Pauling: Ciência sem Barreiras
Ele descobriu por que o mundo não se desmancha e o que mantém o homem vivo. Ajudou a acabar com testes atômicos na atmosfera e quer provar que a vitamina C é um santo remédio.
Roberto Garcia, de Washington
Parece um pescador português, com sua boina, enorme suéter e calças bufantes. Os gestos são largos e tranqüilos, os olhos acesos e inquietos. Às vésperas de completar 88 anos, no último dia 28 de fevereiro, o pioneiro da Biologia Molecular, Linus Carl Pauling, ainda se mantinha fiel ao hábito de se deslocar uma vez por semana de sua casa fincada num imenso parque em Big Sur, na Califórnia, com magnífica vista para o Pacífico, até o Instituto de Ciência e Medicina que leva o seu nome, em Menlo Park, a 40 quilômetros de São Francisco. Há tanta coisa a fazer, explicava ele, autor de quase setecentos trabalhos e uma dúzia de livros. Mas não é tarefa, é prazer o que o move: Gosto de entender o mundo, sempre tive enorme interesse em aprender. Sinto enorme satisfação em ter idéias, fazer descobertas.
As idéias e as descobertas do químico Linus Pauling sobre os mecanismos pelos quais os átomos se combinam (as ligações químicas) e sobre a estrutura molecular fizeram dele uma das figuras dominantes da ciência – a ponto de ter sido colocado no mesmo patamar de Isaac Newton, Marie Curie e até Albert Einstein. Mais de cinqüenta universidades do mundo inteiro já lhe concederam títulos honoríficos. Condecorações ele as recebeu tanto em Washington quanto em Moscou. E, glória das glórias, ganhou duas vezes o Prêmio Nobel, algo que nenhum outro cientista conseguiu sozinho até hoje. Mas as idéias e as descobertas de Pauling, ao transbordar da quietude dos laboratórios para as turbulentas realidades do mundo, também lhe valeram inimizades, ameaças e perseguições políticas no período macarthista que turvou a democracia americana na década de 50.
A trajetória de Pauling acompanhou o desenvolvimento do mais formidável aparato de produção de conhecimentos da história da humanidade. De fato, nunca houve um país como os Estados Unidos, onde se gastou (e se gasta) tanto dinheiro em ciência e tecnologia e onde tanta gente viveu (e vive) de fazer e aplicar ciência. Mas Pauling foi tudo, menos um produto passivo dessa grande indústria do saber – se não pela militância em favor da abolição das armas atômicas, certamente pela incomum desenvoltura com que se habitou a saltar de um ramo científico para outro, transitando, como um intelectual do Renascimento, da Química para a Física, da Biologia à Medicina, uma atitude geralmente desestimulada nas ultra-especializadas instituições de pesquisa americanas.
De modo algum, porém, foi infalível. Dono de fenomenal memória – assunto sobre o qual também formulou teorias – e desprovido do receio de manifestar suas intuições, Pauling costumava dizer-se adepto do método do estocástico: adivinhar a verdade a partir de conjecturas. Algumas vezes, porém, memória, intuição e coragem de especular acabaram por levá-lo a erros ou precipitações. Há quem assim avalie, por exemplo, sua defesa da vitamina C como remédio para quase todos os males, câncer incluído. Como o definiu o professor de Química e História da Ciência Aaron Ihde, da Universidade de Wisconsin, o êxito de Pauling baseou-se na sua capacidade de perceber depressa novos problemas, reconhecer relações entre os fenômenos e apresentar idéias não convencionais. Seus conceitos, mesmo equivocados, estimularam o debate e a pesquisa.
Foi sempre assim. No povoado de Condon, no remoto Estado americano de Oregon, onde nasceu em 1901, Linus dividia o tempo vendo o pai farmacêutico misturar poções para doentes, lendo o que lhe caísse nas mãos, colecionando insetos e minerais, aprendendo alemão com a avó, grego com um vizinho e chinês com outro. Em suma, um caso perfeito para os adeptos da teoria de que os grandes homens já se mostram quando pequenos.
Com tantos interesses na bagagem, logo depois de fazer 16 anos, em 1917, foi para a universidade, ainda no Oregon. Como não tinha dinheiro para pagar os estudos, vivia de bicos, cortando lenha, limpando o chão do dormitório feminino e ajudando na cozinha.
