Paixão revelada
A ciência descobriu a paixão. Nunca se pesquisou tantosobre esse sentimento arrebatador. Saiba o que os estudos já descobriram. E o que eles revelam sobre a mente humana.
Carla Aranha
Se existe algo que não combina com ciência, matemática e laboratórios, essa coisa é a paixão. Pois não é que esse sentimento imprevisível e espontâneo é hoje um dos principais objetos de estudo científico? É verdade. Os apaixonados estão na mira de psicólogos, antropólogos, sociólogos e historiadores. E as expectativas das pesquisas são grandes. Espera-se que os suspiros dos amantes desvendem, entre outras coisas, a evolução humana, mudanças sociais e até o funcionamento do cérebro.
Achou pouco? Pois tem mais. A antropóloga Helen Fisher, da Universidade Rutgers, em Nova Jersey, nos Estados Unidos, diz que o modo como a paixão é vista nas diferentes sociedades é a chave para se entenderem mecanismos como liberdade, poder e submissão feminina. Para outro renomado estudioso do tema, o sociólogo italiano Francesco Alberoni, a paixão entre duas pessoas é feita do mesmo combustível que move as grandes revoluções. Entendê-la seria um passo importante na compreensão dos movimentos de massa. E o psiquiatra James Leckman, da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, acha que a maneira como as pessoas lidam com a paixão é um indicador de saúde mental.
O interesse científico pelo tema começou nos anos 60. A paixão passou a ser mais valorizada e respeitada pela academia. “Antes da Segunda Guerra, a paixão era vista como um sentimento de segundo escalão, mais para ser vivida por adolescentes do que por adultos. A ciência não prestava muita atenção nela”, diz Helen Fisher.
O primeiro estudo sério surgiu há apenas 40 anos. A psicóloga americana Dorothy Tennov examinou 400 apaixonados e concluiu que eles funcionavam todos do mesmo jeito, porque a paixão provoca os mesmos sintomas em todos.
Bem, para quem nunca sentiu isso, seguem as descobertas da pesquisa: na presença do objeto da paixão, os apaixonados sentem o coração bater mais rápido e um frio na barriga. Eles passam noites sem dormir e perdem o apetite. “Nesse ponto, a paixão é bem diferente do amor, que é um sentimento muito mais voltado para a estabilidade, sem grandes sobressaltos, que as pessoas não vivem de forma igual”, diz Helen.
Uma pesquisa recente da psiquiatra italiana Donatella Marazziti, da Universidade de Pisa, mostrou que diversas substâncias cerebrais são liberadas quando estamos apaixonados, o que ajuda a explicar, do ponto de vista químico, as noites maldormidas e a perda de apetite. É tudo culpa de estimulantes naturais como a dopamina e a norepinefrina, produzidas em quantidades maiores que o usual por quem se apaixona. Essas substâncias são as mesmas utilizadas em moderadores de apetite.
Segundo Donatella, o estudo da paixão é importante para o entendimento do mecanismo que aciona determinados circuitos cerebrais a partir de uma forte emoção. “É mais fácil examinar o cérebro dos apaixonados porque a paixão é um sentimento poderoso, que mexe com a química do organismo mais do que todos os demais”, explica. O estudo, realizado há dois anos, é resultado de uma nova tecnologia. Até então, não havia como examinar as substâncias cerebrais em detalhe.
É por causa dessa revolução química no cérebro, aliás, que nenhuma paixão dura muito. Apesar de ser um sentimento delicioso, uma paixão que durasse dez anos acabaria com a vida de um sujeito. “Isso seria biologicamente impossível. Nenhum ser humano agüentaria ficar anos a fio sem comer ou dormir direito”, diz o psiquiatra James Leckman. Em média, o prazo de validade da paixão é de dois a três anos. “Mas isso não é uma regra, já que a paixão por definição é imprevisível”, diz Leckman.
