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Senhores das Trevas

Feios a não poder mais, dotados de lanternas orgânicas e com uma vida sexual incomparável, os peixes do fundo do mar mostram os extremos a que pode chegar a adaptação a um ambiente adverso.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h28 - Publicado em 30 jun 1990, 22h00

No fundo do oceano, a 4 000 metros, onde a luz do Sol não desce e a temperatura média é de 2ºC, vicejam estranhas espécies de peixes escuros de aspecto horroroso aos olhos humanos, que fascinam porém os cientistas por sua adaptação à vida sob pressões praticamente insuportáveis, pouco alimento e reprodução difícil. São os peixes abissais, formas de vida extremamente peculiares. Alguns têm boca e estômago capazes de engolir e digerir presas com o dobro do seu tamanho. Nas condições do que talvez seja o mais inóspito dos ambientes, por sinal o maior habitat do mundo, muitos desses peixes desenvolveram sistemas orgânicos destinados a iluminar as trevas e atrair as presas: possuem luzes no próprio corpo, que acendem e apagam como lanternas quando necessário.

Na vastidão dos oceanos, os peixes abissais não encontram fronteiras naturais a sua circulação e assim se espalham dos trópicos até as regiões polares. Como não vive em cardumes, é normal que, ao encontrar uma companheira, um desses peixes não se arrisque a perdê-la. Em certas espécies, o macho virtualmente funde-se com a fêmea, transformando-se em um pouco mais do que um depósito de espermatozóides. Até meados do século passado, os cientistas negavam que houvesse vida no mar abaixo de 500 metros. Eles sabiam que, muito aquém da superfície, a água filtra as ondas vermelhas do espectro de luz, deixando visíveis apenas as combinações de verde e azul. Por isso, um mergulhador que cortar a mão a 100 metros de profundidade verá o sangue verde-escuro ou marrom. A 2 000 metros, a esmagadora pressão da água pode arrebentar um cilindro de mergulho.

Explorando os domínios marinhos mais profundos, as missões de pesquisa acabaram descobrindo no entanto que os obstáculos da pressão e da escuridão não são intransponíveis para os peixes. Hoje se sabe que essa classe de vertebrados, a mais antiga que existe, vive em qualquer lugar onde haja água — dos tenebrosos abismos oceânicos até a superfície do mar aberto. “Não existe um limite de profundidade para a vida”, assegura o ictiólogo José de Lima Figueiredo, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Há peixes que nadam a 300 ou 400 metros, mas também mergulham em profundidades de 4 000 metros ou mais ainda. Há cerca de vinte anos, os cientistas que estudavam um habitat submarino nas Ilhas Virgens, no Caribe, ficaram surpresos ao ver, numa noite escura, o que parecia um grupo de peixes piscando sem parar no meio de um recife de corais. Descobriu-se que eles pertenciam à família dos ceratióide, chamados pelos americanos lanterneye fishes (peixes-de-olho-de-lanterna) porque possuem embaixo do olho uma cavidade que abriga bactérias fosforescentes. Durante o dia, esses peixes mergulham a grandes profundidades. À noite, ausente a luz solar, sobem à superfície para se alimentar de plâncton, microorganismos que vivem em suspensão na água. Os cientistas observaram desde então que tais espécies inventaram sistemas próprios de iluminação absolutamente únicos. O Kryptophanaron, que vive nas águas do Caribe, tem sob os olhos uma cavidade que emite luz e que fica coberta por um tipo de persiana escura quando não deseja ser visto. Outras espécies, Anomalops e Photoblepharon, têm uma forma de haste com um farol na ponta, que projetam para frente e para trás da cabeça e também escondem embaixo do olho. O Pachystomias, um peixe predatório chamado peixe-dragão (dragonfish) faz jus ao nome. Não solta fogo, é claro, mas tem uma série de células fosforescentes espalhadas na boca, ao longo do corpo e debaixo do olho.

Muitos desses peixes nunca foram encontrados no Oceano Atlântico e não têm nomes vulgares em português. “Os peixes abissais não costumam cair nas redes dos pescadores e as missões científicas nacionais trabalham mais nas águas rasas da plataforma continental”, explica Lima Figueiredo. Mesmo assim, existe no museu de Zoologia da USP um exemplar de peixe-dragão encontrado na costa do Rio Grande do Sul a cerca de 800 metros de profundidade. Possui o que os ictiólogos chamam barbilhão, um fio que sai por baixo da mandíbula do peixe, com um farol na ponta. Outra espécie conhecida, a dos Chauliodus, ou peixes víboras, tem uma haste que é uma extensão dos primeiros raios da nadadeira dorsal e também luzes dentro da boca para atrair a presa direto ao estômago.

