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Parece, mas não é

Substitutos de sangue podem ser a solução para as transfusões seguras e sem lista de espera.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 1 ago 2003, 01h00

Claudia de Castro Lima

Procuram-se doadores de sangue. O pai de nosso colega João Silva está internado e precisa de uma transfusão. Se você puder, compareça ao hospital…” Você provavelmente já viu um cartaz com dizeres do tipo afixado no mural da empresa, da faculdade ou do curso de inglês. A situação é comum porque os estoques dos bancos de sangue são sempre baixos. Falta de doadores, incompatibilidade sangüínea e altos custos para coleta, conservação e testes da substância são apenas alguns dos problemas enfrentados por hospitais do mundo todo.

Nos últimos anos, o número de doadores de sangue tem diminuído, em parte devido às restrições estabelecidas para evitar transmissão de doenças. Se a situação é ruim para a classe médica em geral, é ainda pior para a oncologista e cirurgiã sul-africana Carol Benn: em seu país, um em cada cinco doadores potenciais de sangue é HIV positivo – ou 4,5 milhões de pessoas, cerca de 10% da população. A solução parece ter saído de um livro de ficção científica barata: sangue artificial. Longe disso, a substância conhecida nos meios médicos como terapêutica de oxigênio é uma realidade. Ao menos na África do Sul, único país do mundo que utiliza o Hemopure, uma das várias “marcas” de sangue artificial produzidas nos Estados Unidos hoje em dia.

SANGUE DE BOI

Administrado em casos específicos, como de anemia cirúrgica aguda ou em tratamentos de câncer – para aumentar os efeitos da quimioterapia ou da radioterapia em tumores, que são hipóxicos, ou seja, têm baixa dosagem de oxigênio -, o Hemopure é uma solução compatível com todos os tipos de sangue. “O Hemopure proporciona uma forma alternativa de distribuir oxigênio para os tecidos do organismo quando células vermelhas compatíveis não estão disponíveis ou quando os médicos ou pacientes preferem evitar a transfusão de sangue habitual”, afirma Douglas Sayles, diretor de comunicações da Biopure, empresa de Massachusetts fabricante do composto. “Tenho usado o Hemopure em tratamentos de câncer de mama”, diz a médica Carol, que trabalha na Netcare, empresa proprietária de um terço dos leitos hospitalares particulares da África do Sul e distribuidora oficial da substância no país. “Os resultados têm sido ótimos.”

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Para as transfusões habituais, o sangue dos doadores é testado para a verificação de agentes patogênicos, mas não é purificado. O Hemopure, ao contrário, passa por avançadas técnicas de purificação para remover bactérias, vírus e diversos outros microorganismos. E a matéria-prima vem de um local um tanto inusitado: o pasto. O sangue artificial é feito a partir da hemoglobina encontrada no sangue do boi. “O sangue vem de criações monitoradas, em locais isentos de doenças como o mal da vaca louca. O gado tem documentação de origem, histórico médico, alimentação e idade controladas”, explica Douglas Sayler. A hemoglobina bovina é quimicamente estabilizada numa solução salina. “Ela carrega a mesma quantidade de oxigênio que a hemoglobina das células vermelhas humanas”, afirma Sayler.

TÁXI DE OXIGÊNIO

O corpo humano adulto tem entre cinco e seis litros de sangue. A perda de metade disso é fatal. Para manter o organismo funcionando, o sangue tem de ter cinco componentes: células vermelhas, para o transporte de oxigênio para todo o corpo; plasma, para distribuir nutrientes e anticorpos; pressão, para forçar o fluxo dos componentes e para a troca de gases; plaquetas e substâncias coaguladoras, para estancar o sangue de feridas; e células brancas, para examinar e atacar substâncias estranhas. No caso de uma cirurgia, quando há perda de sangue pelo paciente, os médicos não precisam se preocupar tanto com pelo menos quatro desses elementos. As células brancas não são tão necessárias por um certo período de tempo. O organismo tem um excedente de plaquetas para ajudar na cicatrização do corte cirúrgico. A pressão sangüínea e o plasma podem ser repostos com soluções simples como o soro. No entanto, para a reposição das células vermelhas, só há uma saída: a transfusão.

