Quando a Antártida era verde: conheça o passado do continente gelado
Durante a maior parte de sua história, a Antártida abrigou florestas e contou com uma biodiversidade pulsante. Entenda por que o pedaço de terra mais inóspito do planeta é essencial para estudar a evolução da vida na Terra (e possivelmente fora dela).
Uma das primeiras expedições ao Polo Sul resultou no episódio mais trágico da exploração antártica. Em 1912, o explorador Robert Falcon Scott e outros quatro homens partiram em direção ao centro do continente, com temperaturas que mesmo no verão batem em -30 ºC. Depois de 33 dias de caminhada, eles chegaram ao polo. Mas todos os cinco morreram no retorno. Os corpos foram encontrados na geleira Ross por uma equipe de resgate.
Cada um carregava mais de 60 quilos de equipamentos e mantimentos nas costas. Durante a viagem de volta, deixaram para trás tudo o que não fosse essencial, para aliviar a carga. Mesmo assim, Scott se recusou a abandonar um conjunto de rochas – inclusive um fóssil com a impressão detalhada de um caule e folhas. Ele não sabia, mas aquela era uma planta do gênero Glossopteris.
Scott carregava nada menos do que uma prova da existência de Pangeia, o supercontinente que existia até 200 milhões de anos atrás, antes de a deriva continental separar as terras secas do planeta. Há fósseis de Glossopteris na América do Sul, na África, na Índia e na Austrália – evidência forte de que esses pedaços de terra já estiveram ligados no passado. O pesquisador Alfred Wegner se baseou nesses fósseis para publicar A Origem dos Continentes e Oceanos, primeiro livro que apresenta uma teoria robusta sobre a deriva continental. Até hoje, o espécime de Scott é um dos mais bem preservados que alguém já encontrou na Antártida.
Não só: o fóssil também provava que a Antártida teve um passado verdejante. Ela até tem alguma vegetação hoje. Mas é composta basicamente de líquens e musgos, que crescem no verão. O continente, porém, só ganhou essa cara bem depois de ter se separado da Pangeia: foi ao longo dos últimos 20 milhões de anos. Durante a maior parte do seu tempo geológico, a Antártida foi cercada por uma paisagem verde e dominada por animais.
No início, era tudo mato
Hoje sabe-se que a Pangeia não foi o único supercontinente que a Terra abrigou ao longo de sua história. As placas tectônicas estão se acotovelando pelo planeta desde que o mundo é mundo – ou seja, desde 4,5 bilhões de anos atrás.
Há 500 milhões de anos, por exemplo, os pedaços de terra que formam a Antártida estavam no equador. Mas não tinha ninguém para pegar sol: a vida só existia nos oceanos; e ainda levaria 80 milhões de anos para se estabelecer no ambiente terrestre. Nem árvores existiam. A vegetação do planeta eram as algas.
A partir daí, as partes do continente antártico foram descendo no mapa. Pangeia tomou forma há 335 milhões de anos, quando répteis primitivos e árvores estavam em terra firme. 150 milhões de anos depois, os dinossauros já dominavam o supercontinente. Pangeia começava a se dividir em dois blocos, que os geólogos do século 20 batizaram como Laurásia e Gondwana (veja o mapa abaixo). Nesta última, sul da Austrália, Índia, África e América se encaixavam na Antártida como um quebra-cabeça.
Ou seja: os dinossauros também caminharam pelas terras hoje cobertas de gelo. “A gente só encontra fósseis de cinco ou seis espécies de dinossauros na Antártida, porque é muito difícil ter acesso à rocha [devido ao gelo]. Mas sabemos que existia muito mais, já que a Austrália é cheia de dinossauros – e as duas estavam coladas”, diz Luiz Eduardo Anelli, professor do Instituto de Geociências da USP.
O auge dos dinossauros ocorreu no período Cretáceo, que vai de 145 a 66 milhões de anos atrás. Essa época também é marcada por incêndios florestais espontâneos em todo o continente de Gondwana – incluindo as terras que formariam a Antártida. O calor intenso do verão somado ao clima seco do interior causavam o fogo. Aliás: um projeto de pesquisa brasileiro, o Paleoantar, foi o primeiro a encontrar fósseis de plantas carbonizadas no arquipélago de Ross, na península antártica.
