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Grande inauguração – Bem vindo à civilização

A partir de 10000 a.C., uma revolução transformou o homem das cavernas em nós. Cientistas tentam entender como esse processo começou - e o que fizemos para chegar até aqui

Por Fabiano Onça
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 31 mar 2008, 22h00

Quem assistir a 10000 a.C., o blockbuster de Roland Emmerich, vai se sentir estranhamente em casa. Não que lutar com tigres- dentes-de-sabre faça parte de nossas tradições familiares (ao menos não nos últimos 7 mil anos). Mas o fato é que os homens pré-históricos daquele período já não eram tão diferentes de nós. Lá como cá, eles suavam para ganhar o mamute de cada dia. Suas lanças e adagas, ainda que de pedra, eram bem trabalhadas e afiadas. Existiam planejamento, trabalho conjunto e divisão de tarefas para conseguir cumprir a meta. Quem não estava caçando também precisava pegar no batente – havia muito por fazer nos primitivos vilarejos: cuidar das primeiras hortas, limpar as novas cabanas, manter os animais “amigos” presos e os “inimigos” afastados. E nem todos eram iguais. Evolet, a princesinha da tribo, já fazia parte de uma classe superior, o primeiro esboço do que viria a ser a hierarquia social contemporânea.

Resumo da (pré-)história: essa sociedade já gestava as sementes que desembocariam na humanidade como a conhecemos. Há 12 mil anos, aquele grupo de humanos inaugurava o que os estudiosos chamam de revolução do Neolítico – um período de forte desenvolvimento tecnológico que fez explodir a população do planeta e que conduziu o ser humano a um novo patamar de vida. Essa fase, que durou cerca de 6 mil anos, teria começado com a invenção da agricultura, marco zero de transformações em seqüência que culminariam com a descoberta da fundição dos metais. O que teria iniciado esse processo é um mistério que até hoje atordoa os arqueólogos. O que teria ocorrido de tão significativo para nos fazer sair das cavernas e fundar enormes e estruturadas cidades? Por que surgiram as primeiras civilizações, se durante 2 milhões de anos o homem tivera uma existência discreta, que não impactava além das pequenas coletividades em que vivia?

Lá vem o Sol

O primeiro indício seria a mudança do clima. Por volta de 14000 a.C., a Terra teria sofrido um aquecimento gradual e generalizado após um longo período de glaciação. O resultado poderia ser visto em qualquer canto, sob a forma de uma vigorosa expansão das plantas, seguida por um aumento da população de animais. “Conforme as placas de gelo se dissolviam, elas deixavam para trás uma crescente área vazia, onde a princípio nada sobrevivia. Mas, durante o milênio seguinte, essas áreas foram colonizadas por uma enorme quantidade de plantas e animais que habitavam originalmente as regiões de baixa latitude, mais próximas do Equador”, afirma a bióloga Evelyn Pielou em sua clássica obra After the Ice Age: The Return of Life to Glaciated North America (“Após a Era do Gelo: O Retorno da Vida à América do Norte Glacial”, inédito no Brasil).

Um dos maiores beneficiados com a onda de calor foi o Homo sapiens, que viu aumentar suas chances de não morrer de fome. O clima ameno ampliava a quantidade de animais caçáveis nos campos e de frutos comestíveis nas florestas. Àquela altura, o homem das cavernas já não agia meramente por instinto. Ao contrário, possuía um capacidade de representação simbólica que o diferenciava das outras espécies, como demonstram as sofisticadas pinturas rupestres encontradas em Lascaux, na França, datadas de 14000 a.C. Além disso, esse homem já conhecia tecnologias invejáveis – ele dominava, por exemplo, a arte de lascar pedras. Pouca coisa? Longe disso. “Eu faço arqueologia experimental, que é tentar repetir os gestos do homem do passado. A técnica do lascamento não é simplesmente bater uma pedra na outra. Também não é questão de força. Você tem que descobrir uma pedra apropriada. Aí, tem que encontrar o local onde bater na pedra. E tem um jeito certo de bater. Existe um complexo processo tecnológico, que esse homem já conhecia”, diz a arqueóloga Cristina Demartini, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.