Isso não o impedia de inscrever-se nos cursos mais puxados, Química, Física, Matemática, Metalurgia e, ainda por cima, Literatura Inglesa. O fim da Primeira Guerra Mundial foi duplamente auspicioso para Linus. Ao voltar das frentes de batalha na Europa, milhares de jovens americanos queriam retomar os estudos. As matrículas nas universidades multiplicaram-se e não havia professores suficientes para ensinar essa enorme leva de alunos novos. Pauling tinha impressionado tão bem seus professores que, ao terminar o terceiro ano da faculdade, foi convidado para ensinar Química aos alunos do segundo ano.
Ao começar as aulas, resolveu descobrir o quanto eles já sabiam da matéria. Olhou o primeiro nome da lista de chamada e perguntou: Ava Hellen Miller, que sabe de hidróxido de amônio?. Aparentemente a moça sabia muito, porque, a partir da resposta, o jovem professor não conseguiu parar de olhar para ela. Não demorou para que começassem a namorar. No fim das aulas, passavam horas conversando sobre poesia, arte, literatura – e política, tema que Ava acompanhava com interesse e que ele não entendia bem. Certo dia, em 1920, enquanto folheava publicações que juntavam poeira no Departamento de Química, Pauling descobriu um livro que iria influenciar profundamente sua vida.
Tratava-se de um artigo de Gilbert Lewis, da Universidade de Berkeley, então um dos químicos-físicos mais conhecidos do país. O texto começava com o óbvio: da mesma forma que tijolos são feitos de pequenas partículas de barro assadas juntas – dizia -, as moléculas são feitas de átomos ligados uns aos outros. A novidade era a teoria com que Lewis explicava como esses átomos se mantinham juntos, formando moléculas que duraram milhares de anos, como as pirâmides do Egito, ou milhões, como os ossos dos dinossauros. O autor chamava isso chemical bond, ligação química.
Pauling ficou fascinado. Se pudesse aprender mais a respeito dessa ligação química, poderia entender de fato o que impede o mundo de se desmanchar. Decidiu então dedicar-se ao enigma da estrutura da matéria. Candidatou-se a um curso de doutorado em três universidades. Aceito pelas três, escolheu o Instituto de Tecnologia da Califórnia, em Pasadena, mais conhecido como Caltech, porque, sendo mais nova, nela teria mais liberdade para trabalhar. Além disso, o Caltech ofereceu-lhe um cargo de monitor, o que lhe permitiria ganhar dinheiro enquanto estudasse. Era uma solução perfeita, recordou ele recentemente.
No Caltech, os nove professores e sete assistentes do Departamento de Química tinham discussões apaixonadas sobre átomos e moléculas – um território ainda por desbravar naqueles anos 20. Pauling aprendeu a usar uma técnica muito nova para espiar a matéria na intimidade. Nela, um feixe de raios X atravessa um cristal. Os átomos de cristal desviam os raios X para uma chapa fotográfica. A imagem ali registrada permite perceber a estrutura molecular dos cristais. Depois de dezenas de experiências, com a ajuda de colegas, ele descobriu as posições dos átomos nos cristais. Também conseguiu determinar as distâncias entre os átomos, de um lado, e os ângulos entre as ligações que os mantêm juntos, de outro. São justamente esses os fatores que definem a estrutura das moléculas.
No seu primeiro ano de Caltech, o ponto alto de cada semana era um seminário conduzido pelo conhecido professor de Física Richard Tolman. Este sustentava que as leis da Física podiam ser usadas para resolver problemas da Química. Pauling ficou impressionado com a idéia – que marcaria decisivamente o rumo de suas pesquisas futuras. Em junho de 1923, tão logo o ano letivo terminou, ele pegou um velho Ford que tinha comprado por 25 dólares e foi para o Oregon, a fim de casar com Ava Hellen. Ele tinha 25 anos. Ela 19. A união duraria 58 anos, até ela morrer em dezembro de 1981.
Quando chegou a hora de Pauling apresentar a tese de doutoramento, em 1925, foi fácil – bastou juntar os artigos que já tinha publicado a respeito da estrutura dos cristais. Resultado: seu diploma trazia a rara expressão latina Summa cum laude, Com a máxima honra. Aquele foi um belo ano. Em abril tinha nascido o primeiro filho do casal, Linus Junior, que seria psiquiatra. O pai tirou alguns dias para brincar com a criança e logo voltou à carga intensa de trabalho que sempre o caracterizaria. Em breve, a separação ficaria ainda maior, devido a uma bolsa de estudos na Europa. Deixando o filho com a mãe de Ava, o casal circulou entre Munique, Copenhague e Zurique. Era um período excitante nos círculos científicos europeus. Idéias revolucionárias começavam a ser discutidas. Uma delas era a Mecânica Quântica, que trata do movimento das partículas subatômicas (SUPERINTERESSANTE nº 3, ano 1). Pauling tinha ouvido falar disso no Caltech e queria aprender mais.
