Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

O quê você quer ser quando morrer?

As várias oportunidades que aguardam o seu corpo quando você não estiver mais usando ele

Por Rafael Kenski
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 30 abr 2004, 22h00

Muitas pessoas conseguem feitos dignos de super-heróis. Elas passam horas embaixo da água, agüentam extremos de temperatura, recebem pancadas sem sentir dor, estão em vários lugares ao mesmo tempo e podem receber injeções de químicos que nos destruiriam em segundos. Esse tipo de gente só tem uma diferença em relação a mim e a você: elas estão mortas.

Não é por causa desse detalhe que eles vão ficar parados. Cadáveres participaram de inúmeros avanços científicos, desde novas técnicas médicas até equipamentos de segurança para carros. Na sua maneira quieta e silenciosa, salvaram milhões de vidas. As possibilidades que nos aguardam quando não pudermos mais nos mover são o tema do livro Stiff (“Rígido”, inédito em português), da jornalista americana Mary Roach. A seguir, você verá quais são essas oportunidades. Desculpe-me por lembrar isso, mas um dia estaremos como eles. Temos então a chance de decidir agora como os superpoderes serão usados. Faça sua escolha.

Aula morta

Já pensou em virar peça de museu? Milhares de cadáveres passeiam hoje pela Europa em uma exposição chamada Body Worlds (“Os Mundos do Corpo”). A pele, a cor e detalhes microscópicos deles são quase iguais aos de qualquer pessoa que caminhe pelo museu. É como se fosse um showroom da mais recente técnica de conservação de corpos: a plastinação, que substitui os líquido do corpo por uma resina como o silicone e o mantém intacto por até 10 mil anos. O problema começou quando o criador da técnica, o anatomista alemão Gunther von Hagens, passou a usar os cadáveres preservados para encher museus e gerar polêmica. Além das denúncias de que ele estaria usando corpos sem autorização, ele foi acusado de desrespeitar os mortos e de ter um senso artístico no mínimo duvidoso. Hagens diz que seu objetivo não é fazer deles obras de arte, mas mostrar noções de anatomia às mais de 12 milhões de pessoas que visitaram a exposição. Na opinião dele, não é um uso tão diferente do que milhões de médicos fazem ao utilizar dissecações para ensinar seus alunos.

Poucas áreas da ciência são tão cheias de escândalos quanto o uso de cadáveres para pesquisa ou ensino. As primeiras experiências desse tipo já eram motivo para quebra-pau. Há 2 300 anos, o médico grego Herófilo, considerado o pai da anatomia, descreveu o funcionamento de nervos e de órgãos pela primeira vez baseado em dissecações. O problema é que, além de mortos, as experiências incluíram cerca de 600 criminosos vivos, segundo relatos do historiador Tertuliano (155-222 d.C.), um opositor de Herófilo.

O uso de cadáveres de criminosos para experiências, no entanto, persistiu na Europa até o século 19. Ser submetido pela autópsia era tido como uma penitência pior que a execução, algo que praticamente eliminava as chances de se chegar ao céu. Ficava restrito àqueles que cometiam delitos muitos graves, mas o número de infelizes nessas condições ficava muitas vezes abaixo do que os médicos precisavam. Alguns buscavam uma solução em casa: no século 17, o inglês William Harvey, o descobridor do funcionamento do sistema circulatório humano, fez suas experiências no próprio pai e na irmã. Um século antes, o belga Andrea Vesalius, o anatomista mais famoso de todos os tempos, recomendava que seus alunos estudassem o funcionamento dos tendões até enquanto comiam carne durante o jantar. Existia também um método mais radical: roubar corpos de cemitérios. A prática se tornou tão comum que algumas pessoas chegavam a ser enterradas em túmulos de ferro, com caixões duplos ou triplos, blindados com concreto ou repletos de travas. O auge da polêmica foi em 1828, quando dois ingleses, Burke e Hare, assassinaram pelo menos 15 pessoas para vendê-las a um anatomista.

