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Como o ornitorrinco mudou a história da biologia

No século 19, um mamífero-anfíbio australiano que põe ovos deixou o anonimato para ser conhecido como o bicho mais estranho do mundo

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 29 set 2020, 14h49 - Publicado em 26 jul 2017, 17h48

Não era para ser uma entrada dramática. O ano é 1799. Uma mulher, cuja identidade é desconhecida até hoje, está no cais de Newcastle-upon-Tyne, norte da Inglaterra. Sua função é buscar um frágil tonel, recém-chegado de navio de uma tal terra australis incognita – a “terra desconhecida do sul”, hoje chamada Austrália. Ela ergue o barril, carregado de bebida alcoólica, com os dois braços, coloca-o na cabeça e começa a caminhada de volta para o prédio da Sociedade Literária e Filosófica da cidade, onde seus chefes, acadêmicos e cientistas ansiosos, aguardam a encomenda.

No caminho, o fundo do barril cede e ela leva um banho de destilado. Encharcada, olha para o chão e dá um grito agudo: dois espécimes de uma “criatura estranha, meio pássaro, meio fera”, caíram aos seus pés. O ornitorrinco havia chegado à Inglaterra.

Por espécimes, é claro, entenda pele e bico. A dupla de animais, já morta e sem seus órgãos internos, havia sido despachada da Austrália um ano antes, em 1798, por John Hunter, oficial da Marinha e, à época, governador de Nova Gales do Sul – nome oficial da colônia recém-fundada pela coroa britânica.

O novo território estava cheio de bichos e plantas exóticos – quase todos desconhecidos da civilização ocidental. Sem saber por onde começar a classificação desse parque de diversões biológico, Hunter, entusiasta da ciência, viu aborígenes caçarem o que descreveu como um pequeno anfíbio com jeito de toupeira. “Os nativos se sentam às margens do rio, com pequenas lanças de madeira (…), até que tenham uma boa oportunidade de atacá-los. Eles têm muita prática. Quando já está na superfície, o animal usa suas garras com tanta força que eles são obrigados a confiná-lo entre duas placas para impedir um ataque.”

Depois do incidente do barril, já secos e empalhados, os ornitorrincos seriam descritos, em 1800, pelo naturalista Thomas Bewick em seu livro História Geral dos Quadrúpedes. “É um animal sui generis; com a natureza tríplice de peixe, pássaro e quadrúpede, e não é aparentado com nada que nós já tenhamos visto.”

Estados da Austrália com populações de ornitorrincos: Queensland, New South Wales e Victoria (Colagem: Diego Max/Ilustração: Evandro Bertol/Superinteressante)

Ainda faltavam mais de três décadas para a Teoria da Evolução de Charles Darwin. Boa parte dos cientistas ainda defendia que as espécies haviam sido criadas por Deus da maneira como são, e o bicudo australiano desafiou todas as preconcepções. Sua existência foi questionada: zoólogos procuravam com afinco por marcas de costura no bico, convictos de que os exemplares recém-chegados à Inglaterra eram uma farsa levada longe demais por colonos e nativos brincalhões.

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Mortos e mergulhados em salmoura, os primeiros ornitorrincos do Velho Mundo não podiam esclarecer muito sobre a anatomia da nova espécie. Teorias sobre seu modo de reprodução, boa parte delas sem bases empíricas, pipocaram – e o debate sobre sua classificação, que duraria 80 anos, trouxe à tona o pior da elite acadêmica europeia.

A verdade tarda… e falha

No interminável interior da Austrália, vale tudo. Até militar saindo do posto para adotar ornitorrinco de estimação. “Durante a primavera de 1831, eu tinha ânsias de saber as verdades por trás da crença aceita de forma geral, a saber, que o ornitorrinco fêmea põe ovos e amamenta seus filhotes”, afirmou em uma carta Laurderdale Maule, tenente do exército britânico destacado para a colônia. “Nenhum ovo foi encontrado em perfeito estado, mas pedaços de uma substância que lembra casca de ovo foram coletados dos destroços do ninho.”

Além das cascas, o tenente encontrou uma fêmea, que levou para casa. Ele acertou em cheio o cardápio – apetitosas minhocas –, mas a cobaia não aguentou a distância da água e, duas semanas depois, morreu. Dissecando-a “com o corpo ainda quente”, o tenente viu leite jorrar das glândulas mamárias.

