Bota na conta da Copa – Como os estádios privatizam dinheiro público
Vou propor um passatempo. Veja onde está o erro aqui, neste trecho do discurso da Dilma: “Em relação à Copa, quero esclarecer que o dinheiro do governo federal gasto com as arenas é fruto de financiamento que será devidamente pago pelas empresas e os governos que estão explorando estes estádios. Jamais permitiria que esses recursos […]
Vou propor um passatempo. Veja onde está o erro aqui, neste trecho do discurso da Dilma:
“Em relação à Copa, quero esclarecer que o dinheiro do governo federal gasto com as arenas é fruto de financiamento que será devidamente pago pelas empresas e os governos que estão explorando estes estádios. Jamais permitiria que esses recursos saíssem do orçamento público federal, prejudicando setores prioritários como a Saúde e a Educação.”
Encontrou o erro? O problema ali é tratar “orçamento federal” e “governos” como coisas essencialmente diferentes. Claro, elas até são diferentes. Mas para nós, aqui no chão da fábrica, é tudo a mesma coisa: não interessa se quem está gastando o dinheiro é o governo federal ou o estadual. O que interessa é que a grana saiu daqui, da fábrica de dinheiro que alimenta o Estado, via impostos. Essa fábrica onde a gente trabalha 5 meses por ano (o tempo do nosso trabalho que vai exclusivamente pro pagamento de tributos – sejam federais, estaduais, municipais ou para a Rainha de Copas do País das Maravilhas, já que imposto é sempre imposto).
Bom, os financiamentos que a Dilma falou vêm do BNDES. O banco estatal se comprometeu a emprestar até R$ 400 milhões para cada estádio – fosse para governos ou para empresas. Dos 12 estádios da Copa, só o Beira Rio foi recauchutado com dinheiro 100% privado. Em todos os outros casos, o governo emprestou para o governo. Tirou uma dívida de um bolso e colocou no outro.
Para simplificar as coisas aqui, vamos focar no caso de um estádio só: o Maracanã. O governo do Rio levantou os R$ 400 milhões que lhe cabiam com o BNDES. E vai pagar direitinho, por que a garantia do empréstimo é o dinheiro dos próprios impostos que o Rio tem a receber no futuro. Ou seja: ou o governo paga com os impostos ou, se não tiver outro jeito, paga com os impostos. E o único jeito de isso não causar prejuízos a “setores prioritários, como a saúde e a educação” é se o governo fluminense tirar esses R$ 400 milhões da verba de champagne do Palácio. E não deve tirar, porque abrir champagne é importante na hora de comemorar metas cumpridas, objetivos conquistados.
Uma dessas metas cumpridas, objetivo conquistado, foi justamente vender o Maracanã a uma empresa – no caso, o consórcio “Maracanã SA”, formado pela Odebrecht, pela promotora de eventos AEG (dona do Staples Center, o ginásio dos Lakers) e pela IMX (a empresa de eventos do Eike, sócia do Rock in Rio). Mas ok: nada contra privatizações. O problema é privatizar por pouco dinheiro.
A conta da reforma ficou em R$ 1,2 bilhão. Tudo pago, ou a ser pago, com dinheiro público. Bom, o consórcio levou o estádio por R$ 181,5 milhões. Cento e oitenta e um milhões que vão ser pagos em mais prestações do que liquidificador das Casas Bahia: 33 parcelas anuais de R$ 5,8 milhões.
Quando Eike emprestou o jatinho para o Sérgio Cabral, governador do Rio, retrucou dizendo no Twitter que “não tinha contratos com o governo”. Agora tem.
Bom, o outro lado dessa história é que o governo deixa de ter de gastar R$ 43 milhões por ano com a manutenção do estádio, mais meio bilhão nas reformas necessárias para a Olimpíada, além de não correr o risco de o Maracanã só dar prejuízo daqui para a frente. Além disso, a proposta da Maracanã SA era mais alta que a do consórcio que concorria com ela (OAS + Stadion Amsterdam N.V. + Lagardère Unlimited). Mas nada disso cobre os 1,2 bilhão que já foram embora.
Num mundo perfeito, privatizariam o estádio antes da reforma. E quem esperasse lucrar com ele século 21 afora que pagasse a conta. Mas não. Você pagou a conta. E se você não mora no Rio, pagou alguma conta também. Basta que more em qualquer Estado com estádio para a Copa – mesmo no Rio Grande do Sul, já que a empresa que assumiu a reforma lá não vai precisar pagar os impostos federais da obra. Impostos que, num mundo perfeito, poderiam ter ido para “setores prioritários, como a saúde e a educação”. As áreas que a presidente “jamais permitiria” tocar.
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PS 1. Para quem gosta do assunto, sugiro seguir o Facebook do professor de contabilidade Paulo Henrique Feijó, superintendente da Secretaria da Fazenda do RJ, e que levantou a bola desta discussão toda na página dele.
PS2. O último texto do Denis Burgierman complementa bem este aqui. E vice-versa.
Crédito da foto do Maracanã: Leandro Neumann Ciuffo, Creative Commons