Segundo Helen, o ser humano tem vivido esse sentimento cada vez mais. Para ela, isso é sinal de evolução do comportamento humano. Segundo a antropóloga, uma pesquisa recente da Organização das Nações Unidas mostrou que, em dois terços dos países, as pessoas declararam ter estabelecido um relacionamento com base na paixão, tanto no Ocidente como no Oriente. Há 50 ou 60 anos, diz ela, o número não chegaria a 50%. Ela atribui a mudança a dois fenômenos. O primeiro é a crescente independência econômica da mulher, que com isso pode escolher livremente seus parceiros. O segundo é que, em muitos países, caíram as proibições de casamentos entre pessoas de classes, raças ou religiões diferentes. Significa que o fim do apartheid na África do Sul, em 1994, e a ascensão da classe média na Europa, depois da Segunda Guerra, fizeram da Terra um lugar mais apaixonado. “Não existe paixão sem liberdade de escolha”, diz ela.
Mas isso não basta. Para apaixonar-se é preciso estar com o coração predisposto, segundo o psicoterapeuta e psicólogo Eduardo Ferreira-Santos, do Serviço de Psicoterapia do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Ao contrário do que diz o senso comum, não nos apaixonamos por acaso. É preciso estar pronto para essa experiência”, diz ele. Pessoas com medo de dar esse mergulho no escuro inconscientemente criam barreiras para não se apaixonar. “Isso não é saudável, já que se deixa de viver a vida”, afirma o psicoterapeuta.
Mas existem pessoas que, mesmo que quisessem, nunca se apaixonariam. É o caso dos autistas, que desconhecem os sentimentos de ligação com outro ser, de acordo com Leckman. Para o psiquiatra, quem é dependente de drogas também perde a capacidade de experimentar a paixão. “Algumas substâncias químicas acabam impossibilitando qualquer troca, o que mata a paixão.”
No outro extremo, o excesso de ligação pode se tornar doentio, como no caso de pessoas que deixam de cuidar da própria vida para viver em função do outro. “Isso é uma doença, uma desordem que na psiquiatria chamamos de obsessiva-compulsiva e precisa ser tratada”, diz Leckman. Também há um limite saudável para o desejo de ser correspondido na paixão. Quando é evidente que não existe um interesse do outro e mesmo assim o apaixonado continua a acreditar que é correspondido, isso também é sinal de doença. “Patologias assim podem levar até a assassinatos e suicídios”, diz o psiquiatra.
O adulto que curte uma paixão por alguém inacessível, como um artista famoso, também está na contramão da boa saúde mental, segundo o psicoterapeuta Eduardo Ferreira-Santos. Na primeira fase da adolescência, até 14 anos, é normal um garoto se apaixonar pela Fernanda Lima e ficar horas olhando o pôster dela. (E fazendo outras coisas, também. Mas é melhor não entrar em detalhes.) Mas um adulto que continua idolatrando uma pessoa inacessível sofre de algum distúrbio. “Geralmente, isso é sinal de que a pessoa não consegue viver um amor de verdade com uma pessoa de carne e osso, por conflitos mal resolvidos com o pai ou a mãe”, explica o psicoterapeuta. Casos de fanatismo e adoração religiosa também entram nessa categoria. “É sempre paixão sublimada, que, em vez de ser direcionada para um ser humano com o qual é possível ter um relacionamento, acaba desviada para um objeto inalcançável.”
Já apaixonar-se pelo vizinho, pelo colega de trabalho ou o amigo do curso de inglês é sinal de um bom desenvolvimento psicológico, segundo Eduardo Ferreira-Santos.
Mas por que nos apaixonamos por uma pessoa e não por outra? A ciência ainda não tem resposta para essa pergunta. Mas há pesquisa a respeito. O que já se sabe é que isso não tem nada a ver com os melhores genes para a evolução da espécie. A paixão não tem raízes biológicas, segundo o biólogo evolucionista James Weinrich, da Universidade da Califórnia. Afinal, esse sentimento nunca foi nem será necessário para a procriação. Portanto, a sobrevivência da espécie não depende dela. “Como os animais, que fazem sexo por um impulso biológico, o ser humano também pode ter relações sexuais sem estar apaixonado”, diz o biólogo. A escolha do objeto da paixão, portanto, tem explicações mais centradas no coração e na alma do que na ciência.