Cereais em série

Foi essa criatura, capaz de conceber e construir instrumentos de pedra e de desenhar nas paredes, que começou a imaginar as novas oportunidades trazidas pelo degelo. Uma das primeiras descobertas foi a possibilidade de manipular plantas. Imagine-se na pele de um homem (ou mulher) das cavernas que, num belo dia, encontra por acaso um pé de milho. Você prova e adora. O que aconteceria toda vez que você visse um pé de milho selvagem brotando na mata? Provavelmente, não demoraria muito para começar a arrancar o mato e as ervas daninhas de perto do seu precioso pé de milho. Talvez até fosse regá-lo! Quem sabe ainda desse uma forcinha, jogando terra boa em volta dele – não por acaso, as primeiras grandes civilizações floresceram perto das férteis terras ao longo de rios. Tanto esforço para, no momento certo, colher aquela linda espigona. “Linda” e “espigona” é só modo de dizer, porque os grãos daquela época pareciam pedrinhas escuras e a espiga não media mais que 3 centímetros (confira a linha do tempo animada sobre a evolução do milho ao lado). “O homem do Neolítico observava a natureza e constatava, por exemplo, que uma semente podia dar origem a uma planta”, diz a geógrafa Silvia Maranca, do MAE da USP e da Fundação Museu do Homem Americano. Nasciam aí as primeiras protoculturas agrícolas – ou, no popular, as primeiras roças domésticas.

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A gradual domesticação das espécies vegetais foi comprovada em diversos sítios arqueológicos no mundo (veja na página seguinte um mapa com as principais culturas surgidas no Neolítico). Nas escavações de uma gruta em Teotihuacán, no México, comandadas pelo antropólogo Richard MacNeish na década de 1970, os extratos mais profundos revelam diversos restos de milho selvagem. Conforme avançam para camadas mais recentes, os restos de milho selvagem se confundem com os cultivados, até passarem definitivamente para a espécie cultivada. Muitos tipos de plantas, entretanto, mostraram-se bem mais rebeldes. Prova disso é que até hoje a humanidade se escora em poucos grupos de vegetais para sobreviver. Apenas 9 espécies (arroz, trigo, cana-de-açúcar, milho, sorgo, milhete, soja, batata-doce e batata) respondem por 75% das calorias consumidas a partir de vegetais no mundo.

Se por um lado havia menor variedade nutricional, por outro o excedente de comida trazia benefícios inegáveis. O maior deles é que a vida humana tornou-se muito mais estável. A sobrevivência já não dependia exclusivamente do sucesso na caça ou da abundância de árvores frutíferas: existindo uma roça, sempre havia alimento. Os filhos nasciam e – novidade! – muitos já não morriam de fome, porque tinham o que comer.

As mudanças não pararam por aí. Para cuidar da lavoura, era preciso tempo e dedicação. Em vez de se organizarem dentro de um esquema nômade (propício a comunidades de caçadores-coletores, que periodicamente precisavam buscar novas áreas para sobreviver), os membros dessas primeiras comunidades agrícolas teriam finalmente fincado os pés no solo e se tornado sedentários. Também era preciso vigilância – afinal, a terra tão suadamente cultivada poderia ser rapinada por animais ou por grupos nômades. Era o início do conceito de posse da terra, elemento fundador de diversos sistemas de organização econômica e política nos milênios seguintes.

Churrasco à la carte

A revolução agrícola impulsionou uma segunda revolução. Foi quase um passo lógico para o homem sedentário: apostar na criação de animais. Mas como teria sido esse processo? Uma das maiores autoridades no assunto é a paleontóloga Melinda Zeder, autora do livro Feeding Cities: Specialized Animal Economy in the Ancient Near East (“Alimentando Cidades: Economia Animal Especializada no Antigo Oriente Próximo”, inédito no Brasil). Utilizando um método de datação para comparar a idade de abate de caprinos pré-históricos, ela constatou que as fêmeas viravam churrasco bem depois dos bodes. Se suas suposições estiverem corretas, esse seria um primeiro indício de domesticação animal: a estratégia de poupar a fêmea como matriz reprodutora, geradora de uma “reserva de carne” na forma de suculentos filhotes.