É aqui que entra o sangue artificial.

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Até agora, o FDA (Food and Drug Administration), órgão americano que regulamenta a comercialização de produtos farmacêuticos, não aprovou nem licenciou nenhum dos produtos fabricados nos Estados Unidos para uso humano – autorizações especiais são emitidas para alguns pacientes, como Emily Gruszka (veja depoimento na página 49). “Os medicamentos não são substitutos de sangue”, afirma Paul Richards, relações-públicas do FDA. “Mesmo que as terapêuticas de oxigênio possam substituir o uso de um dos componentes do sangue, como as células vermelhas, elas não podem substituir todos os componentes graças à complexa natureza do sangue.” De fato, essas novas drogas são produtos que ajudam na distribuição de oxigênio, mas não têm as outras características do sangue, como possibilitar a coagulação e combater infecções. Segundo Paul Richards, diversas empresas estão passando por testes pré-clínicos ou clínicos para aprovação no FDA.

O VTR-PHP, fabricado pela Ajinomoto em parceria com a Apex Bioscience, é um deles. O HetaCool (da BioTime), o Oxycyte (da Sinthetic Blood International), o Oxygent (da Alliance Pharmaceutical), o PolyHeme (da Northfield Laboratories) e o Hemolink (da Hemosol) são outros. “Estamos começando a terceira fase de testes para a aprovação no FDA para uso em traumas, tanto militares quanto civis”, diz Sophia Twaddell, vice-presidente de comunicações do Northfield Laboratories. PolyHeme, o produto da Northfield, é um composto de sangue humano modificado. “Ele é compatível com todos os tipos de sangue e pode ser armazenado por até um ano, enquanto o sangue humano tem um prazo de validade de apenas 42 dias”, afirma.

O sangue artificial poderia reduzir também a mortalidade em grupos que se recusam a fazer transfusões por motivos religiosos – caso das Testemunhas de Jeová. Está aí outra aplicação das novas drogas. Uma solução seria a aplicação de produtos como o Oxycyte, totalmente sintético.

CAMPO DE BATALHA

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Os cientistas começaram a pesquisar substâncias para substituir o sangue já na metade do século 17, quando médicos ingleses injetaram sangue de ovelha direto nas veias de soldados, numa tentativa desesperada de salvar suas vidas no campo de batalha. A transfusão de animais para humanos foi extinta quando as reações imunológicas fatais foram percebidas. No século 19, os pesquisadores resolveram testar diversas formas de substitutos de sangue, como água, óleo e até leite. Ao mesmo tempo, estudos de transfusões de sangue de humanos para humanos continuavam e salvaram uma vida pela primeira vez na Filadélfia (EUA) em 1795.

Os estudos prosseguiam e custavam a vida de muita gente, que morria em decorrência da doença que tinha ou por causa de reações ao sangue estranho. Só no século 20 é que foram descobertos os vários tipos sangüíneos e as pesquisas puderam continuar de forma mais segura. Na década de 60, pesquisadores tentaram descobrir se as hemoglobinas, extraídas das células vermelhas, seriam eficazes no transporte de oxigênio. Mas esses primeiros compostos acarretaram em problemas com intoxicação dos rins. Os estudos foram retomados em 1980, depois que perceberam que o HIV, vírus que causa a aids, havia contaminado o estoque de sangue.

Os trabalhos continuam até hoje. Apesar de avançados, há ainda uma certa jornada até que o sangue artificial seja completamente seguro e não tenha reações adversas – relatadas ainda pela maior parte das empresas que estão tentando aprovação no FDA. Vasoconstrição, anemia, dores abdominais, disfagia (dificuldade para engolir), náusea, vômitos, coloração amarela da pele, hipertensão e taquicardia são algumas delas. No entanto, há gente que confia num final feliz para esta história. A oncologista Carol Benn é uma dessas pessoas. “Nenhum paciente meu teve qualquer reação grave, como infecção”, afirma. “Faço uso do Hemopure sem medo.”

