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As origens egoístas do altruísmo

O altruísmo faz parte da vida selvagem, e vem de fábrica no seu cérebro. Mas as raízes dele são mais sombrias do que você imagina

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 30 ago 2019, 15h20 - Publicado em 29 Maio 2018, 09h43

São sete da manhã no Parque Nacional de Comoé, na Costa do Marfim, e uma coluna de 400 formigas pretas avança em formação cerrada. Elas acordaram cedo, e querem tomar café: uma porção de cupins. Pena que a refeição está viva – e com zero disposição para virar comida. Cupins habitam os arranha-céus do mundo em miniatura: os castelos de barro fortificados que se veem nas beiras de estrada. Invadir essas fortalezas, para insetos de 1,5 cm, é basicamente impossível. O jeito, então, é esperar as presas saírem para se alimentar – e pegá-las desprotegidas. O ataque, protagonizado pela espécie Megaponera analis, é rápido: as formigas mais parrudas abrem caminho nos troncos ocos, as menores agarram os cupins.

Quem observa a cena é o mirmecologista (isto é, um biólogo que só estuda formigas) Eric Frank, da Universidade de Würzburg, Alemanha. Entre 2013 e 2015, ele e seus colegas assistiram de camarote a 420 expedições de caça de cupins, organizadas por 52 formigueiros. As incursões costumam acabar em amputações violentas: para se defender, os cupins se agarram às patas das formigas até arrancá-las. Mas ninguém fica para trás. A ferida libera feromônios que informam sua localização às companheiras. E logo uma equipe de resgate aparece para carregá-la de volta ao formigueiro. Os paramédicos lambem os ferimentos para limpá-los, e, ao que tudo indica, aplicam uma substância de função antibiótica para evitar infecções. Uma hora de tratamento se converte em taxas de sobrevivência de 90%.

O gene altruísta
Formigas africanas resgatam os feridos em expedições de caça – limpam os ferimentos, aplicam antibiótico e os carregam para casa. quase um terço da colônia é composta de veteranos de guerra salvos. (Estevan Silveira/Superinteressante)

“Depois de resgatada e tratada, a formiga ferida tem tempo de se adaptar à locomoção em só quatro ou cinco patas [das seis que tinha originalmente]. Em menos de 24 horas ela já é capaz de correr na mesma velocidade de uma formiga saudável”, contou Frank. “Quando assistimos a uma coluna partindo para o ataque, percebemos que quase um terço das formigas menores já perdeu um membro em algum ponto da vida. Os veteranos são importantes nessa espécie.”

Formigas não têm capacidade de raciocínio para chegar à conclusão de que os amputados podem ser úteis no futuro. Se elas resgatam colegas, é porque vêm programadas de fábrica para fazer isso. Mas por que, então, a única força que programa cérebros – a seleção natural – forja esse tipo de comportamento? Por que gastar tempo e recursos para ajudar os outros? É o que vamos ver a seguir.

Vista de longe, a seleção natural de Darwin parece uma simples disputa por recursos. Se um guepardo nasce correndo mais rápido que os demais guepardos, ele acaba caçando mais presas, impressionando mais fêmeas e, em última instância, tendo mais bebês – com a mesma vocação para Usain Bolt do pai. Assim, com o tempo, guepardos rápidos se multiplicam na população, e os lentos desaparecem. Após alguns milhões de anos, o resultado é um felino que alcança 100 quilômetros por hora. O engenheiro dessa Ferrari? Ninguém: a mãe natureza faz o serviço sozinha.

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É aí que começa o problema: uma ação altruísta, na letra fria do darwinismo, é melhor para o indivíduo que recebe a ajuda do que para o indivíduo que presta auxílio. Um animal que gasta energia e se põe em risco para ajudar outro acaba sendo morto mais rápido. O hábito de ajudar, então, não deveria ter vingado na natureza. Mas não: o altruísmo existe na vida selvagem. O próprio Darwin admitiu essa contradição em A Origem das Espécies – não por coincidência, foi na hora de discutir formigas, famosas por sacrifícios admiráveis como o do começo da matéria. E agora?

O gene altruísta
Macacos avisam quando há um predador por perto – mesmo que coloquem a própria vida em risco pelo bando. (Estevan Silveira/Superinteressante)

Para encontrar a explicação, era preciso dar mais um passo. Foi o que biólogos como William Hamilton e John Maynard Smith fizeram na década de 1960. Na interpretação deles, o que a seleção natural seleciona não é uma formiga ou um guepardo. O que ela seleciona são os genes que dão vantagem à formiga ou ao guepardo. Recapitulando: o seu corpo é construído a partir de um manual de instruções – o DNA – que fica guardado no núcleo das células. Esse manual tem “páginas”, os genes. O que se dá bem na competição, portanto, não são as instruções do guepardo inteiro, só as páginas que contêm os passos para construir pernas mais longas e músculos de contração rápida. É esse o trecho de material genético que será bom para os filhos.

