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Maconha sintética e a era das drogas de laboratório

Um grupo de químicos teve uma ideia ousada: usar a tecnologia para desenvolver versões artificiais, mais fortes e mais baratas, das drogas mais usadas no mundo: maconha, cocaína e heroína. Veja no que deu.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h45 - Publicado em 15 jul 2012, 22h00

Vanessa Vieira e Bruno Garattoni

 

 

Cocaína é feita com folhas de coca. A heroína, com uma flor chamada papoula. A maconha é uma planta. As drogas tradicionais têm uma característica em comum: todas são naturais, ou seja, se baseiam em vegetais – que o homem cultiva e depois refina em processos relativamente simples. Mas e se fosse possível usar tecnologias modernas para reinventar essas drogas? Criar versões artificiais da cocaína, da heroína e da maconha, feitas com ingredientes sintéticos, que reproduzam perfeitamente os efeitos delas – mas que tragam várias vantagens, como ser muito mais potentes e baratas e, em alguns casos, possam até ser vendidas legalmente? Isso seria ótimo para os produtores e vendedores. E, quem sabe, o início de uma nova era de polêmica, violência e problemas para a sociedade: a era das drogas sintéticas. E ela já começou.

Em novembro de 2011, a polícia dos EUA invadiu uma casa, em Las Vegas, onde havia um superlaboratório de US$ 30 milhões produzindo versões sintéticas de drogas como maconha e cocaína. Logo depois, os agentes encontraram uma operação ainda maior, no Estado de Utah. Enquanto isso, uma rede de dezenas de empresas continuava comercializando – legalmente – os produtos pela internet. Mas onde surgiram as drogas sintéticas? Quem as inventou? Como são feitas? Que cara têm? Quais são os riscos? E por que a venda é permitida?

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As drogas sintéticas se revelaram ao mundo de um jeito estranho: na forma de incenso e sais de banho. Em 2011, mais de 6 mil pessoas sofreram algum tipo de intoxicação, nos Estados Unidos, relacionada a sais de banho: daqueles que se colocam na banheira para fazer espuma. Um número bizarro, 20 vezes maior que o do ano anterior. O incenso também virou uma questão de saúde pública, com quase 7 mil casos de envenenamento – em 2009, haviam sido apenas 14.

Como explicar essa onda? Será que os sais de banho e o incenso haviam sofrido algum tipo de contaminação? A polícia decidiu analisar os produtos, e descobriu que não. Na verdade, não eram sais de banho nem incenso. Suas embalagens diziam isso. Mas dentro delas havia uma nova classe de substância: drogas sintéticas, que haviam sido criadas em laboratório para reproduzir os efeitos entorpecentes de drogas como maconha, cocaína e heroína. Só que os fabricantes usavam produtos químicos permitidos, ou seja, tecnicamente seus produtos estavam sendo fabricados dentro da lei. Geralmente, os produtores são pequenas empresas que funcionam em garagens, porões ou casas na zona rural. “Nos EUA são cada vez mais comuns as histórias de laboratórios caseiros”, diz Rafael Lanaro, do Centro de Intoxicações da Unicamp.

A principal empresa do setor se chama Pandora Potpourri e fica num galpão da cidade de Columbia, no Estado do Missouri. Ela produz um incenso, o Bombay Breeze (“brisa de Bombaim”, em inglês), que é vendido em pacotinhos de 3 gramas (US$ 13). Seu criador é o empreendedor Wesley Upchurch, de 24 anos, que diz vender 40 mil pacotinhos do produto por mês, por uma rede de 5 distribuidores e 50 lojas, com faturamento de US$ 2,5 milhões por ano. Ele jura que seu produto é apenas um incenso. “Nós não queremos que as pessoas o fumem”, declarou à revista americana BusinessWeek.

O suposto incenso lembra um pouco a maconha tradicional, tanto na textura quanto na cor – são fragmentos esverdeados de planta. A planta, no caso, é capim moído, e não dá nenhum barato. O efeito do produto está em pequenos cristais sintéticos, que são difíceis de ver a olho nu e vêm misturados com o capim. São eles que, quando fumados pelo usuário, liberam a substância ativa da droga. Seu nome é CP 47497. Trata-se de um canabinóide sintético, ou seja, uma droga artificial que imita os efeitos da cannabis (maconha). A substância foi desenvolvida nos anos 1980 pelo laboratório Pfizer – suas iniciais homenageiam o fundador do laboratório, Charles Pfizer – e se destina a pesquisas científicas. A sacada dos fabricantes de maconha sintética foi pegar essa substância, cuja produção e comercialização não é ilegal, e vender como droga. Ou melhor, não era: as autoridades estão percebendo a jogada, e a CP 47497 foi proibida nos EUA – mas ela ainda pode ser obtida, pela internet, de fornecedores chineses.

