Uma seleção Artificial
Graças ao transplante de genes, a engenharia genética começa a produzir animais com características que não existem na natureza. Eles abrem fantásticas perspectivas à pesquisa científica, à produção de drogas difíceis de se obter e à alimentação da humanidade. São os chamados animais transgênicos, portadores de genes "estrangeiros" que o homem introduziu artificialmente em seu organismo.
Fátima Cardoso
Em menos de dez anos, eles saíram da ficção para entrar na história. Desde 1982, quando dois grupos de pesquisadores americanos das universidades de Washington e Pensilvânia criaram camundongos gigantes, animais antes inexistentes na natureza começaram a ser produzidos pela engenharia genética. Porcos maiores e com menos gordura, camundongos portadores de células cancerígenas ou do vírus da AIDS e camundongas produzindo leite com uma substância para tratar ataques cardíacos já são realidade em laboratórios. Chamados animais transgênicos por carregarem em seu DNA genes “estrangeiros” vindos de outros organismos, eles são mais que um simples exercício de criação e manipulação da vida. Os transgênicos foram criados e são pesquisados com propósitos muito bem definidos – científicos e comerciais.
Falar em animais transgênicos não significa enumerar uma lista de monstrinhos. Muitos deles têm aparência absolutamente normal, a despeito das fantasias sobre bichos com corpo de boi e cabeça de cavalo, mesmo porque esses fazem parte de outra história. São os híbridos, simples cruzamento de duas espécies que pode produzir coisas exóticas como a cabra-ovelha, mas nada têm a ver com o sofisticado transplante de genes. Os animais transgênicos existem por alguns motivos básicos. O primeiro é servir aos cientistas como modelos vivos para observação dos mecanismos que regem o funcionamento dos genes.
“Num, animal, o gene que nos interessa estudar fica exposto a tudo o que acontece num organismo vivo, como a ação de hormônios e de outros fatores reguladores”, diz Vera Soares, professora do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Um animal desses também é capaz de funcionar como “fábrica” em larga escala de algumas drogas difíceis de se conseguir por métodos tradicionais.
A outra razão que move os criadores desses animais é econômica, e não é nova. Os transgênicos podem significar um desenvolvimento muito rápido de uma atividade existente desde que o homem começou a domesticar e criar animais para consumo – o melhoramento genético. A vaca holandesa, que produz muito mais leite do que as outras, é produto de anos de seleção e cruzamento entre as melhores representantes da espécie.
Embora as pesquisas com animais transgênicos ainda estejam nos primeiros passos, estimativas modestas calculam que já existem mais de mil raças de camundongos, mais de doze variedades de porcos, várias espécies de coelhos e peixes, pelo menos duas linhagens de ratos, duas ovelhas e duas vacas. Produzi-los ainda requer prática, habilidade e muita paciência, pois as técnicas ainda não estão suficientemente desenvolvidas.
A produção de um animal transgênico começa com a escolha de um gene que se quer colocar no animal – num camundongo, por exemplo. Primeiro, esse gene é clonado, ou seja, reproduzido várias vezes em bactérias. Com centenas de genes à disposição, o cientista tem três técnicas para introdução no animal. Todas começam e terminam da mesma forma, sendo diferentes no momento de introduzir o gene “estrangeiro” no embrião.
A técnica mais utilizada, e mais desenvolvida até agora, é a microinjeção celular. Começa com a preparação das camundongas com hormônios, para que possam ter superovulação e assim fornecer mais material ao cientista. As camundongas são cruzadas e, dali a algumas horas, os ovos (óvulos recém-fertilizados) são retirados por meio de uma microcirurgia e estes animais são sacrificados. De um grupo de doze camundongas, o cientista retira cerca de duzentos ovos. No estágio de apenas uma célula, os ovos são postos em meio de cultura. O próximo passo é a injeção da solução que contém as cópias do gene que se quer colocar no animal. Com uma minúscula pipeta, o cientista injeta os genes em um dos dois pró-núcleos do ovo, auxiliado por uma pipeta de sustentação. É fundamental que o ovo ainda não se tenha dividido em mais de uma célula, pois, do contrário, nem todas as células do futuro camundongo terão o gene estranho e nem todos os seus descendentes serão também transgênicos.
Depois da injeção, os ovos são implantados, mediante uma pequena cirurgia, em camundongas preparadas para a gravidez, cruzadas anteriormente com camundongos estéreis. Em vinte dias, quando os filhotes nascerem, o cientista faz um teste para descobrir quais deles são transgênicos, já que a margem de sucesso é entre 2 e 5 por cento dos ovos originais. Alguns ovos não sobrevivem à injeção ou aos transplantes, e muitas vezes o gene injetado simplesmente não “pega” no DNA do animal.