A descoberta deu razão ao alemão Johann Meckel, que alguns anos antes, em 1824, havia proposto que um bicho podia, sim, dar leite e pôr ovos – para o horror de franceses e britânicos, fiéis à ideia de que o ornitorrinco não era um mamífero. “Se essas glândulas produzem leite, então eu quero ver a manteiga!”, provocou o francês Geoffrey St-Hilaire, com o apoio de Jean-Baptiste Lamarck. Sim, o mesmo que você conheceu no Ensino Médio como inimigo nº1 da teoria da evolução das espécies de Darwin – no caso do ornitorrinco, ele ficou mais uma vez do lado errado da polêmica.

(Diego Max/Superinteressante)

Para descreditar Meckel, o médico britânico Everard Home, um dos pioneiros no estudo dos ornitorrincos, “encomendou” três fêmeas para dissecação. Ele acreditava que ornitorrincos, como lagartos, seriam ovovivíparos – espécies cujos ovos eclodem dentro do corpo da mãe. Atualmente, sabe-se que os ornitorrincos põem ovos, assim como patos e galinhas (ovíparos).

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Na década de 1840, evidências à parte, a questão orgulhosa ainda não estava resolvida. O militar Thomas Mitchell ordenou que, num período de três meses, uma fêmea deveria ser morta toda semana até que um ovo fosse encontrado em seu ventre. A carnificina não deu resultado: em 1863, o biólogo John Gould admitiu que a academia ainda não havia chegado a um consenso, e registrou sua preocupação no livro de divulgação científica Os Mamíferos da Austrália.

“[Houve uma queda na população] pela destruição indiscriminada promovida pelos colonizadores, que, se não for contida, levará mais adiante à extirpação desse animal inofensivo.”

Animais fantásticos e onde habitam

Agora estamos em 2017. Gilad Bino literalmente não dorme em serviço: é uma espécie de salva-vidas de ornitorrincos, caçadores noturnos que só começam a sair da toca no crepúsculo. É sob a luz do pôr do sol que ele sobe em um SUV modificado, mistura de ambulância e laboratório, e parte com uma equipe de quatro pessoas rumo às margens repletas de árvores dos rios australianos. Na lateral do carro, uma insígnia curiosa: Iniciativa de Conservação de Ornitorrincos. Ao lado, a sigla da Universidade de New South Wales, uma das maiores da Austrália, onde Bino é professor de ecologia.

Volta e meia ele encontra o animal de 45 cm – menor que um gato doméstico, em média – com a pele machucada ou o bico amarrado por uma linha de pescar. Resgatá-lo é arriscado: os machos têm esporas venenosas de 1,5 cm nas patas traseiras. Bino explica que eles não deitam de barriga para cima nem pedem carinho, mas são dóceis. E adverte: “Só não tentaria fazer cafuné em um macho. A dor do veneno dura meses. A área atingida atrofia e não dá para mover os músculos.”

O jeito é levá-lo pendurado pela ponta do rabo rechonchudo, que serve de depósito de energia. Assim, ele não consegue atacar. Após aplicar curativos, Bino tira uma amostra de sangue do bico. O líquido revela se o peludo foi afetado pela poluição e uma análise genética posterior ajuda a mapear as famílias em cada rio. Depois, basta devolvê-lo à margem de que foi tirado.

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O monitoramento ajuda a preservar a espécie. Estima-se que haja entre 10 mil e 100 mil ornitorrincos na costa leste da Austrália, ameaçados não só pela poluição, mas pelas barragens que modificam os rios que eles habitam. “A Austrália é o país com mais represas no mundo”, diz Bino.

A entrada da toca, construída pela fêmea, fica próxima ao nível da água, às margens do rio. Quando os filhotes estão a caminho, ela passa quatro ou cinco dias reformando a casa. (Evandro Bertol/Superinteressante)

Perigos à parte, o ornitorrinco sobreviveu à colonização e virou ícone nacional. Está no dólar australiano e em placas de trânsito que indicam sua travessia. Perry, um ornitorrinco detetive, estrela o cartoon Phineas e Ferb.

Mesmo com a fama, ele continua recluso, e só cria filhotes em condições difíceis de reproduzir em zoos.

“Já participei da criação de ornitorrincos em cativeiro, mas nunca vi um ovo ou mesmo um recém-nascido”, conta a bióloga Margaret Hawkins, especialista na reprodução do animal.