SANGUE DE MINHOCA

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Outra solução para substituir o sangue humano está sendo estudada na França e tem uma origem bem improvável: minhocas. Arenicola marina é o nome científico da minhoca aquática que pode revolucionar os estudos de sangue artificial. Além de não causar reações adversas, a hemoglobina obtida da minhoca é mais fácil de ser produzida. “A hemoglobina dela é extracelular, isto é, ela está livre no sangue do animal, não fica dentro de células, como no sangue humano”, afirma o pesquisador Frank Zal, da Universidade Pierre et Marie Curie, em Paris. “Não modificamos nada. Apenas a coletamos e purificamos.” E tem mais: como a molécula de hemoglobina do animal é cerca de 50 vezes maior que a humana, ela não afeta os rins – na transfusão de sangue humano, a hemoglobina pode quebrar-se em pedaços muito pequenos e obstruir o sistema de filtragem renal. Com a molécula maior de proteína, isso não ocorre.

NOVA DROGA?

O uso indevido dos substitutos de sangue é um dos motivos que têm atrasado a aprovação dos produtos pelas autoridades de saúde americanas. Embora não tenha obtido a autorização para vender o Hemopure nos Estados Unidos, a Biopure tem carta branca para distribuir um similar de uso veterinário. E alguns humanos já descobriram um novo jeito de aproveitá-lo.

O Oxyglobin, também derivado da hemoglobina de boi, é usado para tratar anemia em cães, por exemplo. No entanto, ciclistas de competição já perceberam que o produto – que permite ao oxigênio penetrar com mais eficácia nos tecidos – pode melhorar sua performance, quase literalmente, injetando sangue novo no time.

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“Sangue artificial salvou a minha vida”

Leia depoimento de americana que recebeu autorização especial para receber o Hemopure

O depoimento abaixo, obtido com exclusividade pela Super, é de uma das poucas pessoas autorizadas a receber uma transfusão de sangue artificial nos Estados Unidos. Emily Gruszka, 26 anos, sofria de uma doença rara e geralmente fatal. O tratamento deu resultado, e hoje Emily leva uma vida normal em Spokane, no estado de Washington. Ela foi mãe pela primeira vez no ano passado.

“Minha história é longa e complicada. Eu fiquei muito, muito doente, com uma disfunção rara no sangue que levou algum tempo para ser diagnosticada e tratada. Meu sistema imunológico desenvolve anticorpos para destruir minhas células sangüíneas, e faz isso de forma muito rápida. A doença chama-se síndrome de Evan. Eu não conseguia produzir sangue depressa o suficiente para me manter viva. Meu tratamento começou em maio de 1999. Tentamos diversas terapêuticas em duas semanas. Tive meu baço removido, fiz quimioterapia e comecei com um medicamento chamado Cyclosporine, usado normalmente para evitar rejeição a órgãos transplantados. No entanto, os tratamentos levariam umas duas semanas para começar a fazer efeito. Os médicos esperavam que o Cyclosporine evitasse que meu sistema imunológico rejeitasse meu próprio sangue e que a quimioterapia regulasse o sistema. Infelizmente, nessas duas semanas, tive uma infecção grave, e a destruição de minhas células sangüíneas foi tamanha que eu provavelmente não viveria o suficiente para ver os benefícios do tratamento. Foi quando um de meus médicos contatou a empresa Biopure, pedindo o substituto de células vermelhas Hemopure. Ele não era (e não é ainda) aprovado pelo FDA, mas consegui uma autorização do governo para usá-lo. Usei muitas doses e pude levantar e conversar com meus médicos – uma dosagem semelhante de sangue humano não seria suficiente para me manter viva. No entanto, o sangue artificial auxiliou no transporte de oxigênio para meu organismo e eu pude viver o tempo necessário para as outras drogas começarem a fazer efeito. Eu realmente acredito que o Hemopure salvou minha vida. Era um tratamento experimental quando eu o recebi, e eu fui avisada de que os riscos ainda eram desconhecidos. Mas, uma vez que a outra alternativa era a morte quase certa, a decisão foi fácil de ser tomada.”

 

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