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Resultado anômalo no LHC pode indicar nova força fundamental da natureza

Uma partícula chamada quark bottom não decai como se esperava. Talvez seja só um acaso estatístico – ou o primeiro passo de uma revisão nos pilares da física.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 25 mar 2021, 15h24 - Publicado em 25 mar 2021, 14h31

Em 1897, J.J. Thompson descobriu o elétron, a mais leve das partículas que formam o átomo. Até então, pensava-se que os átomos fossem as unidades fundamentais da matéria. Que eles não fossem feitos de algo menor (tanto é que a palavra “átomo” vem do grego antigo e significa, ao pé da letra, “aquilo que não pode ser cortado”).

Pouco mais de um século depois, a literatura especializada lista um zoológico de mais de 200 partículas subatômicas, das quais 17 são consideradas fundamentais. As fundamentais são, até onde podemos sondar, os verdadeiros átomos  os tijolos básicos e indivisíveis a partir dos quais todo o resto do cosmos se constrói.

60 dessas 200 partículas (inclusive a mais hypada dentre as fundamentais, o bóson de Higgs) foram detectadas em experimentos no Grande Colisor de Hadrons, mais conhecido pela sigla LHC. Esse túnel de 27 km de circunferência, enterrado na fronteira entre a França e a Suíça, acelera e colide fragmentos de átomos para analisar os estilhaços da pancada – e encontrar novos e efêmeros constituintes da matéria.

Na época da inauguração do LHC, em 2008, esperava-se que as energias altíssimas alcançadas pelo equipamento nos dariam um vislumbre de uma nova física para o século 21 – uma física capaz de explicar muitos mistérios deixados pendentes por um dos pilares da nossa compreensão atual do cosmos: o chamado Modelo Padrão, vigente desde 1973.

Até então, porém, o LHC conseguiu apenas confirmar as previsões teóricas do Modelo Padrão, uma após a outra, com muitas e muitas casas decimais de precisão. Por um lado, esse é um bom sinal: os físicos teóricos acertaram e agora os físicos experimentais estão só colhendo os frutos. O físico Lee Smolin chegou a escrever um artigo para o edge.org intitulado “Nenhuma notícia é uma notícia espantosa”.

Por outro lado, o Modelo Padrão tem limitações em sua capacidade de explicar o Universo limitações essas que você entenderá a seguir , e a única maneira de superá-las é analisando observações experimentais que se desviem do esperado. É por isso que, de certa forma, os físicos torcem para estarem errados. Para que o LHC faça algo imprevisto.

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(Nas palavras de um paizão da física de partículas, o Nobel italiano Enrico Fermi: “Um experimento que confirma uma predição é só uma medição. Um experimento que contradiz uma predição é uma descoberta.”)

Isso provavelmente acaba de acontecer. Na verdade, vem acontecendo desde 2014. Mas só agora, após sete anos e milhares de colisões entre partículas analisadas minuciosamente, foi possível estabelecer com razoável grau de confiança que a anomalia observada pode ser de fato uma anomalia – e não alguma flutuação estatística irrelevante.

Essa anomalia pode ser resumida assim: uma partícula chamada quark bottom, que deveria dar origem a duas outras em quantidades iguais, está gerando mais de uma do que de outra. Isso pode indicar a interferência de uma partícula ou de uma força da natureza que não estavam no horizonte dos físicos, e se tornar o primeiro passo para explicar várias limitações do Modelo Padrão e da física como um todo (como a matéria escura e a energia escura). Vamos então explicá-la, começando do zero. 

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(Wikimedia Commons/Domínio Público)

As limitações do Modelo Padrão

O lance incômodo com o Modelo Padrão é que, mesmo não estando errado, ele está incompleto. Ele fornece um retrato preciso das 200 e tantas partículas que já conhecemos e prevê as maneiras como elas interagem entre si e decaem em outras partículas. Mas ele não explica por que essas partículas são assim, e não assado. Esse é o problema dos parâmetros livres. Há 29 deles. São valores como a massa do elétron, que são como são e ninguém sabe por quê.

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É como a biologia antes de Darwin: os botânicos e zoólogos haviam classificado milhares de espécies, mas não sabiam que todas haviam evoluído por meio de um mecanismos como a seleção natural, seleção sexual etc. Falta uma explicação subjacente a toda essa variedade. Um princípio unificador que nos permita dizer por que uma partícula é ruiva e a outra é loira.

Outro problema é que o Modelo Padrão não dá nenhuma dica sobre outras partículas que precisam existir, mas cuja identidade é um mistério. Todos os objetos que nos cercam, do sofá da sua casa até a galáxia de Andrômeda, são feitos de matéria bariônica, que corresponde a apenas 5% do conteúdo total de matéria e energia do Universo. O Modelo Padrão trata desses 5%.