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Mas existe uma grande diferença entre permitir que um rebanho selvagem se reproduza, preservando as fêmeas, e efetivamente trazer um animal para dentro do convívio de um assentamento humano. Para evitar que o bicho pegasse – literalmente –, a hipótese é que o homem do Neolítico teria domesticado animais menores, que ofereceriam menos resistência na hora da captura do que a média dos bichos em estado selvagem. Mesmo assim, não foi uma briga fácil. Contam-se nos dedos as espécies animais efetivamente domesticadas: cavalos, cachorros, gatos, porcos, ovelhas, bois, camelos, galináceos… Um grupo que, apesar de pequeno, conseguia suprir uma série de necessidades humanas: peles, lã, ossos, leite, carne, transporte, tração, guarda e por aí vai… Descobriu-se até mesmo que o excremento dos bichos era um adubo eficaz.

Com comida farta e relativamente fácil, não é de estranhar que a população da Terra, estimada em 5 milhões de pessoas por volta de 10000 a.C, saltasse para cerca de 170 milhões no ano 1. Agrupamentos cada vez maiores dispararam uma terceira revolução: a criação das cidades. Uma das primeiras foi Ur, no atual Iraque. Habitada desde 5000 a.C., a cidade teria se tornado a maior do mundo por volta de 2000 a.C., com uma população de 65 mil pessoas. Ocupando uma área muito menor em relação aos agrupamentos nômades (veja uma comparação de tamanho territorial na página seguinte), toda essa gente precisava ser controlada de alguma forma. Problema atacado pela quarta revolução: “Conforme cresce o número de pessoas, aumentam as regras, aumentam as hierarquias. Isso significa que a concentração populacional nas cidades gerou uma organização social mais complexa”, afirma Silvia Maranca. Avanços tecnológicos permitiram que algumas pessoas não ficassem tão presas à produção de alimentos. Se antes só existiam duas profissões (caçadores ou coletores), a invenção das cidades possibilitou que surgissem artistas, artesãos, sacerdotes, curandeiros, guerreiros – grupos de pessoas que, por serem mais velhos e experientes, especializados em alguma atividade ou ainda simplesmente por serem mais fortes que os demais, passariam a viver do excedente de alimentos produzido pela revolução da agricultura.

Esse turbilhão de mudanças terminaria em uma quinta revolução, considerada o marco tradicional do fim do Neolítico: a revolução dos metais, ocorrida por volta de 4000 a.C. Antes disso, metais vindos de meteoritos ou encontrados na superfície já eram utilizados, mas os homens os trabalhavam como se fossem pedras. Foi possivelmente observando meteoritos incandescentes que tinham acabado de se chocar com a Terra que os homens teriam percebido que dava para derreter metal. Com o domínio da tecnologia do cobre, do bronze e do ferro, estaria concluída a trajetória de mudanças que levou o homem das cavernas, caçador-coletor, até o ser sedentário, criador de cidades hierarquizadas e, graças às armas feitas de ferro, conquistador de outros povos.

Porém, ah, porém…

Contada assim, a história do final do Neolítico pode parecer uma seqüência de eventos em que todas as peças se encaixam. As relações de causa e conseqüência estão claramente determinadas, com cada uma das revoluções aparecendo como decorrência lógica das anteriores. Assunto encerrado? Mais ou menos. A divulgação de outras realidades arqueológicas – a brasileira, por exemplo – têm posto em xeque essa bem construída explicação. Para a arqueóloga Niéde Guidon, que há 3 décadas pesquisa os registros pré-históricos em um dos mais importantes sítios arqueológicos do país (a serra da Capivara, no Piauí), a teoria tradicional considera apenas as transformações que ocorreram no Velho Mundo. Na América e em outros continentes, o modelo não serviria tão bem. “Na Europa, tivemos a agricultura e a criação de animais. Mas, pelo menos aqui na caatinga nordestina, até hoje não encontramos nenhum vestígio que permita afirmar isso. Mesmo considerando que 10 mil anos atrás essa região possuía um clima temperado úmido”, afirma ela.