Hoje, o ornitorrinco tem sua própria classificação biológica: ele divide com a equidna, também exclusiva da Oceania, a ordem dos monotremados (mamíferos que põem ovos). Eles foram as primeiras espécies a se separarem do ramo principal dos mamíferos na árvore da vida – isso se explica pelos ovos e por outras características de répteis.

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“Os monotremados não estão em risco de extinção, mas a população está diminuindo”, afirma o geneticista Frank Gutzer, da Universidade de Adelaide. “Precisamos tomar cuidado com seu futuro em um país tão seco. Sua posição evolutiva e a biologia fora de série tornam fascinante o trabalho com esses animais”, completa. Um brinde a esse ilustre desconhecido que revelaremos melhor abaixo.

Bicho estranho com jeito esquisito

Pelo isolante térmico, glândulas de veneno, radar no bico e pênis bifurcado. O ornitorrinco tem um pouco de réptil, de mamífero e até de tubarão em sua receita – e mais uma porção de características exclusivas.

(Lambuja/Superinteressante)

1. Bico
Flexível e com textura de couro, é o órgão mais sensível. Ele contém 60 mil receptores e tato, que detectam diferenças de pressão na água, e 40 mil glândulas mucosas, que identificam presas por meio de sinais elétricos emitidos por elas. Ou seja, o bico é o guia do bicho nas longas sessões de caça, que duram 12 horas – um ornitorrinco come entre 13% e 28% de seu peso diariamente.

2. Cérebro
A porcentagem do cérebro associada à visão é menor que a média dos mamíferos. O grande foco dele é mesmo o tato/recepção de eletricidade, que ocupa mais espaço cerebral que a visão ou o olfato.

3. “Olhouvido”
Os ouvidos têm 4 cm de profundidade e ficam embutidos no mesmo sulco dos olhos. Quando submersos, eles ficam selados. Ou seja, embaixo d’água – cego e quase surdo – ele usa o bico como GPS.

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4. Pelo
O pelo impermeável, em duas camadas, forma um bolsão de ar que auxilia o isolamento térmico – a temperatura média do ornitorrinco é 32 oC.

Caça e dieta

5. Placas de mastigação
Como perde os dentes na infância, usa duas placas rígidas de queratina para triturar a comida – composta essencialmente de: 71% larvas, 17% vermes, 12% camarões.

6. Estômago
Um estômago comum produz substâncias ácidas para digerir. A dieta do ornitorrinco, rica em itens antiácidos, fez o órgão ficar sem função.

Reprodução

7. Úteros
A fêmea tem dois, cada um associado a um ovário. Na hora da reprodução, só um deles produz ovos – o outro é atrofiado.

8. Ovos
A gestação dura 21 dias, com um a três ovos (de 17 mm de comprimento).Os filhotes demoram quatro meses para sair da toca e a amamentação termina um mês depois.

9. Cloaca
Assim como nas aves, é multifuncional – uma saída só para três sistemas: excretor, digestivo e reprodutor.

10. Glândulas mamárias
Elas secretam o leite por estruturas do abdômen chamadas auréolas. Como não há mamilos ou protuberâncias, o líquido escorre nos pelos.

(Evandro Bertol/Superinteressante)

Locomoção

11. Ombros
Ao contrário da maioria dos mamíferos, que tem quatro ossos na região dos ombros, o ornitorrinco tem cinco – anatomia típica de répteis. Isso explica seu caminhar desengonçado, rastejante.

12. Patas traseiras
Servem como leme, direcionando o bicho na água. Na parte de trás, o macho tem esporas [veja desenho acima] para autodefesa. Elas estão ligadas a glândulas produtoras de veneno. A substância não é letal para o ser humano, mas causa inchaço, dormência e dor intensa por até um mês.

13. Patas dianteiras
São arqueadas como as de répteis, mas a forma como os membros rodam nos “soquetes” é típica de mamíferos. Na água, o ornitorrinco usa as membranas para propulsão. Como elas são dobráveis, ficam viradas para baixo quando ele precisa usar as garras.

14. Rabo
Além de dar estabilidade ao nado, é um depósito de gordura - o rabo da fêmea cresce na gestação, e indivíduos de regiões frias têm rabos mais gordos. Sua pelagem é mais áspera, esparsa e fina, do que a do restante do corpo e, por isso, não isola tão bem o calor.

 

Fontes: Livros Platypus, de Tom Grant; Platypus: the Amazing Story of How a Curious Creature Baffled the World, de Ann Moyal; Biology of Monotremes, de Mervyn Griffiths; e História Geral dos Quadrúpedes, de Thomas Bewick.

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