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Para ficar um passo à frente, as empresas da maconha artificial migraram para outra substância: a família de compostos JWH (018, 073 e 200, entre outros). São canabinóides sintéticos criados nos anos 1990 pelo químico americano John W. Huffmann, que buscava remédios para aliviar o sofrimento de pacientes de aids e câncer. Acabaram transformados em droga. Huffmann, hoje com 80 anos, está aposentado e não gosta de falar sobre o assunto. Mas, no ano passado, quando a maconha sintética começou a ganhar força, deu a seguinte declaração a uma rádio da cidade onde vive, na Carolina do Norte: “Você não pode ser responsabilizado pelo que idiotas [os usuários] fazem”.

“As pessoas acham que, se você pode adquirir essas drogas legalmente, devem ser seguras. Mas elas podem ser muito mais nocivas do que as tradicionais”, diz Anthony Wong, diretor do Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Para se ter uma ideia, numa análise feita pela polícia científica do Estado americano de Kansas com 100 pacotes de maconha sintética de diferentes fabricantes, concluiu-se que, em alguns casos, os canabinóides sintéticos usados eram até 500 vezes mais potentes do que o THC, princípio ativo da maconha.

Ou seja: eles realmente deixam o usuário doidão. Em alguns casos, até demais. “Se uma das substâncias presentes na droga tem o poder de diminuir as inibições e sua presença é concentrada, um dos efeitos disso é que a pessoa fique mais violenta”, explica Wong. “Pessoas sob o efeito dessas substâncias tendem à agressividade, à depressão grave e comportamentos suicidas”. Foi o caso do americano Robert Butler Jr, de 17 anos, que disparou contra o diretor e a vice-diretora de sua escola e depois se matou. Exames toxicológicos comprovaram que ele estava sob o efeito de maconha sintética.

O CANIBAL DE MIAMI

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A cocaína sintética apresenta o mesmo dilema; é tão forte que pode acabar fazendo a pessoa se descontrolar. Ela é produzida sob várias marcas comerciais. O produto é vendido pela internet, em um pacotinho com 0,2 gramas de pó branco que custa US$ 25. O fabricante insiste: trata-se apenas de um “sal de banho concentrado”, que deve ser jogado na banheira e “não é adequado para consumo humano”. Na verdade, é uma mistura de MDPV (metilenodioxipirovalerona) e mefedrona, duas substâncias que produzem efeitos similares aos da cocaína: estimulação do sistema nervoso central e euforia. Só que muito mais intensa. Num caso bastante impressionante, que aconteceu em maio deste ano, o americano Rudy Eugene, 31, ficou conhecido como “o canibal de Miami”. Aparentemente em transe, ele atacou um mendigo – cujo rosto desfigurou a mordidas. Segundo as autoridades, Rudy estava sob efeito de mefedrona. Ele acabou sendo morto pelos policiais.

A proliferação das novas drogas sintéticas é favorecida por uma série de circunstâncias. Enquanto a fabricação dos entorpecentes tradicionais depende de plantas cultivadas em países como Bolívia, Colômbia e Afeganistão e seu comércio exige uma grande rede de logística e transporte até os mercados consumidores, os ingredientes das drogas sintéticas podem ser obtidos pela internet – onde é possível encontrar quase 4 mil laboratórios chineses oferecendo o JWH, por exemplo.

Além disso, as drogas sintéticas têm alto rendimento. “Para fazer 800 gramas de pó de cocaína, são necessários 100 quilos de folhas. Com as drogas sintéticas, você combina substâncias químicas puras e o aproveitamento é de quase 100%”, compara Rafael Lanaro, do Centro de Intoxicações da Unicamp. Ou seja: as quantidades de matéria-prima necessárias para fazer o produto são muito menores, o que torna mais fácil sua importação e manuseio (ou contrabando, nos países onde as substâncias já são proibidas). Para o fabricante, o negócio fica bem mais tranquilo. E lucrativo também.

KROKODILAGEM

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A Rússia tem um problema sério com heroína. Todos os anos, acredita-se que 30 mil pessoas morram de complicações ligadas ao uso dessa droga – uma das mais viciantes, cruéis e caras que existem. Sim, caras. Mas algum russo empreendedor teve a ideia de criar uma heroína sintética, que custa apenas um terço do preço: o krokodil. Seu princípio ativo é a codeína, um analgésico opiáceo (análogo à heroína) que é vendido legalmente – é receitado para dores fortes nas costas, por exemplo. Os russos tiveram a ideia de cozinhar a codeína com outros ingredientes, como thinner, ácido clorídrico, iodo, gasolina e fósforo. Isso se transforma numa gosma, um líquido que o usuário coloca numa seringa. E injeta.

