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Alexandre Versignassi

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Blog do diretor de redação da SUPER e autor do livro "Crash - Uma Breve História da Economia", finalista do Prêmio Jabuti.

Caso Uber: a culpa não é dos taxistas. É do feudalismo.

É medieval. Se você quiser largar seu emprego hoje para virar dono de táxi, não pode. Não pelas vias legais. Para ser dono de táxi, você precisa de uma licença da prefeitura. Um “alvará”. Só que as prefeituras não têm emitido alvarás. Em São Paulo, onde o que não falta é passageiro, a posição oficial […]

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 21 dez 2016, 09h48 - Publicado em 25 ago 2015, 17h31

taxis

É medieval. Se você quiser largar seu emprego hoje para virar dono de táxi, não pode. Não pelas vias legais. Para ser dono de táxi, você precisa de uma licença da prefeitura. Um “alvará”. Só que as prefeituras não têm emitido alvarás. Em São Paulo, onde o que não falta é passageiro, a posição oficial é imperiosa: “A prefeitura entende que a cidade tem a quantidade de licenças adequada à demanda da população”.

Dá para negar? Dá. Os usuários que abraçaram o Uber provaram que existe, sim, demanda por mais táxis – ou por táxis melhores. São Paulo, Rio, BH e Brasília, as cidades onde o Uber opera, se viram do dia para a noite com muito mais “taxistas” – entre aspas, já que os motoristas do Uber não dependem de alvará. Eles só se inscrevem no Uber, têm os antecedentes criminais checados e, se tudo estiver ok, os carros deles passam a aparecer no aplicativo do serviço.

Para chegar chamando atenção, o Uber estreou no Brasil em 2014 exclusivamente na versão gourmet, a “UberBlack”, que só aceita inscrições de sedãs seminovos com ar e banco de couro. Os motoristas também parecem selecionados a dedo. É difícil achar um que não trate os passageiros com a graciosidade de um mordomo britânico. E tudo isso custa só um pouco mais do que um táxi em Bandeira 1, um pouco menos do que uma Bandeira 2, mesmo à noite. É classe executiva a preço de econômica. Até por isso o Uber vem dando certo em 58 países.

Só tem uma coisa. Os carros do Uber são tão ilegais quanto as vans clandestinas de lotação – até por isso começaram a tramitar projetos de lei para banir o serviço. Quem manda no transporte público, afinal, é o governo.

Mas é aí que mora o problema. Para conseguir uma placa de táxi em São Paulo sem ferir a lei, só se você viajar no tempo e voltar para 2011, quando a prefeitura liberou suas últimas 1.200 licenças, elevando para 34 mil o número de taxis na cidade.

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A concorrência em 2011 foi nível Federal de Medicina: 23 candidatos por vaga. Só que a prova não era por mérito. Nunca foi. A prefeitura sorteia os alvarás com base nos números da loteria federal. Uma vez sorteado, o motorista fica com o alvará para sempre.
Se ele resolver pendurar o taxímetro um dia, pode passar a licença para um filho. Na falta de herdeiros, não precisa devolver para a prefeitura: ele pode doar para algum conhecido. Vender para engordar a aposentadoria? Não. Não pode. A prefeitura avisa que “o comércio de alvará é punido com a cassação da licença”.

Mas tem lei que pega e lei que não pega. Essa proibição não pegou, e o comércio de alvarás rola solto: “A prefeitura autoriza transferir. Como dinheiro não fala, eu coloco ele no bolso e transfiro”, disse  o presidente do Sindicato dos Taxistas Autônomos de São Paulo, Natalício Bezerra Silva, numa entrevista para a Folha em 2013.

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É lógico. Não tem como impedir o comércio de algo que tenha um valor tão descaradamente óbvio. Se as vagas de editor da Super fossem definidas por sorteio, eu garanto que venderia a minha quando estivesse na bica de me aposentar, mesmo que a pena prevista fosse a prisão perpétua. Vale o risco.