O controle do uso de cadáveres mudou bastante desde então. As pesquisas obedecem hoje várias normas éticas que, de acordo com o caso, exigem o consentimento prévio da pessoa ou de sua família. Em muitas situações, os cadáveres se tornaram até desnecessários. Eles podem ser substituídos nas aulas por corpos embalsamados ou por softwares com modelos tridimensionais do corpo humano, que podem agilizar o aprendizado. Em várias pesquisas científicas, no entanto, os cadáveres serão sempre necessários.

Continua após a publicidade

Corpo dublê

Quem não praticou esportes radicais em vida tem ainda uma chance depois de morto. Só que, nesse caso, as opções são ainda mais radicais. Que tal, por exemplo, receber pancadas no joelho até que ele se quebre? Ou cair de cima de um prédio sobre cacos de vidro? É o que fazem os cadáveres que caem nas mãos dos cientistas da Universidade Estadual Wayne, em Michigan, Estados Unidos. O objetivo é bastante nobre: fazer carros mais seguros. Os bonecos usados em testes de batida de automóveis dizem exatamente a força com que eles foram atingidos. Mas, para que essa informação seja útil, é preciso antes saber quanto um ser humano consegue agüentar. É aí que os cadáveres são essenciais. As experiências – que simulam desde atropelamentos até pessoas voando pelo pára-brisa– são sem dúvida úteis: Albert King, um bioengenheiro dessa universidade, calcula que 147 vidas são salvas por ano para cada cadáver usado no desenvolvimento de airbags.

É mesmo preciso usar cadáveres nessas experiências? Os cientistas bem que tentaram outras opções. Lawrence Patrick, antigo professor da universidade, costumava fazer os testes nele mesmo e em seus estudantes. Alguns chegaram a suportar impactos equivalentes a mais de 400 quilos no joelho para testar a resistência dessa articulação (segundo eles, um joelho aguenta 635 quilos antes de virar picadinho). Também usaram animais como porcos, cachorros e macacos, mas esses bichos não se comportam como os humanos quando se envolvem em batidas de carros. A solução foi apelar para os cadáveres ou, na maioria das vezes, para partes deles. “Nenhum pesquisador realmente quer trabalhar com cadáveres inteiros, a não ser que realmente precise”, diz Mary Roach. Várias áreas da ciência precisam tanto de pesquisadores mortos quanto de vivos. Uma das mais polêmicas é o desenvolvimento de armas. Algumas universidades e centros de pesquisa americanos usam corpos para estudar o impacto de balas no corpo, com o objetivo de criar armas que parem o adversário sem matá-lo ou coletes mais eficazes contra tiros. Parece estranho usar cadáveres para encontrar novas formas de matar, mas é um avanço: na Guerra da Coréia, o teste de um novo colete americano foi dá-lo a 6 mil soldados e ver se eles viviam mais do que os soldados com roupas comuns.

Uma das áreas que mais utilizam cadáveres é a ciência forense. Uma das possibilidades de pesquisa é simplesmente não fazer nada com o cadáver, como fazem os cientistas da Body Farm (“Fazenda de Corpos”, em inglês), na Universidade do Tennessee, Estados Unidos. Lá, dezenas de defuntos estão espalhados no chão, encostados em árvores ou dentro de carros, fazendo o que os restos mortais normalmente fazem: decompor-se. Se você achou repugnantes as pesquisas feitas com cadáveres, saiba que ser enterrado não é muito mais agradável. As bactérias que vivem calmamente dentro do nosso organismo enquanto estamos vivos começam a se alimentar de nós mesmos quando morremos. Assim, a pessoa se desfaz de dentro para fora, enquanto insetos fazem o mesmo de fora para dentro. O objetivo da Body Farm é analisar a velocidade e os vários estágios desse processo para descobrir há quanto tempo a vítima morreu – uma informação valiosíssima para verificar álibis e solucionar assassinatos.