Como se fosse heroína. Mas com um problema a mais: a substância causa a necrose (morte) de tecidos nas regiões onde é injetada. Depois de algumas aplicações, os usuários ficam com a pele grossa, morta e esverdeada. Daí a origem do nome: krokodil vem de `crocodilo¿. Se a pessoa continuar usando a droga, o quadro costuma evoluir para a amputação de mãos, braços e pernas. Em geral, os consumidores do krokodil (que se situam principalmente na faixa dos 14 aos 21 anos de idade) não sobrevivem a mais de 3 anos de uso.

O combate às novas drogas sintéticas enfrenta várias dificuldades. A principal delas é o fato de muitas dessas substâncias serem produzidas a partir de componentes químicos legais, presentes, por exemplo, na fórmula de alguns remédios. Mesmo assim, alguns Estados americanos e países já identificaram e baniram substâncias recorrentes nas novas drogas, como a mefedrona, o JWH ou o CP-47 497. Mas quando a polícia científica e pesquisadores conseguem apontar os perigos e o potencial toxicológico de um desses compostos e encaminham às autoridades um pedido para que seu uso seja controlado ou proibido, os produtores criam variações sutis do composto original, com efeitos semelhantes, ganhando tempo até que a nova substância seja detectada e criminalizada.

Nesse jogo de gato e rato entre autoridades e traficantes, em que a legislação pode apenas reagir à medida que as novas drogas vão surgindo, multiplicam-se na internet os sites que comercializam os `legal highs¿, os baratos legalizados.

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No Brasil, os relatos relacionados às novas drogas sintéticas ainda são limitados, mas, para os especialistas, isso se deve mais à dificuldade das autoridades de identificar e controlar a entrada delas no país do que a uma ausência das mesmas.

Em agosto do ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária proibiu a comercialização da mefedrona e de outras duas substâncias similares. Até então, mesmo que uma pessoa fosse flagrada transportando essas substâncias, não podia ser detida pela polícia. Foi quase por acaso que a presença dessas novas drogas sintéticas foi detectada no País. A análise do produto só aconteceu porque agentes apreenderam o material pensando que se tratasse de ecstasy. Entretanto, ao analisar a fórmula química da substância, a Polícia Federal constatou que se tratava de mefedrona. Mas, apesar da proibição, é possível que esses compostos ainda estejam entrando no país e circulando livremente, já que grande parte dos equipamentos para teste de drogas ainda é calibrada para detectar apenas as drogas ilícitas tradicionais.

Mesmo nos países onde o combate às drogas sintéticas já está mais avançado, há dificuldades técnicas e legais para combater sua disseminação. Além do alto custo e da complexidade dos testes para detectar essas drogas, é difícil proibir em bloco as substâncias presentes nas drogas sintéticas, já que elas também estão presentes na composição de medicamentos e outros produtos químicos legais. “Quando os cientistas chegam a detectar e sugerir às autoridades a proibição de algum composto, os traficantes vão pesquisar as bulas dos remédios em busca de novas substâncias e criam combinações diferentes. Eles estão sempre vários passos à nossa frente”, admite Anthony Wong, do Hospital das Clínicas. Segundo o coordenador geral de Repressão a Drogas da Polícia Federal, Cézar Luiz Busto, o Brasil já tem investido no combate às drogas sintéticas. “Policiais estão sendo treinados para investigar essas drogas, e temos trocado informações com outros países. Novos equipamentos também têm sido adquiridos para reforçar a vigilância”, diz ele. A polícia precisa mesmo se mexer. Porque segundo o relatório World Drug Report, da ONU, a tendência é que, com o aumento das restrições às drogas sintéticas nos países desenvolvidos, a produção e o consumo acabem migrando para a América Latina.

Aconteça o que acontecer, uma coisa é certa: a humanidade sempre consumiu, e irá continuar a consumir, algum tipo de droga. Com todos os riscos que isso acarreta – e com todos os avanços que a tecnologia puder trazer.

Clássico moderno

Walter White é um químico brilhante. Mas ganha pouco como professor, e descobre que está com câncer. Para ganhar dinheiro rápido e deixar uma herança para a família, começa a produzir uma droga ilegal: a metanfetamina (crystal meth). Esse é o enredo da série americana Breaking Bad, que já ganhou 6 prêmios Emmy e muitos fãs no Brasil (onde é exibida pelo canal pago AXN). A série gerou curiosidade sobre a crystal meth, pouco conhecida por aqui. Na verdade, trata-se de uma droga muito antiga, sintetizada em 1919 por um cientista japonês ¿ e usada pelos pilotos americanos na Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, começou a ser consumida ilegalmente pela população civil dos EUA, onde hoje há 1,2 milhão de usuários da droga. A metanfetamina é um estimulante, e produz sensação de euforia. Pode ser fumada ou injetada e é considerada extremamente viciante.

Para saber mais
World Drug Report – ONU, 2011, https://abr.io/2Dfg
Synthetic Cannabinoids and Spice – European Monitoring Centre, 2009, https://abr.io/2Dfi

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