Ele não diz nada sobre os 95% restantes: as chamadas matéria escura (que apesar de indetectável têm uma influência gravitacional clara, perceptível na rotação das galáxias) e energia escura, responsável pela expansão acelerada do Universo. Outra lacuna do Modelo Padrão é que ele não é capaz de incorporar a força da gravidade em seus cálculos.

A gravidade é descrita pela Relatividade Geral de Einstein como a maneira como a massa e a energia curvam o espaço e no tempo, que são a moldura da realidade. O pano de fundo do Universo. Ou seja: a física contemporânea se baseia em duas teorias. Uma descreve o palco, o tecido do espaço-tempo. A outra, o Modelo Padrão, fala dos atores em cima do palco, as partículas de matéria e a energia.

As duas são, isoladamente, as maiores realizações intelectuais da história da civilização. Porém, juntas, elas não se conversam matematicamente. A gravidade se nega a passar por um procedimento chamado renormalização, que elimina infinitos das contas e permitiria incorporá-la ao resto do Modelo Padrão.

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Por fim, os parâmetros livres do Modelo Padrão são um bocado estranhos. São números pequeninos e discrepantes, que não parecem seguir qualquer lógica interna. Esse é o problema da hierarquia. Outra questão é que esses valores quebrados parecem perfeitamente ajustados para permitir a existência de um Universo capaz de sustentar vida complexa baseada em carbono. Esse é o problema dos ajustes finos.

O mapa do mundo subatômico

Para entender o básico do básico sobre a taxonomia microscópica, você precisa conhecer quatro partículas: o quark up, o quark down, o elétron e um coadjuvante, o neutrino. O neutrino é o membro mais insubstancial da família: tem massa irrisória, carga elétrica inexistente e não interage com nada: nem dois anos-luz de chumbo são capazes de pará-lo.

(Os quarks formam os prótons e nêutrons, que por sua vez formam o núcleo dos átomos. Os elétrons se organizam em torno desse núcleo. Dois quarks up e um down formam um próton, dois quarks down e um up formam um nêutron. Você, então, é feito de quarks e elétrons. O LHC é um colisor de hádrons, o nome que se dá a partículas formadas por quarks. Na prática, o que ele colide são prótons.)

Os físicos ainda não sabem por quê, mas cada uma dessas quatro partículas (dois quarks, elétron e neutrino) têm dois sósias. O elétron, por exemplo, vem acompanhado do múon (µ) e do tau (t). Exatamente como seu irmão mais famoso, esses dois também têm carga elétrica -1, e muitas outras características idênticas. A diferença é que o múon tem massa 200 vezes maior – e o tau, 3 mil vezes maior. Eles são elefantes fazendo cosplay de chinchila. 

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O quark down, é claro, também tem duas versões mais gordas, e a mais gorda deles se chama quark bottom (ou beauty). Se você sabe um pouquinho de inglês, já percebeu que esses nomes são todos engraçadinhos: beauty significa “beleza”, e o próprio nome quark é um neologismo tirado de um livro do James Joyce. Esses são só apelidos que facilitam a decoreba. O que interessa são os dados associados a cada partícula. 

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(Xenotar/Getty Images)

A anomalia da vez

A questão crucial aqui é que o quark beauty é instável e decai – um verbo que, no jargão dos físicos, significa se fragmentar em partículas de massa e energia menores. O Modelo Padrão indica que o quark beauty deveria decair em quantidades idênticas de elétrons e múons, uma das versões elefante dos elétrons. Mas o que os resultados do LHC vêm revelando desde 2014 é que algo desfavorece os múons: para cada 100 elétrons, só 85 múons saem do forno. 

As conclusões que acabam de ser divulgados pela equipe do LHC (estamos falando de centenas de físicos que fazem parte do LHCb, um das quatro estações de pesquisa lá dentro) se baseiam em dados coletados ao longo dos últimos sete anos para reforçar ou refutar as observações preliminares de 2014. A notícia boa é que reforçam. As novas observações reduziram o grau de incerteza das antigas para um valor bastante animador de 3,1 sigma.

Oi?

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“Esse é o jeito dos cientistas de dizer que há apenas uma chance em mil de que o resultado seja uma flutuação aleatória nos dados”, explicam no site The Conversation os físicos Harry Cliff, Konstantinos Petridis e Paula Cartelle, todos participantes do LHCb. “Os físicos de partículas costumam considerar evidência qualquer coisa maior do que três sigma. Mas nós ainda estamos longe de uma descoberta ou observação confirmadas, que requerem cinco sigma.”

Em uma área de pesquisa que não vê novidades aterradoras no campo teórico desde a década de 1970 – e cuja última confirmação experimental com impacto midiático veio em 2012, com o bóson de Higgs –, três sigma são suficientes para ter, em bom português, um treco. Nas palavras de Mitesh Patel, um dos líderes do LHCb: “Eu estava realmente tremendo. Percebi que essa era a coisa mais emocionante que eu fiz em meus 20 anos de carreira na física de partículas.”

O que a anomalia significa? 

