Piruetas no vácuo
Chega à etapa final uma experiência que, após 37 anos, vai testar uma estranha previsão da Teoria da Relatividade - a de que o espaço vazio também gira, como um pião.
Flávio Dieguez
Em dezembro de 1959, Leonard Schiff, William Fairbanks e Robert Cannon – três pesquisadores brilhantes da Universidade Stanford, na Califórnia, Estados Unidos – aproveitaram a hora do almoço para um bate-papo sobre um assunto efervescente na época: como testar, com todo rigor, as previsões da Teoria da Relatividade, criada pelo alemão Albert Einstein em 1915. Desse encontro nasceu uma experiência extraordinária, não apenas por sua ousadia, mas também por ter se tornado a mais demorada em toda a história da ciência. Preparada desde janeiro de 1961, só chegou ao estágio final 37 anos mais tarde, em novembro do ano passado.
“Eu não sei de nenhum outro projeto que tenha levado tanto tempo para ser preparado”, disse à SUPER o físico americano Clifford Will, da Universidade Washington, no Mississipi. O plano é colocar em órbita um satélite capaz de manter sempre a mesma orientação no espaço. Chamado Sonda de Gravidade, ele vai ficar permanentemente virado para um ponto fixo (a estrela Rigel, uma vizinha das Três Marias, na Constelação de Órion). Uma vez em órbita, a nave não sai mais dessa posição, pelo menos se obedecer às leis tradicionais da Física. Só que, se Einstein estiver certo, o próprio espaço vazio se encarregará de tirar o satélite do rumo, forçando-o a girar lentamente em torno de si mesmo, feito um pião.
O efeito é mesmo estranho. Os próprios físicos admitem. Mas eles dizem que, na prática, trata-se apenas de um outro jeito de ver a força da gravidade. É divertido porque tudo se passa como se o espaço fosse uma espécie de gelatina na qual a Terra se apóia, afundando um pouco devido ao seu peso. Com isso ela cria um declive à sua volta e é por esse motivo que os objetos caem na direção do planeta: eles tendem a descer a ladeira. Vista dessa maneira, a gravidade não seria bem uma força, como acontece na teoria criada pelo inglês Isaac Newton (1643-1727). Depois de Einstein, ela se tornou, digamos, um defeito geográfico.
Tudo isso serve apenas de analogia, claro. Mas os cálculos da relatividade são feitos assim, pensando na força gravitacional como uma distorção do vazio. A vantagem dessa interpretação é que revela efeitos novos. Um deles é a rotação do espaço, que aparece claramente na imagem do vácuo pegajoso: é fácil deduzir que, à medida que a Terra roda, deve arrastar um pouco o gel à sua volta, obrigando o espaço a girar junto com ela. Se houver um satélite por ali, ele acompanhará as curvas do vazio.
Altíssima precisão
É essa novidade na gravitação que os pioneiros de Stanford estão prestes a pôr à prova, pela primeira vez. Ela é menos que microscópica: para se ter uma idéia, o satélite precisaria ficar mais de 10 milhões de anos em órbita para dar um rodopio de 360 graus, isto é, uma volta completa em torno de si mesmo. O desafio foi achar um meio de observar um ângulo menor, mas num período de tempo mais razoável. Como o prazo estipulado é de dois anos, o ângulo a ser observado será quase 3 000 vezes menor que 1 grau, o equivalente à espessura de um fio de cabelo visto a 15 quilômetros de distância.
Entende-se a trabalheira que deu para desenhar, construir e checar os instrumentos exigidos pelo projeto. Eles tinham que ter altíssima precisão e um nível de qualidade que só satisfez os cientistas nas últimas semanas do ano passado. “Em novembro, fizemos o check-up final de todas as peças”, declarou à SUPER o físico Francis Everitt, líder do projeto desde o princípio. “Com o sinal verde, já estamos montando o equipamento para colocar a bordo do satélite”, diz ele.
Resta esperar a data do lançamento, marcado pela Nasa para 26 de outubro de 2000. Quando o foguete subir, Everitt estará pronto para um mergulho inédito no Universo de Einstein. Nesse momento, ele terá passado quase quatro décadas preparando uma pesquisa que vai começar e terminar em menos de dois anos. “Esse é o tempo máximo de funcionamento dos instrumentos”, conta, sem esconder a emoção. “Antes do Natal de 2002 tudo estará acabado.”
Esferas exatas e outros milagres de perfeição
No dia-a-dia, a Teoria da Relatividade não serve para muita coisa. Não tem influência perceptível sobre o movimento das naves ou dos planetas nem leva ao desenvolvimento de novas tecnologias. Diante disso, pode parecer inútil investir tempo e talento verificando suas previsões em experiências dificílimas e caras. Além de tomar décadas de trabalho, a tentativa de medir a hipotética rotação do espaço por meio do satélite Sonda de Gravidade vai custar, no total, 300 milhões de dólares.
Mas o gasto vale a pena. Sem a relatividade, os cientistas estariam cegos diante do Universo. Só com a ajuda dos conceitos de Einstein foi possível descobrir que o Cosmo nasceu de uma grande explosão, há cerca de 15 bilhões de anos, ou que ele é habitado por figuras esquisitas como os buracos negros. “A relatividade é a teoria mais profunda de toda a Física”, explica o americano Francis Everitt. “Mas, até hoje, só um ou outro aspecto das idéias de Einstein foi testado com rigor”, comentou para a SUPER um dos maiores especialistas no assunto, o matemático e físico inglês Roger Penrose, da Universidade de Oxford.