Durante um ano e meio ele visitou os principais centros de pesquisa europeus, tentando absorver o máximo. Ao voltar para a América, tinha uma idéia mais nítida do caminho que iria tomar: ele queria explicar plenamente o mecanismo pelo qual os átomos se juntam para virar moléculas, combinando a Mecânica Quântica com os efeitos dos raios X. Promovido a professor assistente, com 26 anos, era o membro mais jovem do corpo docente. Para disfarçar o rosto de garotão, deixou a barba crescer. Isso teria resolvido o problema da aparência juvenil se ele não usasse tanto camisas do Havaí estampadas com dançarinas de hula-hula.
Junto com seus assistentes, nessa época começou a fazer modelos de moléculas com papel colorido, a fim de facilitar o entendimento dos alunos. Isso acabou virando uma das suas contribuições mais frutíferas para a Química moderna. A representação das moléculas em modelos tridimensionais, com as ligações químicas num plano perpendicular, facilita extraordinariamente a visualização dos detalhes. Só o computador, muito tempo depois, faria melhor. Graças a um desses modelos, em fins de 1930 Pauling acabou resolvendo o problema das ligações químicas, que o intrigava havia dez anos. Numa única noite ele rastreou as forças que garantem a estabilidade em cristais e as codificou segundo seis princípios.
Ele, numa conversa recente com SUPERINTERESSANTE, contou como o estalo de gênio matou o problema que desafiava cientistas do mundo inteiro. Um belo dia consegui contornar as dificuldades matemáticas simplificando a questão. Fiquei tão excitado e feliz que passei a noite inteira elaborando e resolvendo equações. À medida que as fazia, descobria que eram tão simples que podiam ser resolvidas em minutos. Eu resolvia uma equação e pegava a resposta, resolvia outra e conseguia outra resposta e assim por diante. Fiquei cada vez mais eufórico e escrevi uma série de equações numa madrugada. Foi uma fantástica noitada, contou ele, mais de meio século depois. O resultado foi um artigo de 34 páginas que virou a base para um clássico da literatura científica, A natureza da ligação química e a estrutura das moléculas e cristais.
Certa vez, depois de olhar uma amostra de asbesto num microscópio, ele a pôs na palma da mão e começou a apertá-la. O mineral, conhecido por não conduzir calor e induzir câncer nos pulmões quando aspirado, começou a se desmanchar. Era feito de fibras tão finas quanto fios de cabelo. Virando-se para um assistente, ele perguntou: Se podemos entender as fibras de asbesto, por que não entendemos também as fibras do corpo humano? O cabelo, os músculos, até as unhas são feitas de fibras, comentou. Logo, Pauling começou a estudar as moléculas de proteína do cabelo humano. Era a primeira vez em que se desviava dos minérios para pesquisar algo vivo. Pauling percebeu que para entender o corpo humano precisaria entender a estrutura das moléculas de proteínas que o compõem. Em meados da década de 30 já se sabia que as proteínas são formadas por cadeias de aminoácidos. Mas ninguém havia explicado como os elos dessas cadeias se combinavam. Com seu assistente Robert Corey, Pauling começou então uma pesquisa de dez anos sobre proteínas, trabalhando com raios X.
Um dia, o chefe do Departamento de Química de Caltech passou pelo laboratório de seu já ilustre subordinado para saber das novidades. Em que anda metido agora, Linus?, perguntou. Sangue, sangue, respondeu Pauling, no estilo das histórias policiais que ambos adoravam.
De fato, ele vinha estudando com medições magnéticas a macromolécula de hemoglobina que dá a cor vermelha ao sangue e transporta o oxigênio (SUPERINTERESSANTE nº 12, ano 2). De tanto lidar com sangue, sangue, como brincou, Pauling descobriu que certo tipo de anemia hereditária, chamada falciforme, era causada por uma célula defeituosa, que lembra uma foice. Desde então, ele não deixaria de investigar o funcionamento da máquina humana.
