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Nem a neve, nem o gelo inibem o macho

Nessa espécie de inseto, os machos pagam com o próprio corpo pela oportunidade de transar. Os cientistas querem saber por que as fêmeas comem pedaços de seus parceiros durante o acasalamento.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h29 - Publicado em 31 dez 1991, 22h00

Fóssil vivo só existe nos Estados Unidos, nas montanhas de Wyming e Colorado. Seu nome em inglês é sagebrush criscket, que se aplica indistintamente aos membros de três espécies: Cyphoderris strepitans, Cyphoderris minstrosa e Cyphoderris buckelli.

O coro dos grilos machos pode ser ouvido todas as noites durante as três semanas do período de acasalamento, em maio. Logo após o pôr-do-sol, os machos emergem do solo, sobem nas artemísias e começam a “cantar”, esfregando as asas dianteiras. O som resulta do atrito. Nessa época do ano, nevascas não são raras ali. Mas, mesmo na neve e no gelo, os machos continuam a cantar. A espécie detém o recorde mundial de canto a baixa temperatura: 30º C negativos. Em outras espécies de grilos, o canto do macho atrai as fêmeas sexualmente receptivas. Era de presumir que isso também acontecesse com o grilo-da-artemísia. Até agora, porém, não conseguimos fazer com que as fêmeas respondessem a gravações de chamados dos machos, transmitidos por alto-falantes estéreo. Seja como for, diante do som ao vivo, as fêmeas localizam e abordam os parceiros em potencial. O acasalamento se dá nas artemísias e no chão até pro volta da meia-noite, quando os machos param de cantar.

O acasalamento dos grilos consiste na transferência de um pacote de esperma do macho para a fêmea. O pacote, chamado espermatóforo, é uma bola alongada, que se liga a um tubo fino. A fêmea cavalga o macho, que insere a ponta livre do tubo na abertura genital da fêmea. O espermatóforo, que fica pendurado no corpo da fêmea depois do acasalamento, esvazia-se automaticamente dentro dela. A fêmea não facilita nem um pouco a operação de transferência de esperma. Ela desmonta a todo momento e tenta ir embora, obrigando o macho a parar, persuadi-la a voltar e começar de novo. Esse processo de idas e vindas pode prolongar-se por horas até que a transferência se complete.
O macho tem no abdome uma espécie de pinça para manter a fêmea no lugar, mas geralmente isso não basta. A fêmea precisa de um incentivo para continuar montando.

Como é comum entre os insetos, o macho presenteia a companheira com comida. Só que, nesse caso, a comida é o seu próprio corpo. O grilo-da-artemísia permite que a fêmea lhe devore as assa traseiras e, quando a ferida começa a sangrar, beba-lhe o sangue. Enquanto ela se alimenta, ele transfere o espermatóforo. Quisemos saber o que acontece com o macho depois desse suplício sangrento. Será que ele volta a se acasalar? Para tanto, meus colegas Glenn Morris. Andy Snedden e eu marcamos todos os machos numa área e os recapturamos em sucessivas noites. Sabíamos quais machos virgens haviam se acasalado, examinando se suas asas estavam feridas, e quais machos não virgens haviam se acasalado uma segunda vez, comparando a intensidade dos ferimentos de uma noite para outra. Descobrimos que os machos virgens têm probabilidade muito maior de se acasalar do que os outros. Também monitoramos ao longo do tempo o canto dos grilos virgens e não virgens. Os primeiros vencem o campeonato de cantoria.

A sedução e o acasalamento exigem muito dos grilos machos. Depois de uma sessão amorosa, eles parecem exaustos demais para cantar por muito mais tempo e assim competir com êxito pelas fêmeas. Os machos vão com tudo para o primeiro encontro, porque são pequenas as suas chances de viver o suficiente para ter novamente acesso a uma fêmea. Eles têm bons motivos para duvidar da própria longevidade. Compartilham seu hábitat com um predador voraz e abundante – o rato-do-mato. Para esses pequenos e ágeis roedores, os grilos-da-artemísia são um pitéu especialmente apreciado.
A estação de acasalamento do grilo pode ser o resultado de uma estratégia de sobrevivência, pois, a cada ano, o período termina muito antes que a população de ratos chegue ao ápice. Os grilos machos também correm mais perigo de ser abocanhados do que as fêmeas. Comparados com elas, são extremamente nervosos e, quando alguém se aproxima, param de cantar muito antes de serem vistos pelo intruso. Além disso, se o arbusto em que estão pousados é perturbado, eles descem à terra, onde permanecem bons minutos imóveis como em transe. Se o macho for tocado, ele vira de costas, agita as patas e solta um grito agudo. (Eu já me surpreendi também, mais de uma vez, coma força de sua mordida.) As fêmeas tendem a não fazer nada disso, mesmo quando seriamente provocadas. Tais diferenças de comportamento podem ter relação com o fato de os ratos localizarem os machos pelos seus chamados amorosos. Sendo mudas, as fêmeas não enfrentariam os mesmos perigos e, em conseqüência, não precisariam desenvolver tantas táticas antipredadores com os machos.