Ironicamente, uma das pesquisas mais surpreendentes sobre as florestas antárticas foi publicada num primeiro de abril (em 2020). Parecia mentira, de fato: um grupo de pesquisadores encontrou esporos, pólen e uma rede de raízes fossilizadas no fundo do mar antártico. As amostras são de 92 a 83 milhões de anos atrás. Nessa época, o continente já havia ocupado uma posição no globo semelhante à de hoje, mas ainda estava conectado à América do Sul e à Austrália (os dois só “subiram” no mapa mais tarde).
Isso fazia da Antártida uma baldeação intercontinental. E foi por ela que os marsupiais chegaram à Austrália e à Nova Zelândia. Sim, os animais que são marca registrada da Oceania vieram da Antártida. Os ancestrais do canguru surgiram na América do Sul, povoaram a Antártida verde e chegaram às terras que, mais tarde, se tornaram a Austrália. Há fósseis de marsupiais na Ilha Seymour, na península antártica.
Em compensação, o animal mais antártico que existe surgiu no pedaço de terra onde hoje é a Nova Zelândia. Na época, ela estava grudada na Antártida. Os fósseis mais antigos de pinguins datam de 60 milhões de anos – e foram encontrados no país insular.
A verdade é que nem a fixação do continente no Polo Sul foi suficiente para eliminar as florestas antárticas. Mas tudo tem uma explicação. Naquela época, a temperatura média global era de 7 ºC a 8 ºC acima do que é hoje. O planeta passava por uma fase de aquecimento global severo. Foi um período climático que os cientistas chamam de Greenhouse Earth – “Terra Estufa”. Era tanto calor que não havia formação de neve permanente, nem nos polos.
Dessa forma, estar numa posição tão austral tinha suas vantagens – a Antártida era uma das poucas regiões que podiam contar com temperaturas mais amenas. Mas nem tudo eram flores para a flora e a fauna. Elas precisavam aguentar quatro meses de escuridão no inverno, igual hoje. Acredita-se que as plantas eram adaptadas para sobreviver ao período sem luz – de outra forma, não estariam ali.
Do paraíso ao inverno
No fim das contas, o mais surpreendente não é a Antártida já ter tido uma biodiversidade rica, mas o fato de ela ter sido soterrada por 30 milhões de quilômetros cúbicos de gelo. Foi cortesia de outra transição climática: a da Greenhouse Earth para a Icehouse Earth (que dispensa tradução).
Ao longo de sua história geológica, as temperaturas médias na Terra alternaram entre altos e baixos. O planeta passou a maior parte do tempo em Greenhouse. Mesmo assim, não temos ideia do que é viver nesse estado climático.
Estamos vivendo em uma das exceções da história geológica da Terra, um Icehouse. “É raro ter glaciação em um dos hemisférios, e raríssimo ter nos dois”, diz Jefferson Cardia, vice-presidente do Comitê Científico de Pesquisas Antárticas. A fase atual de Icehouse já dura 34 milhões de anos. Naquela época, nossos ancestrais não eram nem primatas. Eram bichinhos insetívoros do tamanho de um camundongo.
A Icehouse, vale lembrar, não tem nada a ver com as “eras do gelo” que estão no imaginário popular (e nos filmes de animação). Esses são os períodos interglaciais, que ocorrem em intervalos bem menores – o último, por exemplo, terminou há 18 mil anos. As fases de Greenhouse e Icehouse, que duram dezenas de milhões de anos, implicam mudanças consistentes e duradouras no clima.
Durante a última fase de Greenhouse, quando a Antártida ainda era verde, a concentração de CO2 na atmosfera era de três a cinco vezes maior. A principal fonte desse gás era o movimento das placas tectônicas e o vulcanismo intenso, que liberam CO2 e outros gases de efeito estufa na atmosfera.
Quando o vulcanismo e o tectonismo baixam a bola, a emissão desses gases diminui. E a Terra entra em Icehouse. Com o passar do tempo, os gases interagem quimicamente com as rochas e são retirados da atmosfera, por meio de um processo chamado intemperismo.
Algumas teorias também relacionam os estados Icehouse com ciclos astronômicos. Seriam períodos em que a Terra encontra-se posicionada em alguma região da Via Láctea que recebe mais raios cósmicos (partículas carregadas de energia). Elas degradariam o CO2 da atmosfera, diminuindo a temperatura.