Os dragões-pretos têm a peculiaridade de emitir luz vermelha. Como a maioria dos peixes não enxergam essa cor, tais membros da espécie Pachistomias microdon usam as suas lanterninhas vermelhas para se aproximar sem serem percebidos dos animais que lhes servirão de alimento. Outros peixes se distinguem pelos olhos projetados para a frente, o que lhes permite aproveitar toda a pouca luz existente. Estima-se que essas criaturas são capazes de enxergar no lusco-fusco de quinze a vinte vezes melhor do que os humanos. Os olhos tubulares do Argyropelecus, assim como do Sternoptyx, do Gigantura e ainda do Stylephora, sempre voltados para cima, enxergam contra luz que vem da superfície a silhueta de seus inimigos e da refeição em potencial. O Argyropelecus paciefiecus emite luz verde e azul na mesma intensidade da iluminação procedente da superfície; portanto tornam-se invisíveis. O habitat desempenha um papel importante na cor dos peixes. Os que vivem mais perto da superfície apresentam um tom azulado ou esverdeado, os que vivem no fundo são em geral escuros no dorso e nos lados. Os camarões das profundezas e os peixes da família dos Rondeletiidae são vermelhos porque essa cor não aparece nas águas abissais. Mas, além da cor, também a forma e a estrutura desses peixes são influenciadas pelo meio e pelo tipo de alimento. Muitos se dirigem à noite à superfície para apanhar plânctons, filtrando grandes quantidades de água através da boca e das brânquias, os órgãos da respiração. Outros, carnívoros, desenvolveram dentes avantajados, boca articulada e enorme estômago para o seu pequeno tamanho — finos e compridos, não crescem mais de 30 centímetros.

Os peixes da espécie Saccopharynx foto, parecidos com serpentes, têm a cabeça grande e uma boca que abre e fecha como uma tampa de lixo para engolir a presa. Há pequenos tubarões com grandes dentes embaixo da boca e pequenos em cima. São capazes de morder presas muito maiores do que eles próprios, arrancar um naco de carne do tamanho de metade de uma laranja e fugir deixando no lugar a marca feroz de sua boca. Nas profundezas do oceano, comer não é fácil nem freqüente; desse modo, a satisfação dessa necessidade depende muito do que sobra da produtividade da vida na superfície. A falta de alimento obriga os peixes a serem particularmente vorazes a qualquer momento: eles desconhecem a saciedade. Os Chiasmodon, peixes-pescadores, como são chamados, devoram presas duas ou três vezes maiores do que eles mesmos. As câmaras de controle remoto e, mais recentemente, os pequenos submarinos tripulados documentaram o frenesi das feiticeiras, espécie de enguias, dos isópodes (um grupo de crustáceos) e mesmo de tubarões quando a natureza provê um banquete constituído da carcaça de peixes grandes ou de baleias da superfície. O estômago dos peixes-pescadores se dilata e eles engolem caranguejos, moluscos e peixes avantajados com rapidíssimas dentadas. Os Melanocetus chegam a ter dentes na garganta para impedir que suas presas, tão arduamente caçadas, escapem enquanto estiverem sendo engolidas.

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No mundo aquático, a reprodução costuma ser simples: quando chega o momento, basta que o macho e a fêmea soltem esperma e ovos na água para que, da combinação desses elementos, resulte a fecundação. Mas os peixes-pescadores de profundidade são relativamente raros e muito distribuídos por todos os oceanos. Estima-se que, para cada fêmea sexualmente amadurecida, existam de quinze a vinte machos. Portanto, não é de estranhar que vivam menos e tenham praticamente uma única função em toda a sua existência: encontrar uma fêmea e fertilizá-la. Estes solteirões afoitos têm olhos especiais para captar a luz das companheiras a distância. Supõe-se também que, dotados de grandes órgãos olfativos, sejam capazes de segui-las pelo feromônio, o cheiro que elas emitem nas correntes marítimas. Ao encontrar uma fêmea, o macho da espécie Linophryne inica, vinte vezes menor, a ela se liga pela boca. Seus corpos se fundem, a circulação torna-se comum aos dois e o macho fica reduzido à condição de escravo sexual – vivendo exclusivamente para produzir e armazenar esperma a serviço da companheira. Essa incrível simbiose atrai o interesse dos pesquisadores não apenas por tratar-se de uma exótica técnica de reprodução, mas porque talvez venha a ter grande utilidade nos negócios humanos – no tratamento da rejeição em transplantes. O sexo no fundo do mar não cessa de surpreender: em certos casos, a masculinidade ou a feminilidade é apenas uma questão idade. Entre os Gonostoma gracile, o indivíduo amadurece sexualmente como macho com 1 ano. Mas em dado momento do segundo ano de vida transforma-se em fêmea. Na família dos Paralepidídeos, os indivíduos são hermafroditas, com ovários e testículos ao mesmo tempo. Quando não encontram um parceiro, fecundam-se a si mesmos.

Os peixes abissais podem parecer grotescos, bizarros – alguns são imbatíveis em matéria de feiúra. Finos, pequenos, gelatinosos, não têm nenhuma armadura de proteção, como escamas e freqüentemente se desfazem quando estudados. Comendo pouco, gastam também pouca energia e nadam apenas o sabor das correntes. Tudo indica que seriam seres primitivos, que não evoluíram durante milhares de anos. Mas o ictiólogo americano Richard Rosemblatt, do Instituto Scripps de Oceanografia, na Califórnia, provou pela estrutura óssea que esses peixes estão no auge da evolução. Como outras espécies, que passaram a viver em praias rasas, ou em baías lamacentas, rios caudalosos ou lagoas, estas mudaram-se da superfície dos mares, seu habitat original, por motivos desconhecidos. Nos abismos profundos onde foram parar, desenvolveram as estranhas características que os transformaram em senhores das trevas.

 

 

Para saber mais:

Belos e mortíferos nudibrânquios

(SUPER número 2, ano 4)

 

 

 

 

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