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Nosso estudo sobre o acasalamento com nutrição entre os grilos-da-artemísia ficou em parte frustrado pela escassez de cruzamentos observados no campo e pelo seu caprichoso comportamento sexual em laboratório. Um inseto mais fácil de estudar de perto é o grilo-enfeitado (decorated cricket em inglês). Ao contrário de seu primo montanhês, este prefere climas mais quentes. É encontrado nas regiões tropicais e subtropicais e parece apreciar companhia humana. Na Flórida e no Arizona, onde estudei a espécie, vive principalmente nas cidades e nos subúrbios. Os machos escavam suas suas tocas no fino cascalho que preenche o estreito espaço entre as lajotas dos pátios ou habitam as frestas nos meios-fios e passeios. Ocasionalmente, se fazem ouvir debaixo de latas de lixo, folhas caídas embrulhos de bala e poças de água.

O grilo-enfeitado é um inseto bege, de tamanho médio, adornado de marcas marrons a que deve o nome. Como outros membros de sal família, é notívago e os machos cantam noite adentro para atrair as fêmeas sexualmente receptivas. Muito mais sedentários do que as fêmeas, os machos passam cerca de 95 por cento do tempo enfiados em segurança nas suas tocas. E por uma boa razão: seus apelos eróticos atraem a atenção das famintas largatixas caseiras. Não conseguindo apanhar os grilos machos entocados, elas simplesmente ficam perto de onde vem o som e interceptam as fêmeas que atendem ao chamado dos machos.

A fêmea do grilo-enfeitado que consegue sobreviver aos predadores e se acasalar é recompensada pelo parceiro com uma bela refeição. Como no caso dos demais grilos, a cópula envolve a transferência do espermatóforo do macho para a fêmea. Mas, entre os grilos-enfeitados, a ampola, ou seja, a parte bulbosa, cheia de esperma, do espermatóforo, é envolvida por uma camada grudenta, o espermatófilax. Imediatamente após o acasalamento, a fêmea remove com a boca essa proteção da ampola e a devora. Depois, vem o segundo prato – a própria ampola. Se ela ingerir a ampola antes que o esperma tenha penetrado no seu corpo, a inseminação não se consumará e, da perspectiva masculina, foi tudo um desperdício. Como o esvaziamento da ampola leva cerca de 50 minutos até se completar, o espermatófilax deve ser grande o suficiente para não ser devorado antes disso.
Descobri que os machos normalmente proporcionam às fêmeas alimente bastante para que ela não abocanhe a ampola antes da hora. Quando isso acontece, pode não haver esperma para fertilizar todos os ovos da companheira, Portanto, o macho precisa transferir o máximo possível de esperma não só para fertilizar todos os ovos, mas também para competir com êxito com os outros parceiros da fêmea.

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Como muitas outras fêmeas de insetos, a do grilo possui um órgão especial, a espermateca, onde o esperma de todos machos fica armazenado até a postura dos ovos. Só então ocorre a fertilização. A probabilidade de um macho fertilizar os ovos da fêmea promíscua depende da abundância relativa de seu esperma na espermateca. Embora um acasalamento seja habitualmente suficiente para fertilizar todos os ovos, as fêmeas copulam muitas vezes, provavelmente porque ganham um almoço grátis a cada cruzamento. Do ponto de vista masculino, é um caso de fertilização por loteria, sendo o esperma o bilhete, e os ovos, o prêmio. Quanto mais bilhetes o macho tiver, maior sua chance de ser premiado. Dado esse cenário, as fêmeas detêm o controle da reprodução na medida em que escolhem os pais de seus descendentes e elas tendem a escolher os machos que oferecerem as maiores refeições. Assim proporcionar muita comida é essencial ao sucesso reprodutivo de um grilo-enfeitado e, portanto, ao seu êxito e termos evolutivos. Mas uma coleção de machos apanhados ao acaso sempre há de incluir indivíduos que produzam pequenos presentes alimentícios e outros que os produzam bem maiores. O que explica essa diferença? Com Robert Smith, um entomologista da Universidade do Arizona, criou grilos machos e descobri que os pais que têm grandes espermatófilax em relação a seu tamanho geram filhos que também apresentam essa característica. O tamanho do prato de comida resultaria assim antes da genética do que do ambiente.

Por que será que machos de algumas espécies de grilos alimentam suas parceiras a tão alto custo para si mesmos, enquanto machos de outras espécies aparentadas se reproduzem com êxito mediante apenas uma boa cantada? Se supusermos que a sedução via comida é um resposta comportamental a um problema ambiental específico, então, ao compararmos um certo número de espécie de grilos, deveríamos ser capazes de identificar um fator ecológico específico exclusivo da espécie cujos machos dão comida de presente. Tal abordagem exige conhecimento detalhados da história natural de muitas espécies de grilos. Infelizmente, só estamos começando a decifrar a rica diversidade dos sistemas de acasalamento que existem entre esses generosos cantadores.

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