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HeLas: as células que dominaram o mundo

Há 50 anos, uma americana pobre teve câncer. Sem pedir autorização, médicos tiraram algumas de suas células para serem estudadas. O que eles descobriram, no entanto, mudou a história da ciência para sempre.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 11 jan 2023, 20h34 - Publicado em 1 Maio 2011, 22h00

Karin Hueck

Em setembro de 1951, Henrietta Lacks estava morrendo. Há alguns meses, a americana de 30 anos havia sido diagnosticada com um câncer no colo do útero que a minava por dentro. Negra, pobre e mãe de 5, Henrietta morava em Baltimore, no sul dos EUA, durante o período de segregação racial. Estava internada no único hospital do estado que atendia negros e não respondia mais aos tratamentos – pedaços de rádio inseridos em seu útero. O câncer de Henriettta, do tipo que normalmente dá aos pacientes uma sobrevida de 5 anos, se espalhara rápido demais. Os médicos não conseguiam entender como os tumores haviam tomado os rins, a bexiga, e boa parte dos intestinos em tão pouco tempo. No dia 4 de outubro, em meio a berros de dor, Henrietta morreu. Mas, por mais triste que seja, não foi a vida de Henrietta Lacks que fez ela estar aqui – foi sua morte que entrou para a história. Um pedaço de Henrietta sobreviveu – está vivo até hoje, aliás -, virou assunto de um livro que será lançado este mês e revolucionou a ciência do século 20.

Descendente de escravos e filha de agricultores de tabaco, Henrietta passou boa parte da infância nas plantações de fumo. Casou-se com seu amor de adolescência e sonhava em ter dezenas de filhos. No começo de 1951, no entanto, ela começou a sentir umas pontadas estranhas na barriga. Às vezes, quando ia ao banheiro, a urina estava vermelha de sangue. Henrietta já havia sido diagnosticada com sífilis, herdada dos muitos casos extraconjugais do marido, mas se recusava a fazer tratamento. Quando a dor no útero finalmente se tornou insuportável, ela aceitou ir ao hospital Johns Hopkins, em Baltimore, para ser examinada. Bastou uma olhada para que o médico encontrasse a causa dos desconfortos: um tumor no colo do útero do tamanho de uma moeda, com uma coloração arroxeada e um brilho estranho. Como era de costume, sem explicar para a paciente o que estava acontecendo, o médico retirou uma amostra do tumor para analisá-lo. O que ele não sabia, no entanto, é o que esse procedimento significaria para a história da ciência.

No mesmo hospital, mas em outra ala, funcionava o laboratório de George Gey, um médico fisiologista. Gey era um pesquisador obsessivo e tinha um grande objetivo de vida: encontrar células que sobrevivessem fora do corpo humano e pudessem ser cultivadas em laboratório. Sim, até 1951, ninguém havia conseguido isolar células. O grande desafio da medicina da época era encontrar um meio onde as células pudessem sobreviver fora do corpo. Para isso, Gey misturava os mais improváveis ingredientes: plasma de galinha, fetos de boi ou cordões umbilicais humanos. Assim, quando o médico de Henrietta apareceu com um pedaço do tumor para ser doado para o laboratório (sem o consentimento da paciente), Gey fez o que andava fazendo com todos os tecidos humanos que chegavam a seu alcance: colocou a amostra na mistura e torceu para que ela sobrevivesse. Foi aí que o inesperado aconteceu: as células começaram a se multiplicar. O tumor de uma mulher pobre e doente se transformou nas primeiras células humanas a se multiplicarem em laboratório. E mais: elas não pararam de aumentar de número até hoje – e viraram imortais.

Até o espaço sideral

Apenas 3 semanas depois da descoberta, enquanto Henrietta começava a se tratar do câncer, George Gey foi a um programa de televisão exibir as células imortais. “Aqui está uma criação de células cancerígenas. É com elas que vamos encontrar um fim para o câncer”, disse ele, chacoalhando um tubo de ensaio aparentemente vazio. Rapidamente, o tumor de Henrietta (cujas células acabaram apelidadas de HeLa, graças às iniciais da paciente) se tornou o fetiche da comunidade científica de todo o mundo. Gey enviou amostras para a Índia, para Nova York, para Amsterdã – e as criações de HeLa se multiplicaram. Elas começaram a ser irradiadas, cortadas e infectadas, tudo para os cientistas entenderem como o câncer funcionava. “Na época, os médicos acreditavam que o câncer poderia ser causado por um vírus e que as HeLa poderiam ajudar a identificar que vírus era esse”, diz John Masters, urologista da University College London, que estudou o legado dessas células. Os cientistas não encontraram imediatamente esse “vírus do câncer” (embora em alguns casos, como no HPV, ele de fato exista), mas as pesquisas com as células renderiam muitos outros resultados surpreendentes.

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A primeira conquista das HeLa foi um dos mais importantes avanços da medicina do século 20: a vacina contra a poliomielite. A poliomielite ainda deixava milhões de crianças paralíticas na década de 1950, e foram os testes feitos com as HeLa que levaram à vacina que é usada ainda hoje. Mas não ficou por aí. As células começaram a ser usadas para desenvolver remédios contra o diabetes, a leucemia e o mal de Parkinson. Além disso, bem no meio da Guerra Fria, em plena corrida espacial, ainda não se sabia ao certo os efeitos que as radiações cósmicas teriam sobre o corpo humano. Os soviéticos não tiveram dúvida: empacotaram um lote de HeLa em um satélite e o enviou ao espaço. Os americanos, por sua vez, expunham as células à radiação de bombas atômicas para destruí-las e depois reverter os efeitos (sem sucesso).

