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Alexandre Versignassi

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Blog do diretor de redação da SUPER e autor do livro "Crash - Uma Breve História da Economia", finalista do Prêmio Jabuti.

Jesus foi mesmo um refugiado?

A tradição cristã fala da fuga de José e Maria para o Egito. Essa narrativa, porém, só existe para aproximar a figura de Jesus da de Moisés.

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
31 jul 2018, 13h44

O assunto esquentou depois do Roda Viva de ontem, 31/07. Bernardo Mello Franco, colunista do O Globo, perguntou ao entrevistado, Jair Bolsonaro, se o deputado sabia que “Jesus tinha sido um refugiado” – dado que o candidato é ao mesmo tempo cristão e contra qualquer política que permita o assentamento de refugiados no Brasil.

Mas e aí? A afirmação de Bernardo faz sentido? Vamos lá. Existem histórias de Cristo. Uma é a mitológica. Outra é a histórica, que busca estudar quem de fato foi Jesus de Nazaré, eliminando qualquer narrativa sobrenatural – não existe outra forma de estudar história; se a mitologia entrasse na conta, teríamos de acreditar que existiam dragões na Europa medieval.

Bom, o episódio em que Jesus aparece como “refugiado” faz parte da mitologia cristã. Ela consta em apenas um dos quatro Evangelhos, o de Mateus. E diz o seguinte: os três reis magos visitam Herodes, rei da Judeia, e perguntam onde estaria o Messias, que acabara de nascer. Ao saber que o Filho de Deus em pessoa tinha nascido em seus domínios, Herodes se sentiu ameaçado. Como não sabia quem era o Messias, ordenou a morte de todos os recém-nascidos, para garantir.

Em meio ao massacre, José e Maria fugiram para o Egito. E por lá ficaram. Só retornariam para os domínios judaicos depois da morte de Herodes – o evangelho não especifica quanto tempo eles teriam passado na nação vizinha.

A lógica de quem usa essa narrativa é clara: se o Egito tivesse barrado a entrada de José e Maria, Jesus estaria morto. Logo, não faz sentido ser cristão e, ao mesmo tempo, contra a ideia de abraçar refugiados estrangeiros.

A intenção, enfim, é boa. Por outro lado, ela mistura o alho da geopolítica com o bugalho de uma narrativa completamente mitológica, cercada de tanto elementos sobrenaturais quanto um episódio de Game of Thrones – a começar pela ideia de que Herodes, um personagem que realmente existiu, teria mandado matar todos os recém-nascidos dos seus domínios após ouvir três astrólogos (os “reis magos” – elementos místicos que, tal como a fuga para o Egito, também aparecem só no Evangelho de Mateus).

O consenso entre os estudiosos da Bíblia é que a fuga para o Egito está no Evangelho de Mateus para aproximar a história de Jesus com a do herói máximo do judaísmo, Moisés – lembre-se: o cristianismo nasceu não como uma religião independente, mas como uma dissidência do judaísmo. Moisés tinha vindo do Egito. O evangelista, então, achou por bem criar uma história em que Jesus também tinha vindo do Egito.

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Outra narrativa evangélica tem um propósito parecido: a do nascimento em Belém. O Evangelho de Marcos, o mais antigo, escrito cerca de 30 anos após a morte de Jesus, começa com Cristo já adulto. Não diz nada sobre seu nascimento, muito menos fuga para o Egito. Fala apenas que o Messias veio de Nazaré, um vilarejo na Galileia. Mateus e Lucas, escritos décadas depois do de Marcos, incluem as narrativas da natividade em Belém. O consenso aí é que se trata de uma tentativa de aproximar o mito de Jesus do segundo maior herói judaico, o rei Davi – que, de acordo com as escrituras hebraicas, nasceu em Belém.

Sobre o Jesus histórico, pouco se sabe. O que os historiadores interessados fazem é interpretar os evangelhos sob a navalha de Occam – ou seja, dando mais crédito para as histórias menos sobrenaturais, mais antigas, e menos glamourosas. Sob esse critério, temos que Jesus nasceu em Nazaré, a 170 km de Belém, e passou a fase adulta nos arredores do Mar da Galileia – pertinho de sua cidade natal. E morreu crucificado em Jerusalém (vizinha de Belém), por atentar contra a ordem pública durante as celebrações do Pessach, a Páscoa original, judaica.

Em suma: o Jesus histórico nunca foi um refugiado, até onde sabemos. O Jesus mitológico, por outro lado, foi uma espécie de refugiado. Mesmo assim, o ato de mesclar histórias religiosas com geopolítica é um flete perigoso com o obscurantismo. Quando apelamos para mitos, afinal, podemos justificar qualquer coisa – seja algo intrinsecamente bom, como o acolhimento de refugiados, seja uma barbaridade, como tantas as que a humanidade cometeu em nome dos mitos que criou.  

 

 

 

 

    

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