Outras técnicas de fazer com que o gene estranho chegue ao DNA do embrião são a infecção por retrovírus e a colonização por células embrionárias. Na primeira, um retrovírus é modificado e recebe o gene que o cientista quer implantar. Os embriões, já com oito células e chamados blastocistos, são postos no mesmo meio de cultura dos retrovírus, sendo infectados e recebendo “por tabela” o novo gene. Na segunda e mais recente técnica, conhecida como EK ou ES, o gene é introduzido na célula embrionária, que tem capacidade de diferenciação, ou seja, multiplica-se e coloniza o embrião posto na mesma cultura, carregando o gene para as células do futuro animal.
Todo esse aparato, embora pareça preciso, é tão delicado quanto cortar um palito de fósforo com um serrote. Na microinjeção celular, o cientista precisa de mãos muito firmes para acertar o pequeno pró-núcleo do ovo. São colocadas várias cópias do gene justamente para aumentar a probabilidade de que alguma delas se incorpore ao DNA – num processo parecido ao da corrida dos espermatozóides para fecundar um óvulo.
Dentro de laboratórios, as vidas transgênicas já são um fato consumado, desde o começo da década de 80. Foi quando os pesquisadores Ralph Brinster, da Universidade da Pensilvânia, e Richard Palmer, da Universidade de Washington, criaram o “supercamundongo”. Eles introduziram o gene do hormônio de crescimento do camundongo sob o controle da seqüência de outro gene. O resultado foi que o camundongo passou a produzir hormônio de crescimento no fígado, em vez de produzir na glândula pituitária, o que liberou o gene estrangeiro do controle da produção de hormônio. Os camundongos cresceram mais depressa e ficaram maiores do que o normal, mas muitas fêmeas eram estéreis. Em experimentos posteriores, os cientistas implantaram o gene do hormônio de crescimento humano em camundongos, que novamente cresceram mais e aparentemente não tiveram problemas de reprodução.
A entrada dos animais transgênicos na cena da pesquisa começa quando cientistas como Philip Leder e Timothy Stewart, da Universidade Harvard, em Cambridge, Massachusetts, constroem uma linhagem de camundongos portadores de oncogenes – genes ligados ao câncer. Numa geração desses camundongos, Leder comprovou que metade das fêmeas desenvolveram câncer de mama. Além de testar novos tratamentos da doença com mais eficiência, os pesquisadores podem entender melhor os genes que estariam ligados ao desenvolvimento do câncer. O trabalho de Philip Leder ficou famoso e suscitou polêmica por ter conseguido, em abril de 1988, a primeira patente de um animal concedida pelo Serviço de Patentes dos Estados Unidos.
Camundongos não pegam AIDS, mas o pesquisador americano Malcom Martin, do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, criou uma raça de camundongos potencialmente aidéticos. Injetando uma seqüência de DNA, obtida de vírus da AIDS, em ovos de camundongas, Martin obteve alguns filhotes que possuíam o vírus, embora se saiba que os camundongos não desenvolvem a doença da mesma maneira que os humanos.
Na linha de cura de doenças, uma das sensações é a raça de camundongas que produz leite com uma substância humana chamada TPA, que dissolve coágulos sanguíneos. A raça foi criada pelos cientistas americanos do National Institute of Health e da empresa Integrated Genetics. Há outros meios mais difíceis e caros de se obter o TPA por engenharia genética, mas com os animais transgênicos essa substância usada no tratamento de doenças cardíacas poderia tornar-se corriqueira. Se a idéia de. tomar leite de camundonga provoca um nó no estômago, Katherine Gordon, pesquisadora da Integrated Genetics, avisa que no próximo ano se espera produzir o TPA no leite de cabra. Pelos seus cálculos, um rebanho de trezentas cabras poderá suprir a demanda mundial de TPA.
Enquanto isso, em Edimburgo, na Escócia, cientistas tentam criar ovelhas transgênicas que produzam remédios no leite. O objetivo dos escoceses é conseguir grandes quantidades dos fatores sanguíneos 8 e 9, fundamentais para a coagulação do sangue, que os hemofílicos não possuem. Atualmente, esses fatores são obtidos de sangue humano, um método dispendioso e perigoso devido ao risco de contaminação pela AIDS. Bastaria, portanto, tomar o leite dessas ovelhas em lugar das injeções de fatores sanguíneos para que o hemofílico controlasse a doença. Essas proteínas coagulantes são produzidas normalmente no fígado. A equipe escocesa quer que as ovelhas as produzam nas glândulas mamárias, e para isso juntou o gene que comanda a fabricação do fator 9 à seqüência do DNA de um gene que controla a produção de leite na ovelha.