Geralmente, nos apaixonamos pelas pessoas que correspondem a um conjunto de expectativas que formamos ao longo da vida, muitas vezes com base em experiências vividas na infância. “Somos influenciados por experiências amorosas que tivemos na infância, seja com os adultos que participavam da nossa vida ou com outras crianças, pelas relações amorosas da vida adulta e até por filmes, músicas e livros”, afirma Leckman. Esse tema, aliás, é o objeto de estudo de sua pesquisa atual: o quanto os namoros infantis podem influenciar as escolhas do adulto. “É um estudo inédito, partindo do princípio que as crianças também vivem amor e paixão, em algum grau”, diz o psiquiatra. Mas ele lembra que será impossível explicar cientificamente por que nos apaixonamos por uma determinada pessoa. “Os motivos são inconscientes, inacessíveis.”
Em Fragmentos de um Discurso Amoroso, o filósofo Roland Barthes faz um longo e poético estudo sobre a paixão e o amor. Escrita em 1977, a obra expõe tautologias aparentemente insuperáveis, como “Adoro você porque você é adorável”. Mas essa inspiração é milenar. O ser humano vem cantando sua adoração pela cara-metade há pelo menos 3 mil anos, data dos primeiros registros de poemas românticos.
Muito antes disso porém, na pré-história, o ser humano já se apaixonava. Segundo o historiador francês Jean Courtin, do Centro Nacional de Pesquisa Científica, da França, o Homo sapiens sente paixão desde seus primeiros passos na Terra. Tudo teria começado há 40 mil anos, quando o homem começou a exercer sua sensibilidade pintando as paredes das cavernas, fabricando adornos e fazendo funerais. “Essas manifestações indicam um cérebro dotado de emoção”, diz o historiador. Segundo ele, não há por que não crer que os primeiros humanos se apaixonavam, já que a paixão faz parte da nossa natureza. A arte das cavernas, considerada um testemunho histórico, não retrata apenas bisões e outros animais, mas também casais, algumas vezes até em posições, digamos, românticas. Diferentemente de animais como lobos, esquilos e corvos, que formam pares para a vida toda por instinto, o ser humano dotou de significado afetivo suas escolhas e se apaixonou.
Para a antropóloga Helen Fisher, a paixão possivelmente era vivida de forma bastante intensa e sem amarras nos primórdios da humanidade, já que não havia regras sociais que pudessem influir no comportamento das pessoas. “Quando o homem era coletor e caçador, os recursos eram naturais e não havia propriedade e hierarquia. A paixão florescia com a toda a força, e as pessoas tinham relações livres umas com as outras”, diz ela.
A coisa mudou de figura há 10 mil anos, quando o homem inventou a agricultura, a casa e o aglomerado urbano. Desde então, a preocupação com a herança e a propriedade passou a ser mais importante que a paixão. Esse período desapaixonado, no entanto, teve suas exceções. Na sofisticada cultura grega, por exemplo, a paixão teve um lugar de honra no Olimpo dos deuses. Segundo a mitologia grega, foi essa volúpia que uniu, pela primeira vez, uma divindade (Eros, mito do amor) e um mortal (Psiquê, mito que representa a alma). Da união nasceu Voluptas, o Prazer.
A Idade Média, ao contrário, foi uma época de paixões veladas, proibidas. Apaixonar-se era considerado quase um pecado, uma leviandade que tirava o cristão dos trilhos da moral religiosa, que proibia o sexo antes do casamento. A sociedade também não via com bons olhos relacionamentos entre pessoas de classes sociais diferentes, postura que perdurou até pouco tempo atrás. “Claro que as pessoas se apaixonavam, porque isso faz parte da essência humana e não pode ser bloqueado por uma convenção social, mas a paixão não era a base dos relacionamentos”, afirma a antropóloga.
Para James Leckman, por mais que a paixão seja estudada, o sentimento ainda vai permanecer em grande parte um mistério. “Tomara que assim seja, porque não existe nada mais mágico do que a paixão”, diz ele.
Para saber mais
Na livraria
Anatomia do Amor
Helen Fisher, Eureka, 1995
Sexual Landscapes: Why We Are, What Are We, Why We Love, Whom We Love
James Weinrich, Charles Scribner’s Son, 1987
Fragmentos de um Discurso Amoroso
Roland Barthes, Francisco Alves, 1991
Enamoramento e Amor
Francesco Alberoni, Rocco, 1991