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Stephen Jay Gould

O paleontólogo americano explica como o mapeamento do genoma vai mudar até a nossa visão da seleção natural.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 out 2001, 22h00

Rafael Kenski

Além de figurinha carimbada no mundo da divulgação científica, o paleontólogo Stephen Jay Gould é o que se pode chamar de um professor caxias. Durante os 35 anos que esteve à frente do curso História da Vida, na Universidade de Harvard, Estados Unidos, ele só abandonou o programa de suas classes em duas ocasiões. A primeira vez foi nos “rebeldes” anos 60, após uma invasão da reitoria pelos estudantes. A segunda foi no início deste ano, quando Gould achou que era hora de interromper a aula para falar do impacto do mapeamento do genoma humano. “É um feito comparável à invenção das ferrovias no século XIX ou ao desenvolvimento da eletrônica e das telecomunicações”, diz Gould.

Para Gould, o mapeamento dos nossos genes vem comprovando que a evolução biológica é bem mais complexa do que se imaginava. E, apesar de ser um ferrenho defensor de Darwin, ele diz que a seleção natural não explica, sozinha, a evolução de todas as espécies. Idéias como essa o tornaram conhecido como um dos mais polêmicos cientistas dos Estados Unidos. Os seus quase mil artigos científicos tratam de temas como biologia, geologia, arte, religião, história e paleontologia e, muitas vezes, foram reunidos em livros, que se tornaram best-sellers. De seu escritório em Nova York, ele falou à Super por telefone.

Super – Após todo o estardalhaço, qual será o verdadeiro impacto do mapeamento do código genético humano na ciência?

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A grande descoberta do Projeto Genoma é o número reduzido de genes que o ser humano possui. Não temos nem o dobro de genes do nematóide C. elegans, um pequeno organismo da família dos vermes. Esse dado é uma prova da ingenuidade do pensamento reducionista na biologia. Segundo essa visão, a complexidade de um organismo deveria ser resultado direto do maior número de genes ou proteínas. Não é o que acontece. Não temos tantos genes a mais que outros seres vivos. Apa-rentemente, cada gene pode fazer várias proteínas. Portanto, a com-plexidade de um animal não pode ser reduzida aos seus elementos básicos – seria o mesmo que avaliar a com-plexidade de uma casa pela quantidade de tijolos. Ou seja: a tendência de ver os seres vivos apenas como um produto dos genes vai mudar. E o mais im-portante de tudo isso é que agora ha-verá mais respeito à integridade do organismo.

O ser humano terá de ser estudado de uma forma mais holística?

É o que tentamos fazer agora. E isso é um desafio ainda maior. Se pensássemos de maneira reducionista, que um gene faz uma proteína, então seria muito fácil curar doenças genéticas. Precisaríamos apenas achar a seqüência que está errada, consertá-la e a doença seria erradicada. Na maioria dos casos, a solução não será tão simples. Provavelmente poucas doenças são causadas por apenas um gene defeituoso. Não poderemos simplesmente patentear todo tipo de gene que acharmos, esperando que algum dia os cientistas descubram que ele é o causador de alguma moléstia. Tudo indica que a maioria das doenças são causadas por muitos genes interagindo entre si e com o ambiente. Além de estudar como o material genético trabalha durante o desenvolvimento do organismo, precisaremos saber como ele interage com a nutrição e com as influências do ambiente. Sem dúvida, uma visão bem mais integral do homem.

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O ser humano ainda está evoluindo?

De alguma forma, nós estamos. A evolução não deixa de seguir seu rumo. Podemos averiguar isso ao perceber que alguns grupos se reproduzem mais rapidamente que outros. Os indianos estão se reproduzindo mais que os europeus, enquanto a população de aborígenes australianos está diminuindo. Mas esse processo é insignificante porque as diferenças genéticas entre os homens são muito específicas. Todos os seres humanos são muito parecidos. O que ocorre é que as mudanças culturais são tão rápidas que as alterações biológicas não importam mais. Com o uso em larga escala da engenharia genética, poderíamos mudar os homens, mas seria apenas um processo tecnológico. A evolução natural é um processo muito lento perto da extrema velocidade das mudanças culturais. Os seres humanos não mudaram nos últimos 15 000 anos. Biologicamente, somos as mesmas pessoas que viviam nas cavernas há milhares de anos. É impressionante o que mudamos culturalmente com o mesmo corpo e o mesmo cérebro.

O que aconteceria se praticássemos a clonagem em massa?

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Essa é mais uma questão ética. Existem muitos usos benéficos da clonagem para a agricultura e na pecuária. O enxerto já é uma forma de clonagem, apenas não é uma modificação genética e a planta que resulta não é exatamente uma réplica. Quanto à aplicação em seres humanos, podem surgir alguns usos inapropriados. Companhias poderiam rastrear as notícias de jornais em busca de crianças que morreram, contatar os pais e oferecer a eles um filho idêntico ao que eles tinham. Não queremos que surjam essas empresas, mas é um exemplo do que pode acontecer.

De que forma o homem interfere na evolução?

Tudo o que fizemos desde o surgimento da agricultura teve um impacto importante na evolução de algumas espécies, como o cultivo do milho, do arroz e de diversos tipos de alimento. Nós também já modificamos muitas espécies por cruzamento. No entanto, o maior impacto é a mudança do meio ambiente. Um dos maiores exemplos é o seu país, o Brasil, onde a remoção de florestas é muito acelerada. A forma como exterminamos hábitats naturais e levamos muitas espécies à extinção é o maior impacto que os humanos têm no processo evolutivo.

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A ciência é capaz de explicar as diferenças entre os aspectos biológicos e os culturais do ser humano?

De certa forma ela já faz isso. Nós não conhecemos cada detalhe dessas diferenças, mas temos uma compreensão básica de quais são elas. As mudanças culturais estão marcando o ser humano de forma muito rápida. Aprendemos os traços culturais e ensinamos diretamente às próximas gerações. A herança biológica é darwinista e mendeliana, e opera em um processo muito mais lento e indireto. Sabemos por que a biologia e a cultura são tão diferentes e quais são as propriedades de cada um, apesar de não conhecermos cada detalhe da interação complexa entre os dois.

Existe alguma pergunta complicada demais para ser respondida pela ciência?

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Não. Existem algumas questões que poderiam ser respondidas, apenas não temos a informação para isso. E existem outras que a ciência não consegue responder não pela complexidade, mas porque ela é uma explicação do mundo baseada em fatos. A ciência não consegue lidar com questões morais, por exemplo. Ela não pode falar a respeito do que deveríamos estar fazendo e da maneira certa de nos comportar. A ciência se limita apenas a descobrir as conseqüências de cada comportamento, mas não tem como decidir se elas são boas ou más. Muitas dessas boas questões pertencem à religião. Eu não quero dizer que elas não possam ser respondidas – e algumas não podem mesmo! – mas é importante que elas sejam discutidas. Questões morais e éticas podem ser discutidas, mas a ciência não pode respondê-las.

rkenski@abril.com.br

Frase

“A ciência não pode solucionar os problemas éticos. Pode apenas estudar as conseqüências das ações humanas”

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