OK, mas isso muda alguma coisa? Sim, muda tudo. É só seguir o raciocínio: não existem dois indivíduos idênticos – cada um é uma combinação única de genes. Mas todo mundo compartilha alguns genes. Se você tiver olhos azuis, por exemplo, é garantia que você tem pelo menos um pouquinho de DNA igual ao de algum russo de olhos azuis, mesmo que vocês não sejam parentes. Se vocês forem mesmo parentes, aí o compartilhamento de genes é severo: seus primos têm 12,5% do material genético igual ao seu. Seus tios, 25%. Seus pais e irmãos, 50%. É mais gene repetido que figurinha da Copa.

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Agora suponha um conjunto de genes que o tornem mais propenso a atitudes altruístas – como fornecer alimento a pessoas próximas. Ao dar comida para seus irmãos e filhos, você colabora com a sobrevivência de gente que carrega seus próprios genes. Sendo bom com seus parentes, você é bom consigo mesmo. Não existe almoço de graça: uma atitude altruísta do ponto de vista do indivíduo ainda é interesseira do ponto de vista do DNA – são só bases nitrogenadas se preocupando com as cópias delas que vivem nas células de outro ser vivo.

É sempre bom reforçar que material genético não tem consciência nem intenções – a explicação acima é metafórica. Não tem molécula nenhuma “decidindo” ser bacana com suas sósias. É só uma questão de lógica. Pedaços de DNA que tornam seus donos propensos a ajudar acabam se espalhando pela população justamente porque têm o efeito colateral curioso de zelar pela própria sobrevivência em outros corpos. E é esse o segredo das formigas: elas são uma grande família. As operárias de uma colônia são todas filhas da rainha. Têm 75% do DNA idêntico, ou seja: são mais próximas entre si que irmãos humanos. Coloque outros fatores na ponta do lápis – como o fato de que a Megaponera analis tem baixa taxa de natalidade, o que torna difícil repor o exército – e fica fácil concluir que qualquer comportamento altruísta é mais vantajoso ali que o egoísmo. Cada soldado conta.

Algo parecido vale para os humanos. Na Pré-História, como as formigas, saíamos em grupos para caçar presas que se defendiam com violência. Quase todos os membros desses bandos eram parentes próximos – o que, por si só, já justificaria a ajuda mútua. Os que não fossem, porém, não eram necessariamente menos importantes: o cálculo de custo-benefício também leva em consideração o reforço que os companheiros podem dar em caçadas futuras.

O gene altruísta
Morcegos dão comida aos amigos em dias difíceis. Os egoístas ficam de fora da troca de favores – e passam fome. (Estevan Silveira/Superinteressante)
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Olho por olho

O macaco africano Chlorocebus pygerythrus tem meio metro de altura, rosto preto, pelo cinza e muitas semelhanças com o ser humano: vive em grupos de 10 a 50 membros, sofre de hipertensão, pode se viciar em álcool e, acredite, sabe falar. Tudo bem, “falar” é bondade: sua língua tem quatro palavras: leopardo, águia, cobra e babuíno. Não dá para formar frases, mas serve para avisar os colegas que qualquer um dessa lista está se aproximando.

O que leva a outra pergunta: por que um macaco, em sã consciência, daria um grito ao ver um animal ameaçador se aproximar? Fazendo barulho, o primata acaba atraindo a atenção do predador para si – arrisca virar comida para salvar seus iguais, em vez de sair de cena sorrateiramente e deixar a cobra ou águia pegar um desavisado. “Em princípio, é uma adaptação ruim, você está dizendo ‘olha eu aqui!’ para o predador”, diz Shigeru Miyagawa, linguista do MIT. Uma das explicações vai na linha das formigas: ao avisar o bando, o macaco salva seus familiares. Outra é mais política: ao fazer isso, ele age como um líder e ganha respeito. “Logo, as fêmeas se sentem mais atraídas pelo macho que dá o grito.”