Dentro de alguns anos, os animais transgênicos passarão dos laboratórios à mesa dos cidadãos que comem carne. Já existe um suíno que, tendo recebido o gene do hormônio de crescimento humano, se desenvolveu com maior porcentagem de carne e menos gordura. A perspectiva que se abre para os criadores de animais cujo destino é o abatedouro é enorme. A melhoria das raças pode chegar a peixes gigantes e frangos imunes a determinadas doenças.
Todas as frentes de pesquisa com animais transgênicos têm um outro horizonte em comum – os dólares. Se o camundongo de Harvard foi patenteado, e dezenas de outros animais aguardam na fila, é porque ele pode ser vendido a outros centros de pesquisa, e sobre seus filhotes serão cobrados royalties. A empresa americana Stratagene aceita encomendas para produzir camundongos transgênicos ao módico preço de 7 mil dólares. Os animais que secretam leite com drogas são também fonte de renda. E quanto se pode lucrar com a patente de uma raça de bois enormes com 20 ou 30 por cento a mais de carne, vendida a fazendeiros? “Esses animais vão produzir proteínas a tão baixo custo, daqui a uns dez anos, que não vai compensar criar gado da maneira tradicional”, afirma Octavio Henrique Pavan, professor do Departamento de Genética da Universidade de Campinas.
Na conhecida indigência da pesquisa brasileira, o único laboratório de animais transgênicos do país está em fase de instalação pela pesquisadora Vera Soares, da Universidade de São Paulo. No período de seis meses a um ano, ela espera conseguir os primeiros resultados no estudo de resistência e suscetibilidade a infecções parasitárias. Se o Brasil não correr para recuperar dezenas de anos de atraso na pesquisa com engenharia genética, pode pagar caro no futuro. “Se não se investir agora, vamos ter que comprar tecnologia de fora a um preço alto, e nem vamos ter gente treinada para saber o que estamos comprando·, prevê o geneticista Carlos Menck, do Instituto de Biociências da USP. O potencial da engenharia genética na construção de novos organismos animais é imenso. A medida que as técnicas vão sendo aperfeiçoadas, torna-se possibilidade concreta o maior conhecimento do funcionamento dos genes e das doenças genéticas, ao lado da produção em larga escala de remédios originários de proteínas humanas.
Para saber mais:
(SUPER número 1, ano 1)
Os cientistas e os monstros
A polêmica nasceu junto com os primeiros camundonguinhos transgênicos. Os cientistas resolveram brincar de Deus, criando novas formas de vida, ou estão apenas trilhando o inexorável caminho do avanço da ciência? Pode-se desfiar um longo rosário das maravilhas que os animais transgênicos são capazes de fazer, desde ampliar o conhecimento sobre doenças genéticas até produzir remédios para salvar muitas vidas humanas. O pesadelo de ver um bicho mutante de laboratório solto pelo mundo, porém, é bem real. “A introdução de novos genes em bichos selvagens, por um possível cruzamento com animais que escapassem do laboratório, é ruim porque pode alterar o equilíbrio gênico”, diz Vera Soares, da USP. Para ela, essa mistura de animais é uma possibilidade remota, mas há quem veja esse quadro com cores mais sombrias.
“Um problema ecológico causado por um animal transgênico no meio ambiente é real, e deve ser considerado para cada forma devida que se cria”, afirma Carlos Menck. O deputado federal Fábio Feldmann, defensor da bandeira ecológica, vê com muito receio as experiências com animais transgênicos. Ele não é contra, em princípio, mas defende a participação da sociedade nas discussões sobre tais experimentos. Nos Estados Unidos, o debate é permanente. No final de janeiro, a prestigiosa Smithsonian Institution colocou no ar um programa – “A trama da vida” – da sua série de televisão Smithsonian World, quase todo dedicado a essa questão. Naquele país, o maior adversário dos animais transgênicos é Jeremy Rifkin, diretor da Fundação de Tendências Econômicas. Rifkin costuma imaginar cenários catastróficos como conseqüência da fuga de animais de laboratório para o mundo de fora, como o espalhamento do genoma do vírus da AIDS pelos ratinhos transgênicos aidéticos.
Mexer tão profundamente com a vida traz outro problema que não é ecológico, mas ético. Se hoje se consegue criar raças de ratos ou porcos, manipular genes humanos parece ser uma questão de tempo e de aperfeiçoamento de técnicas. Muitos cientistas podem ser veementemente contra, mas o potencial existe. “Em vinte anos, teremos maneiras muito eficientes de fazer uma raça humana transgênica” acredita Octavio Henrique Pavan, da Unicamp. Tudo pode começar com a “nobre missão de curar doenças genéticas. Daí para se escolher a cor dos olhos do filho por vaidade, ou mudar a constituição do homem por motivos escusos, pode ser um passo. Para onde, ninguém sabe.