticos gravado pela CIA. Esse chip supersecreto vai garimpar no genoma os 5 por cento de palavras que interessam de fato aos cientistas.
O certo é que a ciência e talvez o mundo não serão mais os mesmos depois do seqüenciamento completo do genoma. Desde já, aliás, tem-se uma formidável amostra do que poderá ser esse futuro nas proezas da engenharia genética, a manipulação de genes para a produção de substâncias como a insulina, ou para defender plantações de pragas ou ainda – a grande meta — para cortar pela raiz o mal das doenças hereditárias. Nessa área, as técnicas e instrumentos são tão fora do convencional como o chip da CIA. Para começar, quando um pesquisador fala num banco ou livraria de genes não está se referindo a algo impresso.
Aqui, as bibliotecas são coisas vivas. Tome-se, por exemplo, colônias de Charon – 21, um vírus que não transmite doenças. De posse delas, o geneticista recorre à engenharia genética cara abrigar dentro do seu código genético trechos do código humano. Ou seja, abre o DNA do vírus e nele emenda um pedaço do DNA humano. Resultado: o vírus passa a produzir as mesmas substâncias que tais genes fariam produzir numa célula humana. A ferramenta básica nesse trabalho, como à tesoura para o alfaiate, são as enzimas de restrição, as famosas laminas químicas que cortam o microscópico DNA em pontos exatos que não poderiam ser alcançados nem pelo mais fino bisturi.
As enzimas foram descobertas quase por acaso. Os cientistas notaram que certas bactérias conseguiam safar-se de infecções liderando série de elementos que matavam imediatamente o vírus. Ao fazer a autópsia desses vírus, descobriram que seus DNAs estavam completamente picotados.
Atualmente, já foram identificadas perto de cem dessas enzimas, cada uma cortando o DNA num lagar certo. Outra ferramenta indispensável são as sondas, fragmentos de DNA correspondentes a um trecho de um cromossomo, que podem ser inseridos em vírus de Charon – 21. O cientista não sabe que material genético humano os vírus têm armazenado em seus DNAs. Supõe-se, por hipótese, que esse material venha do cromossomo Y, que define, entre outras coisas o sexo masculino.
Nesse cromossomo, porém, estão muitas seqüências silenciosas. O trabalho do geneticista, então, é localizar o gene que interessa dentro do cromossomo e descobrir para que ele serve. Pois – e isso é importante – , mesmo quando ficar pronto o seqüenciamento do genoma humano, não se saberá automaticamente qual o gene que codifica a proteína responsável, digamos, pela cor dos olhos ou por determinada doença.
Em outras palavras, o livro da vida não vem acompanhado de algo parecido à pedra de Roseta, a partir da qual foi possível decifrar os hieroglifos do antigo Egito. Com métodos químicos, o geneticista abre em dois a espiral do DNA do vírus, um trecho do qual é igual ao humano.
E como serrar uma escada no sentido longitudinal no meio de cada degrau. Depois, faz-se o mesmo com o DNA do cromossomo Y de uma pessoa que tem alguma doença genética. As duas metades – a do vírus, com um trecho do DNA humano, e a do doente – vão-se encaixar como peças complementares de um jogo de dominó. Se a sonda não grudar em lugar algum do cromossomo, é sinal de que a pessoa não tem esse gene. Ora, como o geneticista conhece os sintomas – da doença, pode afirmar que a sonda inserida no vírus Charon – 21, que não grudou no cromossomo do doente, é o gene que falta – e sua ausência provoca a doença detectada no paciente.
O geneticista pode assim mapear o cromossomo, indicando onde fica o gene ausente responsável pela doença. Em seguida, ele analisa a proteína produzida pelo trecho do DNA humano inserido no vírus. A reposição dessa substância impedirá que a moléstia se manifeste. No futuro, especula-se, será possível fazer algo mais sensacional ainda: mudar as próprias proteínas. Hoje, a engenharia genética permite implantar numa bactéria, por exemplo, o gene que codifica a proteína responsável pela produção de insulina. Amanhã, o que se pode chamar de engenharia de proteína permitirá criar a proteína da insulina. É fácil perceber as conseqüências revolucionárias da existência de proteínas sob medida: basta lembrar que quase todas as substâncias produzidas pelas células vivas são proteínas e são elas que controlam quase todas as funções biológicas.
A nova Medicina não vai mais diagnosticar os males pelos órgãos nos quais se exprimem, mas diretamente o – na bagagem hereditária das pessoas. – Um exame pré-natal, por exemplo – revela que a criança é portadora de fernilcetonúria, defeito no gene que produz uma proteína encarregada de metabolizar o aminoácido fenilalanina. Quando a doença se manifesta, é tarde demais: a criança fica retardada. – “No caso da detecção precoce, examinando-se por meio de técnicas químicas o material colhido no liquido amniótico da gestante, uma dieta especial, sem aquele aminoácido, nos primeiros anos de vida da criança, salvará sua vida”, explica a biomédica Marilia Cardoso Smith, da Escola Paulista de Medicina. “O segredo é tratar do paciente antes que a doença se manifeste.”