Salva-vidas

Antes de decidir o que fazer com um corpo, é extremamente recomendável saber se ele está mesmo morto. Nem sempre é fácil. A morte é como um processo em que o organismo lentamente desliga seus órgãos. A técnica usada até meados do século passado para decretar o óbito era checar os batimentos cardíacos – se não desse para ouvir nada, era sinal de que o resto do corpo não recebia oxigênio e, portanto, já estava a caminho do necrotério. A situação se complicava em alguns casos de afogamento, derrame ou envenenamento, quando uma pessoa pode voltar à vida mesmo que o coração fique imperceptível por um tempo. Para não correr o risco, médicos do século 18 e 19 inventaram métodos um tanto bizarros para decidir se a pessoa estava morta, que envolviam torturas como cortar a sola dos pés, enfiar um lápis no nariz ou até puxar a língua do falecido por três horas seguidas (sabe-se lá por quê). Nenhuma dessas técnicas teve grande aceitação e a única prova definitiva de que a pessoa estava morta era quando o cadáver começava a apodrecer. Na Europa do fim do século 19, os corpos ficavam guardados em casas feitas especialmente para isso, mas, como ninguém voltou à vida nesses lugares, elas logo foram desativadas.

Continua após a publicidade

As invenções das últimas décadas complicaram ainda mais o problema. Não só podemos salvar pessoas que tiveram paradas cardíacas graves como surgiram aparelhos capazes de fazer os órgãos funcionarem mesmo quando o cérebro não tem mais chance de recuperação. Surgiu então um novo critério para traçar o fim da vida: a morte encefálica. A pessoa está morta quando não passa nos testes que medem a atividade elétrica e a corrente sanguínea no cérebro. Esse novo diagnóstico abriu as portas para um enorme avanço na medicina: o transplante de órgãos e tecidos. A prática, a única cura para diversas doenças, é realizada mais de 10 mil vezes todo ano no Brasil e tende a crescer ainda mais.

Os transplantes são uma forma bem sensata de transformar a morte em um benefício, especialmente quando vemos as outras tentativas ao longo da história. No século 16, o naturalista chinês Li Shih-chen descreveu uma receita árabe em que homens de 70 ou 80 anos, dispostos a ajudar os outros, passavam a comer só mel, ao ponto de morrer disso. Eram então trancados em um caixão cheio de mel e deixados lá durante um século. Ao serem retirados dali, o que sobrava virava um remédio para tratar feridas e membros quebrados. Outras formas de canibalismo medicinal não foram raras ao longo da história. Nos séculos 16 e 17, europeus usavam restos de pessoas mumificadas para tratar desde arranhões até vertigens. Os epiléticos de hoje devem agradecer por ter nascido no século 20: as receitas até então incluíam crânio de gente, coração humano seco, urina de garoto e, na época dos romanos, sangue fresco de gladiador. A única prática que restou do gênero foi a deglutição da própria placenta, hábito conservado por algumas mães aé hoje. Algumas páginas na internet chegam a listar receitas de coquetéis, lasanhas e pizzas que usam placentas que, segundo dizem, ajudam a aliviar a depressão pós-parto.

Mesmo que, depois de tantas idéias, você prefira ser cremado, até aí existem alternativas mais úteis e tecnológicas. A empresa sueca Promessa consegue transformar seu corpo em cinzas com uma técnica que, além de não soltar fumaça, ainda gera um material útil para a natureza. O método utiliza nitrogênio líquido para congelar o cadáver a dezenas de graus abaixo de zero. O corpo fica tão duro que, com um pouco de vibração, se transforma em um pó semelhante a cinza. A diferença é que, por não ter sido queimado, ele pode virar adubo para plantas. A idéia, segundo a página da empresa na internet, “é permitir o retorno ao ciclo ecológico da natureza”. A vantagem, dizem eles, é que seu corpo é absorvido por uma árvore, que pode se transformar em um memorial seu.

Ainda que você escolha ser enterrado, é bom saber que existem outras alternativas. Já que não decidimos o momento em que vamos morrer, ao menos podemos escolher o que acontecerá conosco depois.

 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.