Mas havia uma leva muito mais perigosa de estudos sendo feitos com as HeLa. Em 1955, um virologista chamado Chester Southam, do Instituto de Pesquisas para o Câncer Sloan-Kettering, ficou intrigado com a possibilidade de as células imortais transmitirem câncer para os milhares de cientistas que estavam trabalhando com elas. Para resolver esse mistério, ele resolveu injetar culturas de HeLa em cobaias – humanas. Escolheu alguns de seus pacientes de câncer e esperou as células se espalharem. Quase todos conseguiram eliminar as HeLa, menos uma mulher, que morreu de metástase. Não contente com esses resultados, Southam começou a injetar as células em prisioneiros: assassinos e ladrões que deveriam “pagar” sua dívida com a sociedade sacrificando-se pela medicina. Para a sorte do médico (e a dos prisioneiros, principalmente), todos sobreviveram. A opinião pública, que primeiro apoiou os estudos macabros de Southam, acabou horrorizada.

Outra trapalhada abalou a credibilidade das pesquisas com a HeLa. Sua maior vantagem, a facilidade de ser replicada em laboratório (cada geração de células demora apenas 24 horas para se multiplicar), acabou se transformando num tiro no pé. As HeLa estavam tão “férteis” que começaram a contaminar as outras linhagens de células que, já na década 1960, estavam sendo desenvolvidas. Bastava uma seringa mal lavada ou um jaleco usado para a contaminação acontecer. De fato, em 1966, já não se sabia mais se as descobertas feitas em culturas de células de pele, por exemplo, não estavam na verdade sendo feitas em material de HeLa. Será que todo o trabalho com células dos últimos anos teria sido em vão? Ninguém soube responder – e não sabe até hoje, aliás.

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Sim, as células imortais ainda são usadas nas pesquisas atuais. Não houve grande descoberta da medicina no século 20, da clonagem ao sequenciamento genético, em que elas não estiveram ao menos com um pezinho envolvido. Estima-se que, caso se colocassem todas as HeLa que existem no mundo lado a lado, como um cobertor, elas envolveriam o planeta inteiro três vezes. Considerando que cada lote de células pode custar entre US$ 10 e US$ 10 mil, o tumor de Henrietta virou um negócio farmacêutico multi-bilionário. Nem um centavo desse lucro, no entanto, foi parar para os filhos de Henrietta. Durante quase 30 anos, eles sequer souberam que um pedaço de sua mãe estava vivo e sendo usado para pesquisas médicas. A família dela, que carrega boa parte do DNA da célula mais estudada, dissecada e observada do mundo, acabou na miséria. Vive nela até hoje, sem sequer ter plano de saúde – apesar de ter contribuído tanto para o bem da medicina.

1951
Henrietta Lacks é diagnosticada, tratada e morta por um câncer de colo de útero fulminante. Um pedaço de seu tumor é levado para análise e se torna a primeira linhagem de células a sobreviver e se multiplicar em laboratório.
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1952
Uma epidemia de poliomielite ataca os EUA e uma vacina contra a doença se torna prioridade médica nacional. Para desenvolver a imunização, era necessário ter uma enorme quantidade de células para serem infectadas – e curadas. As HeLa eram as únicas disponíveis.

1953
Graças à trapalhada de um cientista do Texas, que misturou um líquido errado a um bolo de HeLa, o núcleo das células inchou e tornou possível ver pela primeira vez o que havia lá dentro: os cromossomos.1954
Nada de ovelha Dolly. O primeiro ser vivo (ou melhor, pedaço de ser vivo) clonado da história foram as células de Henrietta. Com elas, se tornou possível aperfeiçoar a técnica de reprodução perfeita das células.

1960
Durante a Guerra Fria, as HeLa viraram a cobaia favorita em ambos os lados do Muro de Berlim. Soviéticos as mandaram para o espaço. Americanos as bombardearam com radiação atômica e as rodaram em centrífugas para simular a gravidade.

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1965
As células de Henrietta são fundidas com células animais, como ratos e galinhas, e se tornam os primeiros híbridos entre humanos e animais. Essa técnica, que é usada até hoje, permite que os cientistas entendam as funções e o funcionamento de cada gene.

1984
Um médico alemão descobre a existência do vírus HPV, que causa câncer de colo do útero, graças às pesquisas com HeLa. O tipo de HPV que gerou o tumor de Henrietta era um dos mais perigosos – o que talvez explique a agressividade do câncer e a fertilidade das células. A descoberta rendeu o prêmio Nobel.

2011
Depois de 5 décadas pesquisando com as HeLa, as células já foram usadas em quase todos os campos da medicina: vacinas, quimioterapia, clonagem, mapeamento de genes, fertilização in vitro, longevidade humana, DSTs, digestão de lactose, mal de Parkinson etc. etc.

Como assim, imortais?

O segredo da imortalidade das células de Henrietta permaneceu desconhecido até o final da década de 1990. Todo câncer é uma forma de mutação do DNA da célula. No caso da HeLa, a célula sofreu uma mutação que produz uma enzima chamada telomerase, que controla a renovação dos cromossomos cada vez que a célula se divide. Ao contrário das células normais, que vão se desgastando a cada divisão, o tumor de Henrietta não sofre danos quando se multiplica – e, assim, se torna imortal.

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