Ela pode significar nada, é claro. Mas com o grau de verificação monumental a que o pessoal do LHC submete suas conclusões, isso é pouco provável. Se alguma coisa está interferindo na proporção entre múons e elétrons gerados pelo decaimento, há de fato alguma chance de que ela seja uma nova partícula. Uma partícula que o Modelo Padrão não prevê, é claro – caso contrário, a provável descoberta não teria gerado alvoroço.

Essa anomalia poderia ser explicada, por exemplo, pela existência do hipotético leptoquark – uma espécie de fusão entre partículas como os elétrons e múons (que são os léptons) e os quarks que se manifestaria apenas em energias altíssimas. Essa partícula seria uma peça importante para resolver alguns problemas mencionados no começo do texto: por qual razão as partículas fundamentais que existem vêm nessas quantidades e possuem essas características?

Outra possibilidade é que o desequilíbrio seja culpa de uma nova força fundamental da natureza, cuja possível partícula mensageira já ganhou um nomezinho provisório: Z prime. Mas dizer isso não refresca muito. O que é uma partícula mensageira? O que é uma força fundamental? Por que isso é importante?

Dissemos lá atrás que existem quatro partículas fundamentais, cada uma delas com dois sósias. Ou seja: 12 partículas ao todo. Mas nós também dissemos que o Modelo Padrão tem 17 partículas fundamentais. Faltaram cinco nessa conta, e para dar o próximo passo, precisamos explicar o que essas cinco restantes são e o que fazem da vida.

Quatro delas são partículas mensageiras das forças fundamentais da natureza. Uma partícula mensageira serve de telegrama para avisar outras partículas que uma força está atuando sobre elas. A força mais conhecida é a eletromagnética – cuja partícula mensageira, de nome igualmente familiar aos iniciados, é o fóton. No Ensino Médio aprendemos coisas com cargas elétricas iguais se repelem e cargas opostas se atraem. As coisas sabem que precisam se aproximar ou se afastar porque trocam fótons entre si, que informam da aproximação ou do afastamento.

(A gravidade também é uma força fundamental da natureza e deveria uma partícula mensageira, chamada gráviton. Mas a gravidade não se encaixa no Modelo Padrão, de modo que a busca pela caracterização teórica do gráviton é justamente a busca malfadada pela unificação entre o Modelo Padrão e a Relatividade Geral que mencionamos alguns parágrafos atrás. Sendo assim, o gráviton não é uma partícula fundamental, apenas um sonho distante.)

Além do eletromagnetismo e da gravidade, ambos familiares e presentes no nosso cotidiano, há duas outras forças fundamentais que são relevantes apenas na escala microscópica. Elas não foram batizadas com nomes tão criativos quanto as partículas: são a força forte e a força fraca.

A força forte é responsável por grudar os quarks juntinhos, formando os prótons e nêutrons. Nesse domínio minúsculo em que opera, a força forte é forte mesmo: quarks simplesmente não existem sozinhos na natureza. Sempre andam no mínimo em dupla. A força forte tem sua partícula mensageira, o glúon, cujo nome deriva da palavra glue (“cola”, em inglês).

(Em uma escala ligeiramente maior, uma versão residual da força forte, chamada comumente de força nuclear forte, também é a responsável por manter os prótons unidos no núcleo. Sem ela, eles tenderiam a se repelir porque têm todos carga elétrica positiva.)

A força fraca é um pouco mais complicada de explicar – acredite, você não vai querer encará-la depois de chegar nessa altura do texto –, mas o que interessa é que suas partículas mensageiras, os bósons W e Z, completam o quarteto de partículas mensageiras: fóton, glúon, bóson W e bóson Z. Das 17 partículas do Modelo Padrão, só faltou apresentar o bóson de Higgs, que definitivamente é um caso à parte. Você pode entendê-lo melhor aqui.

O quadro completo, sem o bóson de Higgs, segue abaixo:

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(Andres Rojas/Wikimedia Commons/Creative Commons)

A conclusão de tudo isso é: forças são importantes, e descobrir uma nova força que não estava nos planos do Modelo Padrão pode ser o primeiro passo rumo a uma nova descrição do Universo. Uma descrição que incorpore o Modelo Padrão, a Relatividade Geral e de quebra dê conta de todas as incógnitas da física contemporânea: matéria escura, energia escura etc.

Esse é um projeto ambicioso ao qual as melhores mentes do século 20 se dedicaram sem sucesso. Ou seja: não há um caminho fácil pela frente. Os resultados obtidos pelo LHC ainda precisarão passar por outras rodadas de verificação, inclusive em outros instrumentos, como o japonês Belle 2. Mas as esperanças são grandes:

“Eu diria que o clima é de entusiasmo cauteloso”, afirmou à imprensa Chris Parkes, porta-voz do LHCb. “Nós estamos intrigados não só porque esse resultado é significativo, mas porque ele se encaixa em um padrão de resultado prévios do LHCb e de outros experimentos ao redor do mundo.”

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