Numa fria manhã de primavera, em 1948, ao fazer uma conferência na Universidade de Oxford, na Inglaterra, o cientista resfriou-se e resolveu descansar alguns dias. No primeiro dia ficou na cama lendo histórias policiais. No segundo, cansado de ler, começou a divagar, pensando na estrutura das proteínas. Pegou então uma folha de papel, desenhou os átomos com as ligações químicas entre eles e depois dobrou o papel de modo a entortar a ligação no ângulo certo. Continuou fazendo isso para obter a posição correta e de repente percebeu que tinha montado algo parecido com uma escada espiral cujas curvas eram formadas por hidrogênio. Estava descoberta em algumas horas a chamada hélice alfa – a forma como a natureza combina cadeias de aminoácidos em estruturas espirais. E Pauling estava a um passo de uma das supremas descobertas deste século – a estrutura do DNA, a molécula da hereditariedade.
Eram vários os cientistas empenhados nessa busca. O que queríamos, acima de tudo, era chegar antes de Linus Pauling, confessaria anos depois o professor americano James Watson, de Harvard. Certo dia de 1953, ele e seu colega inglês Francis Crick receberiam a notícia de que Pauling havia conseguido a proeza. Meu estômago encolheu de apreensão, lembra Watson. Mas, à medida que começou a estudar as ilustrações que acompanhavam o trabalho de Pauling, percebeu algo estranho: o mestre, que no ano seguinte receberia o Prêmio Nobel de Química, havia cometido um erro elementar, inadmissível até num primeiranista. Animados, Watson e Crick retomaram a pesquisa com redobrado vigor e desvendaram a estrutura do DNA.
A partir de então, Pauling voltou-se para as doenças, tentando encontrar na nutrição a cura dos males que atingem o homem. Em 1964 saiu do Caltech e dez anos depois decidiu formar seu próprio Instituto Linus Pauling de Ciência e Medicina, para continuar as pesquisas sobre doenças com inteira liberdade. Ele próprio escolheu o local, em Menlo Park, perto de São Francisco, onde vinha trabalhando dois ou três dias por semana. O instituto tem vinte pesquisadores com nível de doutorado e um orçamento de 3,5 milhões de dólares por ano, a maior parte doações particulares – nenhuma delas da indústria farmacêutica, ao contrário do que suspeitam os adversários de sua cruzada em prol do consumo maciço de vitamina C. Um dos principais doadores é outra figura legendária – o milionário Armand Hammer, 90 anos, presidente da Occidental Petroleum. A ele Pauling dedicou seu último livro.
Para saber mais:
Ilustres desconhecidas
(SUPER número 4, ano 3)
Vitaminas, você tem que tomar
(SUPER número 3, ano 9)
A polêmica da vitamina C
Com o olhar divertido, o velho Linus Pauling começava uma conferência na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, no fim do ano passado. Caminhando de um lado para outro, disse que antigamente tomava 6 gramas de vitamina C por dia. Mas há pouco tempo reli um de meus livros e descobri que não estava seguindo minha própria receita. Aumentei a dose para 10 gramas diários. Estou rejuvenescendo, garantiu. Há quase vinte anos o cientista vem promovendo a vitamina C (ácido ascórbico) como panacéia para quase todos os males do homem moderno e nessa cruzada correu mundo, tendo estado três vezes no Brasil, a última em 1985.
Ele baseia seu argumento na evolução. Por alguma razão ainda não determinada, afirma, o organismo do homem primitivo perdeu a capacidade de fabricar a vitamina C, ao contrário da grande maioria dos animais. A cabra, por exemplo, faz 13 gramas diários dessa vitamina, ensina. O governo americano recomenda que tomemos 60 miligramas por dia de vitamina C, informa, para arrematar: Acho que a cabra sabe muito mais que os homens. Desde que publicou seu primeiro livro a respeito, Vitamina C: gripes e resfriados, editado no Brasil em 1972, foi acusado de abdicar da posição de cientista objetivo e assumir o papel de garoto-propaganda da indústria farmacêutica.
A Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos recusou-se a publicar um de seus artigos sobre o assunto. Mas ele não desistiu, até que uma versão mais substancial foi finalmente aceita. Mais tarde, graças a um trabalho conjunto com o cientista escocês Ewan Cameron, passou a afirmar que a vitamina C ajuda a prevenir o câncer e pode prolongar a vida útil dos cancerosos – teses não suficientemente demonstradas, que encontram defensores e inimigos igualmente apaixonados. Da vitamina C, ele evoluiu para a questão da nutrição em geral. Na sua opinião, a ciência da nutrição estagnou há muito tempo. Os velhos professores parecem tão satisfeitos com o que descobriram cinqüenta anos atrás que ignoram os avanços da Bioquímica, da Biologia Molecular e da Medicina, acusa. Mas seus oponentes acham que a mesma acusação se aplica ao próprio Pauling. A controvérsia sobre suas idéias não há de cessar tão cedo. Ele dá de ombros: É bom estar à frente da história.