A essa altura, você já deve ter percebido que arriscar a pele de propósito, só para mostrar quem é que manda, também é um típico hábito humano. E não é só no trânsito. Algumas tradições indígenas da América do Norte são famosas por uma cerimônia chamada potlatch. Nela, os membros mais ricos da tribo dão um banquete enorme, em que distribuem comida e todos os seus bens materiais. Se há uma disputa por poder em andamento, espera-se que outros indígenas com prestígio social respondam com uma festa à altura. Ao final dessa gincana de comilança, o derrotado vai à falência, mas o vencedor também sai na penúria. Não interessa: o que vale é o status.

Outra faceta egoísta do altruísmo, um pouco mais óbvia, é a troca de favores. Essa é mais velha que andar para frente: Heródoto, historiador da Grécia Antiga, relata uma cena que é reproduzida por livros didáticos até hoje. Às margens do Nilo, no Egito, crocodilos supostamente manteriam a boca aberta para que pássaros limpassem a carne que sobrava nos seus dentes. Tudo indica que é mentira: nenhum biólogo contemporâneo jamais conseguiu fotografar ou filmar a cena.

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O que não quer dizer que outras espécies não tenham adotado protocolos parecidos. Pegue o exemplo dos morcegos-vampiros (Desmodus rotundus), típicos da América do Sul. Como eles só se alimentam de sangue, é preciso sair à noite para encontrar um animal doméstico de respeito, como um porco, mordê-lo sem que ele perceba e depois torcer para a presa não fazer nenhuma besteira – como mudar de posição durante o sono, esmagando o pequeno drácula no processo. O metabolismo desses mamíferos voadores é rápido e eles não têm reservas de energia: se a caçada der errado duas vezes seguidas, a morte por inanição vem em no máximo 70 horas.

A solução, então, é colaborar. Os que se deram bem na busca e estão de barriga cheia regurgitam parte da refeição na boca dos famintos. Geralmente esses vômitos nutritivos são passados de mãe para filha: de 110 colaborações registradas em um estudo de 1984, 77 foram entre familiares próximos do sexo feminino. Mesmo assim, os morcegos também investem tempo e energia em manter vínculos – essencialmente, amizades – com outros membros do grupo com que não têm nenhum grau de parentesco. Elas servem de plano B: na ausência da mãe ou dos irmãos, os agregados podem fornecer comida, sempre na expectativa de que o favor seja retribuído um dia.

Os morcegos isolados, que não têm paciência para fazer amizade, se dão mal: quando estão passando fome, ninguém aparece para salvá-los. Sem essa “lista negra”, a estratégia de cooperação seria instável. Qualquer traidor que recebesse sangue sem dar nada em troca engordaria mais às custas dos parceiros, quebrando a estabilidade econômica do grupo.

Além do DNA

O gênero humano, durante a maior parte dos seus 2,4 milhões anos de existência, encarou muitas situações em que indivíduos altruístas – pelo menos na definição biológica da coisa – teriam se dado melhor que os egoístas. Como as formigas, nós saíamos em grupo para caçar animais que reagiam com violência. Como os macacos, nós nos colocamos em risco para impressionar os outros e demonstrar poder. Como os morcegos, nós podemos contar com nossos amigos quando a família não é suficiente. Se as situações são similares, nada impede a seleção natural de ter instalado tendências parecidas no nosso cérebro.

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Só é bom manter em mente que a biologia não é resposta para tudo. O DNA constrói seu corpo e dá dicas de como usá-lo, mas sua influência para por aí. Para entender, é só pensar em algo um pouco mais simples do que altruísmo: sexo. Fazer sexo não é bom à toa. O prazer é o jeito que a seleção natural deu de te convencer que fazer bebês é uma boa ideia. Acontece que o ser humano passou a perna no instinto – descobriu que dá para bagunçar os lençóis e curtir só a parte boa sem precisar lidar com os filhos depois. O resultado disso são camisinhas e pílulas anticoncepcionais.

Da mesma maneira, os genes que incentivaram o homem pré-histórico a sentir empatia não têm como saber quem é ou não da família na hora de oferecer ajuda. Eles são programados para dar uma mão a quem está próximo, seja lá quem for. Afinal, em uma tribo isolada, a chance de que seu vizinho seja um parente próximo é muito grande. Dá na mesma. O efeito colateral disso é que hoje sentimos vontade de doar água e comida a vítimas de tragédias em outro país, mesmo que elas não tenham parentesco nenhum conosco, nem possam devolver o favor um dia. O mundo mudou, o DNA ainda não – ele é um altruísta interesseiro, mas que pode ser (e é) enganado. A biologia, afinal, explica o mundo como ele é, mas não diz nada sobre a maneira como ele deveria ser.

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