Produção de vacinas com fermentadores: Máquina de criar bactéria
Fermentadores modernos tornam a produção de vacinas pelo Instituto Butantan, em São Paulo, tão boa como as melhores do mundo.
Flávio Dieguez
Um funcionário sai pela porta do prédio empurrando um carrinho com cinco grandes recipientes de vidro. Afunilados, terminando num tubo com o diâmetro de uma xícara, mas de base circular, como uma panela, contêm um líquido de cor indefinida, alaranjada. Uma mistura bem balanceada de sais minerais, vitaminas, proteínas e glicose, o líquido seria um alimento rico em qualquer mesa. Mas no Instituto Butantan tem uma finalidade inimaginável: engordar agentes do mal convertidos ao serviço da Medicina. São perigosas bactérias, causadoras de doenças como difteria ou tétano, entre outras, cuja tarefa é produzir vacinas em larga escala.
Tratar bem tais seres é importante porque a matéria-prima das vacinas, muitas vezes, são substâncias excretadas por eles. Algumas delas são altamente letais. Uma ínfima quantidade mataria centenas ou milhares de pessoas, conta o biólogo Fernando Fratelli — que trabalha bem próximo de um microscópico vilão: o bacilo Clostridium tetani, do tétano, excreta uma toxina que é o segundo veneno mais potente conhecido (o primeiro é a toxina botulínica, produzida pela bactéria do botulismo). Mas Fratelli não corre risco ao circular pela unidade de vacina antitetânica do Butantan. Os funcionários estão bem vacinados, e o Instituto é hoje um modelo internacional no campo da produção de vacinas. Com segurança e qualidade impecáveis, o trabalho é tão bem feito que em curto prazo o Brasil talvez se torne exportador de vacina para países industrializados. A marca mais visível dessa eficiência são os fermentadores, máquinas metálicas, cercadas de canos e válvulas, cuja função é confinar bilhões de micróbios. Um sofisticado curral de microorganismos, pode-se dizer, pois custam quase meio milhão de dólares cada, e são controlados por computador.
Por exemplo, se algo muda a acidez no tanque repleto de nutrientes, sensores automaticamente sinalizam ao computador, que aciona bombas para introduzir hidróxido de sódio ou ácido clorídrico, que elevam ou abaixam o pH, que mede a acidez. O nível deve ser o ideal para a máxima produtividade dos microorganismos, cada um com suas exigências específicas. Outro fator decisivo, controlado automaticamente, é a temperatura. Hoje, o Butantan produz quatro vacinas principais.
Para tétano, difteria, coqueluche ou pertússis e tuberculose a quantidade de doses gira em torno de 25 milhões ao ano, cada uma. Mas também se fazem vacinas contra raiva, cólera e gripe. A cólera é causada por bactéria, mas gripe e raiva devem-se à ação de vírus, que não vivem isolados. Precisam abrigar-se nas células de outro ser — como nas do cérebro de camundongos, no caso da raiva. Já não se trata apenas de criar o vírus, mas também os camundongos, o que complica bastante a fabricação, ensina o veterinário e imunologista Rosalvo Guidolin.
Com larga e histórica experiência na produção de vacina, Guidolin foi um reforço providencial para a atual equipe do Butantan. Aposentado, aceitou o convite do ex-diretor Willy Beçak, nos anos 80, por amor ao trabalho. E ele parece muito satisfeito com a decisão, dado o entusiasmo com que conta um projeto de aprimoramento relativo à raiva. A idéia é aprender a difícil tecnologia de cultivar células isoladas de animais em fermentadores — e dentro delas os vírus.
Isso agilizaria muito o processo, pois já não seria preciso criar os camundongos, infectá-los com virus, esperar que estes proliferem e depois extraí-los das células (com o necessário sacrifício dos animais). Projetos assim são essenciais numa moderna fábrica de vacina porque asseguram constante aperfeiçoamento, tanto quanto a compra de máquinas avançadas. Garantir a realização de pesquisas é papel da biomédica Sally Muller Affonso Prado, que dirige a seção de vacinas anaeróbicas, onde se cultivam bactérias que não sobrevivem em presença de oxigênio (caso do Clostridium).
Sally explica que não basta criar os microorganismos: após cinco dias de cultivo, é preciso colher as toxinas. Ou seja, separá-las das bactérias, já velhas e inúteis, e de outros resíduos que se acumulam no fermentador. Isto se faz por meio de finíssimos e sofisticados filtros. O sistema pode ser melhorado. Inicialmente, os filtros retinham as bactérias e deixavam passar as toxinas — da mesma maneira como os coadores retêm o pó e deixam passar o café. Agora, usa-se um método dinâmico, em que o caldo grosso do fermentador corre sobre o filtro, mas não para atravessá-lo: é como se o caldo corresse num cano cujas paredes fossem o filtro.
Assim, bactérias e detritos passam direto, mas as toxinas “vazam” para fora. Então, para que se transformem em vacina, basta inativá-las por meio do calor e de uma reação com formaldeído. Nesse estado, deixam de ser letais, mas não perdem a capacidade de alertar o organismo em que são introduzidas, acionando defesas imunológicas contra a doença. Há possibilidade de se conseguir dobrar o volume de vacinas contra a raiva, ampliando a capacidade do Butantan, inclusive com vistas à exportação. Desde já, afirma o diretor do Instituto, Isaias Raw, esse horizonte está à vista. “A prioridade é o mercado nacional. Teremos, então, competência para fornecer a outros países.”
Para saber mais:
Oswaldo Cruz: tudo pela saúde
(SUPER número 11, ano 2)
Pasteur: ciência nas ruas (SUPER número 6, ano 3)
Vacinas do futuro
(SUPER número 2, ano 9)