Quem compra o alvará de um taxista leva junto o direito de estacionar num determinado ponto (que também foi definido lá atrás em algum sorteio). Logo, um alvará que traga de carona uma vaga no Aeroporto de Congonhas pode custar R$ 300 mil. Uma licença qualquer, pelo menos R$ 100 mil – o mesmo tanto que você gastaria comprando um carro bom o bastante para fazer parte da frota do Uber.

Aí é claro que os taxistas acabam partindo para a porrada. Se a prefeitura vai e resolve legalizar o Uber de uma vez, sem limite nenhum, a roleta do cara que pagou 100 contos para virar taxista cai no “Perde Tudo”. E nem adianta o sujeito ir reclamar na Justiça, já que, oficialmente, ele nunca pagou nada pelo alvará.

Isso não é capitalismo: é um sistema feudal. Um fóssil econômico da Idade Média que continua vivo, no meio da rua. E esse protecionismo maluco nem é um problema exclusivamente brasileiro. Funciona mais ou menos assim no mundo todo.

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Só que o protecionismo não existe à toa também. A coisa começou em Nova York, na ressaca da Crise de 1929. Quando bateu a Grande Depressão, uma turba de desempregados resolveu virar taxista, na falta de alternativa melhor. De uma hora para a outra, a frota chegou a 30 mil carros. É quase o que São Paulo tem hoje, mil anos depois. Resultado: com o excesso de oferta, o preço das corridas caiu além da linha vermelha. O sujeito podia trabalhar 20 horas por dia e não conseguir o mínimo para se manter. O sistema todo perigava entrar em colapso, já que os taxistas não podiam mais pagar nem pela manutenção dos próprios carros. Em 1937, então, o prefeito Fiorello La Guardia (o do aeroporto) decidiu limitar o número de taxistas, criando o sistema de alvarás as we know it. A frota diminuiu para 12 mil. E as coisas entraram nos eixos.

Por outro lado, exageraram na dose. Até 2011, Nova York ainda tinha só 13 mil táxis. Até por isso o Uber entrou na cidade esmerilhando: em quatro anos, colocaram 12 mil carros na praça. Isso fez a prefeitura de NY abrir o olho e estrear uma nova modalidade de alvará, em 2013: a dos táxis verdes, autorizados a operar só na periferia. O objetivo é chegar a 18 mil verdes em 2016, totalizando 40 mil táxis. A novidade tornou o sistema de licenças menos medieval, olha só. O Uber? Bom, a ideia do governo lá era instituir um limite na quantidade de carros deles. Mas deixaram quieto por enquanto, em troca de a empresa passar informações sobre a realidade da demanda por táxis em NY.

Uma iniciativa dessas seria bem-vinda por aqui. A própria legalização do Uber não seria um bicho de sete cabeças. É que não existem só taxistas autônomos. Há empresas também. A lei permite que um empreendedor tenha centenas de alvarás sob um único CNPJ, e contrate motoristas. Então basta que as nossas prefeituras tratem o Uber como uma empresa de táxi qualquer. Se a de São Paulo soltar, sei lá, mil alvarás para o Uber, a frota da cidade vai aumentar em 3% – um trisco no mercado dos taxistas tradicionais, e um ganho notório para a população.

E as prefeituras também poderiam aproveitar o embalo e exterminar outro anacronismo do mundo dos táxis. Primeiro, legalizar de cara o comércio de alvarás, como acontece nos EUA, pelo simples fato de que esse comércio existe, e não vai deixar de existir enquanto o sistema não mudar – e quem faz uma compra dessas precisa estar tão protegido pela lei quanto quem compra um imóvel. E aí, num segundo momento, que mudem de vez o sistema. Que as prefeituras troquem os sorteios de licenças por concursos, licitações ou seja lá o que for – uma empresa não escolhe seus prestadores de serviço por sorteio; por que uma cidade deveria?

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