No Brasil, onde se pode contar nos dedos o número de especialistas dedicados ao estudo dos genes humanos e onde eles às vezes precisam esperar uma eternidade pelo material de pesquisa importado, ainda se está relativamente longe dos milagres que talvez sejam banais depois da decifração do genoma. Marília Smith e sua equipe, por exemplo, não contam com instrumentos mais sofisticados do que um microscópio ótico. Mesmo assim, já trabalham na ante-sala do futuro, salvando vidas. Dentro de algumas décadas, suas técnicas vão parecer coisa de museu. Afinal, o genoma decodificado será então um banco de dados acessível a todos os centros de pesquisa e investigação.
Consultando a enciclopédia do genoma humano, o médico localizará o gene defeituoso de um paciente. Uma cópia perfeita desse gene, tirada de uma pessoa saudável, será introduzida num vírus inócuo, que passará a sintetizar a proteína ou o hormônio que falta ao doente. Amo e senhor de seu próprio genoma, o homem dará um salto inimaginável – se souber fazer uso desse segredo que a natureza guarda tão zelosamente.
Para saber mais:
(SUPER número 4, ano 3)
(SUPER número 7, ano 6)
(SUPER número 12, ano 7)
A sentença é genética
(SUPER número 11, ano 8)
A célula é como uma cidade que guarda numa biblioteca uma grande enciclopédia de 46 volumes: os 23 pares de cromossomos.
Cada cromossomo é um livro com milhares de páginas onde estão todas as informações genéticas do organismo humano.
Cada gene é um capítulo que ensina como sintetizar as proteínas (a cor da pele, por exemplo, é resultado da presença ou não da melanina).
Cada tripleto é uma palavra que especifica um aminoácido, ou a parada de uma reação química ou o início de outro processo.
Cada nucleotídeo é uma letra com que se descreve tudo o que é vivo.
Como funciona o seqüenciador
Com as técnicas atuais, uma equipe de mil cientistas levaria quase um século para identificar todos os 3 bilhões de bases do genoma humano. Mas já existe um equipamento capaz de fazer em apenas três dias o trabalho que um técnico faria em um ano. É o seqüenciador, uma aparelho de 100 mil dólares desenvolvido pelo bioquímico Leroy Hood, da Califórnia. O seqüenciador funciona como um híbrido de picotador de papel com olho eletrônico usado em corrida de cavalos. Primeiro, o fragmento de DNA cuja seqüência se quer descobrir é copiado milhares de vezes. As cópias são divididas em quatro grupos e a cada um se adiciona uma enzima de restrição – a tesoura química que corta o DNA em lugares específicos Formam-se então quatro tipos de sopas químicas de letras, cada uma terminada numa das bases A,G,C e T.
O passo seguinte é tingir essas sopas com um corante fluorescente diferente. As sopas, a seguir, são depositadas na ponta de uma placa de vidro coberta com uma emulsão neutra. A placa é uma espécie de pista de corrida para as moléculas pois o pólo positivo que tem na outra ponta atrai os fragmentos de DNA, de carga elétrica negativa. Quanto menor a molécula, ou seja, quanto menor o número de bases que ela carrega (o que depende do lugar onde foi cortado o DNA), mais rápido ela corre para a linha de chegada iluminada por um laser. Cada fragmento que passa por ele brilha na cor com o qual foi tingido e que identifica a sua origem – do grupo A, G, C ou T. A colocação final, anotada por um olho eletrônico sensível a cores, coincide exatamente com a ordem em que se encontravam as bases no segmento original. Está decifrada uma fração do genoma.
Herança genética pode ter dono?
Quando se começou a falar a sério em decifrar o genoma humano, houve cientistas que compararam o projeto ao episódio bíblico da expulsão de Adão e Eva do paraíso: o DNA seria a árvore do bem e do mal, cujos segredos dariam ao homem poderes para os quais ele não estaria preparado. O rol de conseqüências nefastas da identificação da bagagem genética seria de arrepiar os cabelos: a criação acidental de um supervírus que acabaria com a raça humana ou, mais terra a terra, a possibilidade de empregadores recusarem trabalho a candidatos geneticamente suscetíveis a certas doenças – ou, ao contrário, o favorecimento de trabalhadores portadores de certos genes.
Além disso, dependendo da legislação, os exames genéticos pré natais poderiam transformar-se em sentenças de morte para milhares de fetos. E a quem pertencerá o genoma? Um cientista que seqüenciar um gene poderá reivindicar direitos autorais sobre ele, cobrando royalties sobre todas as aplicações médicas de sua descoberta? Para o Prêmio Nobel Walter Gilbert, nada mais justo do que o copyright dos genes seqüenciados. “Os hospitais não cobram pelos serviços que prestam?”, argumenta ele. Já outro Prêmio Nobel (de Medicina, 1980), o francês Jean Dausset, combate a idéia. “A herança genética pertence a toda a humanidade e não pode ser propriedade de empresas”, contra-ataca.
Fiel a suas convicções, Dausset distribui de graça a pesquisadores do mundo inteiro sondas de DNA que ajudam a mapear a posição dos genes nos cromossomos – com a condição de que as descobertas resultantes também fiquem à disposição de quem precisar, sem pagamentos. Os pesquisadores brasileiros ainda estão longe desse debate que corre entre seus colegas americanos e europeus. Mas, pelo menos para um cientista familiar com a questão, não há por que se atemorizar. Diz Carlos Alberto Moreira Filho, professor de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP: “Os riscos são grandes, mas seguramente a humanidade saberá controlar os abusos para desfrutar dos enormes benefícios desse conhecimento novo”.