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Memória – Parte 3 – O que nunca aconteceu

Boa parte das suas lembranças é falsa. Jamais aconteceu. Não passa de mentiras inventadas pelo seu cérebro. Saiba por que lembrar é imaginar, e imaginar é distorcer

Por Gisela Blanco e Bruno Garattoni
Atualizado em 5 jul 2018, 12h45 - Publicado em 5 fev 2011, 22h00

No início dos anos 80, uma série de crimes chocou os EUA. Dezenas de mulheres começaram a relatar abusos sexuais sofridos na infância. Essas lembranças sempre afloravam no consultório de algum psicólogo, depois que as moças tinham passado por sessões de terapia com técnicas de hipnose e regressão. O FBI resolveu investigar o caso e descobriu que os abusos eram falsas memórias, que haviam sido acidentalmente induzidas por psicólogos durante sessões de hipnose. Além de acusar outras pessoas, a sua memória também pode se voltar contra você mesmo. Foi o caso do americano Paul Ingram, acusado de abuso sexual pelas filhas de 18 e 22 anos. Ele negou tudo. Mas, depois de ser indagado várias vezes sobre o assunto, começou a dizer que, sim, se recordava de ter estuprado as garotas. Aí o psicólogo Richard Ofshe, especializado em memórias falsas, resolveu testá-lo: elaborou uma série de incidentes fictícios, sobre os quais conversou com Ingram. Ele se lembrou de todos. Conclusão? Paul não estava lembrando, e sim imaginando, as cenas.

Mas nem é preciso de crimes ou sessões de hipnose para colocar nossas memórias em xeque. Imagine acordar certo dia e descobrir que parte das suas lembranças é pura imaginação. Isso porque a memória não é um registro da realidade – é uma interpretação construída pela mente. O nosso cérebro inventa o mundo, das cores que a gente vê às experiências que a gente vive. E edita essas informações antes de gravá-las, explica o psicólogo cognitivo Martin Conway, da Universidade de Leeds. Cientistas da Universidade Harvard pediram a voluntários que se lembrassem de uma festa em que tinham estado. Em seguida, eles deviam imaginar uma festa que ainda não havia acontecido. Os pesquisadores monitoraram as cobaias durante todo o experimento e descobriram que, nos dois exercícios, sua atividade cerebral foi praticamente a mesma. Ou seja: os mecanismos que usamos para acessar nossas memórias são os mesmos que usamos para imaginar as coisas. Uma pessoa pode ter lembranças erradas ao ler o que está gravado corretamente na sua memória, explica Daniel Schacter, psicólogo da Universidade Harvard e autor de vários livros sobre memória.

Todos nós temos lembranças falsas ou distorcidas. Tente se lembrar de algum evento que lhe aconteceu no ano passado e responda: quem estava lá? Quais eram os nomes das pessoas? Que roupas vestiam? Como estava o clima no dia? Depois, faça essas mesmas perguntas a outra pessoa que viveu o mesmo evento. As respostas dificilmente vão coincidir. Vocês podem até se lembrar do principal, mas todo o resto será distorcido – com direito a várias informações criadas pelo cérebro. Já que a memória e a imaginação usam os mesmos mecanismos, a mente não vê problema em dar uma inventadinha para completar as lacunas.

Essa tendência é tão forte que a Justiça possui artifícios para se defender disso, e ver se os relatos de testemunhas estão contaminados pela imaginação. Além de propor situações que não aconteceram (como no caso do americano Paul Ingram), os interrogadores evitam perguntas indutivas (“ele estava usando um boné, certo?”) ou que envolvam raciocínio negativo (“isso não está certo, né?”), pois elas acabam levando o cérebro a distorcer as memórias. Mas não há uma maneira de determinar, cientificamente, se uma lembrança é real. Nem mesmo o detector de mentiras consegue desmascarar falsas memórias, e por um motivo simples. Sabe aquela máxima que diz: uma coisa não é mentira quando você acredita nela? Pois é.

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Apesar de tudo isso, é difícil imaginar uma sociedade que não acreditasse na memória das pessoas. Não existiria verdade nem realidade coletiva, pois cada indivíduo viveria isolado em seu próprio mundo de lembranças. “A crença na memória é fundamental para várias instituições da sociedade, como a Justiça e as escolas”, afirma Schacter. Ainda bem. Pois, no futuro, nossas memórias serão totalmente diferentes.

Para saber mais

The Seven Sins Of Memory
Daniel Schacter, Houghton Mifflin Books, 2001.

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