Quatro bolinhas
Se tudo correr bem, o tira-teima vai ser realizado a 650 quilômetros de altitude. A bordo da Sonda de Gravidade, que pesa 2 toneladas, os passageiros de primeira classe serão quatro bolinhas de quartzo. Com apenas 2 centímetros de raio, as esferas é que vão determinar a exata posição do satélite. Como elas giram em torno de si mesmas, seu eixo de rotação fica sempre alinhado com um mesmo ponto no céu (veja no infográfico acima). Não por acaso, boa parte do esforço dos pesquisadores foi dedicada às minipeças redondas, que dão um show de tecnologia. Elas são perfeitas, os objetos mais esféricos já construídos pelo homem. Também não sofrem atrito porque não se apóiam em nada. Levitam dentro do satélite graças a forças magnéticas criadas em sua superfície, que tem uma finíssima casca do metal nióbio. Como esse elemento só vira ímã sob um frio mortal, será preciso manter o satélite num banho de gás hélio no estado líquido, no qual ele se resfria a gélidos 271 graus Celsius negativos.
Segundo Will, a equipe da Sonda de Gravidade fez milagres para viabilizar o projeto dos seus três criadores, Leonard Schiff, um craque em Teoria da Relatividade, William Fairbanks, especialista em baixas temperaturas, e Robert Cannon, autoridade em vôos orbitais. Do trio, só o último, apesar de aposentado, poderá acompanhar a experiência. Schiff morreu aos 55 anos, em 1971, e Fairbanks, aos 72, em 1989. Fazer pesquisa às vezes é assim: você chuta bolinhas perfeitas, mas corre o risco de não ver o gol – ou mesmo o fim da partida.
Para saber mais
Einstein Estava Certo?, Clifford Will, Editora da Universidade de Brasília, Brasília, 1996.
O Universo de Einstein, Nigel Calder, Editora da Universidade de Brasília, Brasília, 1988.
Na Internet: https://einstein.stanford.edu
Linhas tortas
O espaço roda porque é arrastado pelas voltas que a Terra dá.
1. Para a Teoria da Relatividade, a gravidade não é vista como uma força, mas como um defeito do espaço. É como se este fosse uma gelatina que afunda sob o peso dos corpos.
2. Nesse caso, não há atração entre a Terra e a Lua. O planeta é que deforma o espaço e o satélite desce a ladeira.
3. A rotação do espaço ocorre porque, ao girar, a Terra arrasta o gel à sua volta, fazendo-o rodopiar junto com ela.
Um satélite nesta região acompanharia as curvas do espaço. Se isso realmente ocorrer, as idéias de Einstein estarão comprovadas.
Se não existe o arrasto do vazio previsto pela relatividade, o satélite não mudará de posição. A teoria estará em apuros.
Pontaria certeira
O satélite fixa sua posição olhando para a estrela Rigel.
1. Estrela-alvo
Este cone na extremidade do satélite é um telescópio usado para captar o brilho de Rigel, que fica na Constelação de Órion, junto às Três Marias.
2. Alinhamento
O raio de luz deve ficar sempre alinhado com o eixo de rotação destas quatro esferas, que giram 10 000 vezes por minuto em volta de si mesmas. A rapidez dá estabilidade aos eixos.
3. Eixo à deriva
Se nada acontecer, o alinhamento nunca muda. Mas, se o espaço também roda, como prevê a relatividade, o eixo das esferas se deslocará, comprovando a teoria.
Tira-teima
O satélite que vai testar Einstein.
Pesadão
Chamado Sonda de Gravidade, ele tem 6 metros de comprimento, pesa 2 toneladas e vai voar 650 quilômetros acima do pólo norte.
Volátil
Quase toda a sua estrutura consiste em um vasto tanque, contendo 1 600 litros de gás hélio liquefeito.
Gelado
Nesse estado, o gás tem a temperatura de -271 graus Celsius, o que é essencial para a experiência. Mas o hélio é tão volátil que vai fugir do reservatório em menos de dois anos.
Inspiração molhada
Tudo começou na piscina da universidade.
Esqueça os laboratórios cheios de máquinas ou as salas entupidas de livros e de cientistas com olheiras profundas, estudando no meio da noite. O satélite que vai submeter a relatividade a um exame rigoroso, a partir do ano 2000, nasceu em lugar e hora totalmente inesperados. Foi no intervalo do almoço, na piscina da Universidade Stanford, Estados Unidos, que os físicos Leonard Schiff, William Fairbanks e Robert Cannon resolveram passar a limpo a tese de Einstein. Ainda mais surpreendente, os três estavam nus, já que a piscina era fechada e usada apenas por homens (a das mulheres ficava em outro local). “Havia mesmo esse costume, na época”, diz o físico Clifford Will, que descreve o encontro no livro Einstein Estava Certo?, de 1976. A história lembra a do sábio grego Arquimedes, que teria descoberto por que os corpos flutuam enquanto meditava sossegado na banheira de sua casa. “Acho que o segredo está na água”, opina Will. “Ela produz uma descontração que estimula o pensamento.”
Desnível zero
Peças ultraprecisas.
Esta esfera, de 2 centímetros de raio, vai ser usada para testar a relatividade. É tão lisa que, se tivesse o raio da Terra, o maior calombo em sua superfície teria apenas 6 metros de altura.
Em comparação com a esfera acima, a maior imperfeição terrestre é o Monte Everest. Quase 9 quilômetros acima do nível mar, ele representa um defeito 1 500 vezes maior que os da bola.