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Aqui vale um parêntese para falar um pouco da pré-história brasileira. Por muito tempo, a ausência de indícios de domesticação de plantas e animais foi entendida como prova de que o homem pré-histórico brasileiro era menos “evoluído” que o europeu. Nada mais falso, argumentam diversos especialistas. O primeiro questionamento diz respeito à definição de “grupo evoluído”. “Achar que mais evoluídas são as sociedades que mais se aproximam do nosso modo de viver é etnocentrismo [ou seja, acreditar que os valores de uma determinada cultura são superiores aos valores de todas as demais]. Pode-se argumentar que abandonar um modo de vida comunitário para viver sob uma hierarquia rígida não corresponde à idéia de transição para um estágio mais evoluído – ainda que isso tenha trazido o fim da busca constante por alimentos na natureza”, diz o arqueólogo Pedro Luis Machado Sanches, da Universidade Federal do Vale do São Francisco.

O segundo argumento vem da constatação de que a falta da agricultura como “espoleta revolucionária” não impediu a formação de sociedades sofisticadas, mas baseadas em outro modelo social. “Em nosso território, os agrupamentos tinham por base as chamadas chefias, em que as pessoas dividiam tarefas de forma parecida à das tribos atuais. Não há dúvida de que se trata de organizações bastante complexas”, afirma a arqueóloga Cristina Demartini.

Além da América, a teoria tradicional sobre a revolução do Neolítico sofre ataques com achados em escavações arqueológicas em outras partes do mundo. Novamente, há dúvidas de que o chamado “modelo europeu” possa ser estendido a todo o planeta. As descobertas mais intrigantes questionam a velocidade e a seqüência das etapas da revolução (teria demorado “apenas” 6 mil anos? Teria começado com a agricultura mesmo?). Dois exemplos ilustram a polêmica. Um estudo publicado em 1998 na revista Science revelou que a domesticação do arroz na China teria demorado 4 mil anos – e não 500, como os especialistas suspeitavam anteriormente. E a análise de restos mortais na região de Hallan Chemi, no sudoeste da Turquia, mostrou que em 11500 a.C. já existiam indícios de criação de suínos, muito antes de qualquer cultura agrícola ter se espalhado pelo local.

Arqueologia do mistério

Mais perguntas estão surgindo conforme avançam as pesquisas em Çatalhöyük, na Turquia, um dos mais promissores sítios arqueológicos da atualidade. Pesquisadores descobriram que ali, misteriosamente, uma comunidade que por volta de 7500 a.C. chegou a ter 10 mil habitantes não seguiu a trajetória proposta pela teoria tradicional – nem os caminhos alternativos mais conhecidos pelos arqueólogos. Nos campos ao redor do sítio, não há indícios de agricultura ou qualquer outra atividade intensiva que pudesse justificar um agrupamento tão numeroso. O que, então, conseguiu a proeza de manter aquelas pessoas juntas por tanto tempo?

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A resposta, suspeitam os cientistas, talvez não passe por um aspecto objetivo. A razão da forte e duradoura ligação comunitária em Çatalhöyük pode estar relacionada a um fator simbólico, algo puramente cultural. Um sistema religioso primitivo, por exemplo. Ou outra coisa que ainda nos escapa, que para ser percebida exija uma forma diferente de enxergar o mundo. No fim das contas, é possível que a revolução do Neolítico tenha sido mais plural do que se imagina. O fato é que, sem todas as transformações do período, o homem não teria virado eu e você, com as qualidades e defeitos do nosso tempo. Da próxima vez que estiver esquentando sua lasanha congelada ou baixando músicas para o seu iPod, lembre-se dos sapiens que descobriram a importância da agricultura, da criação de animais, do agrupamento em cidades, dos sistemas simbólicos e das técnicas de fundição. Sem eles, o microondas e o mp3 de hoje só apareceriam, chutando, daqui uns bons 3 milênios.

Alerta: A domesticação de plantas e animais pode levar a superpopulação, desmatamento, erosão, desertificação, consumismo, cáries e televisão. Resultados podem variar recomenda-se cautela.

* Inspirado em original de David Steinlicht para o Museu de Ciências de Minnesota (EUA).

 

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Para saber mais

A Evolução Cultural do Homem

Gordon Childe, Jorge Zahar Editor, 1981.

 

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