Outro fator que apertou o botão do ar-condicionado na Antártida foi se separar da América do Sul. Fomos o último pedaço a se desprender dela, há 35 milhões de anos. Uma passagem marítima profunda se abriu entre os dois continentes – a Passagem de Drake. Esse acesso formou a Corrente Circumpolar Antártica, um fluxo contínuo de água fria que contribuiu para o resfriamento do continente.
Há registros de vegetação rasteira, típicas da tundra, até 14 milhões de anos atrás. É por volta desse período que a neve permanente começa a se formar. Os invernos ficaram cada vez mais frios, e os verões, menos quentes. Em determinado momento, o verão não dá mais conta de derreter toda a neve que caiu no inverno, o que permite a acumulação de ainda mais neve no ano seguinte, num círculo vicioso. Esse processo cobriu a Antártida com uma capa de dois quilômetros de gelo.
O isolamento do continente também retroalimentou a transição para a fase Icehouse. A formação da Corrente Circumpolar ajudou a resfriar o resto do globo, e matar a última fase Greenhouse.
Antártida subterrânea
Existem evidências fósseis de todas as fases geológicas que mencionamos aqui – da Antártida equatorial aos últimos momentos da glaciação. Mas encontrar fósseis em uma terra soterrada por gelo não é uma tarefa fácil. A maioria das escavações ocorre nas ilhas ao redor do continente, que ficam descobertas de gelo durante o verão.
Escavar na maior parte da Antártida é praticamente impossível. Os pesquisadores precisariam cavar por até quatro quilômetros só para chegar ao solo. Os únicos fósseis retirados do continente vêm das Montanhas Transantárticas e de regiões próximas à costa, onde há rochas expostas. Em área total, a Antártida só perde para a Rússia, mas a área disponível para escavação é do tamanho do Estado de São Paulo.
Apesar dos empecilhos, há esforços para estudar o que há abaixo do manto de gelo – não os fósseis (o que é econômica e tecnologicamente inviável), mas os lagos subglaciais. O calor geotérmico da rocha derrete o gelo de baixo para cima, formando correntes de água na interface entre o chão e o gelo. Essas correntes fluem para lagos, que desaguam no mar.
Existem mais de 400 lagos sob a Antártida, mas apenas dois foram perfurados com sucesso: o Whillans e o Vostok. O segundo é o maior e mais famoso, formado antes mesmo de a camada de gelo se depositar sob o continente. O Lago Vostok está a 3,7 quilômetros da superfície – um Monte Fuji de cabeça para baixo.
Se onde há fumaça, há fogo, onde há água líquida, há vida. E os lagos subterrâneos da Antártida não são uma exceção à regra. Os microrganismos encontrados lá dão uma ideia do que podemos achar fora da Terra. Se existe vida em lagos isolados há milhões de anos, por que não em outros planetas? Europa, uma das luas de Júpiter, não é tão diferente do continente gelado – ela possui lagos cobertos por cinco quilômetros de gelo. É a maior aposta para a descoberta de vida microbiana no Sistema Solar.
Ultimamente, o trabalho dos pesquisadores que estudam rochas na Antártida tem se tornado mais fácil – mas não no bom sentido. O aumento da temperatura global expôs rochas e aumentou a quantidade de musgos e líquens no continente. “Na minha última viagem, conheci um lugar que antes era coberto de gelo. Esse gelo sumiu em cinco anos”, diz Anelli.
E o aquecimento causado pela humanidade é bem mais acelerado que o dos ciclos naturais. “Na última deglaciação, o planeta demorou 18 mil anos para aumentar a temperatura em 8 ºC. Nós, em um século, já aumentamos em 1 º C”, lembra Cardia.
“O congelamento da Antártida mudou os ecossistemas. A fragmentação dos continentes, temperaturas mais amenas e a dinâmica de massas de ar causaram uma explosão de biodiversidade, inclusive a dos hominídeos”, diz Anelli. Afinal, o gênero Homo só está aqui há 2 milhões de anos. Se quisermos continuar, é bom garantir que a Antártida não volte a ser verde.
Fontes: Arthur Brum, pesquisador do Museu Nacional e projeto Paleoantar; Juliana Sayão, coordenadora adjunta do projeto Paleoantar; Jefferson Cardia Simões, vice-presidente do Comitê Científico de Pesquisas Antárticas; Fernanda Quaglio, pesquisadora e professora da Unifesp; Luiz Eduardo Anelli, professor do Instituto de Geociências da USP e autor de livros infantis sobre dinossauros; livro Scott’s Last Expedition, de Robert Falcon Scott.