Manifesto contra o textão
Quero deixar claro o meu repúdio ao textão. Primeiro, porque você provavelmente está lendo isso num celular. Talvez enquanto dirige um carro. E não dá para dirigir dando os scrolls cuidadosos que um textão demanda. Na primeira distração, tipo um caminhão freando na sua frente porque o farol teimou em ficar vermelho enquanto você lia, […]
Quero deixar claro o meu repúdio ao textão. Primeiro, porque você provavelmente está lendo isso num celular. Talvez enquanto dirige um carro. E não dá para dirigir dando os scrolls cuidadosos que um textão demanda. Na primeira distração, tipo um caminhão freando na sua frente porque o farol teimou em ficar vermelho enquanto você lia, você vai perder o fio da meada. Ou a vida. E eu acabo com um leitor a menos. Mau negócio pra nós dois.
O problema do textão nem é de hoje. Começou na Mesopotâmia. Os sumérios, que moravam por lá há 5 mil anos, inventaram a escrita. Mas não inventaram o textão. Eles só escreviam registros sucintos, direto ao ponto, tipo “Gilgamés roubou um bode de Enli. Decepamos a mão de Gilgamés”. Informação, sem embromação.
Mas eis que, lá por 2300 a.C. aparece uma moça: Enheduanna, filha de Sargon, o homem que mandava na Mesopotâmia. Além de princesa, Enheduanna era a sumo-sacerdotisa do Templo de Inanna – a deusa do amor daquelas bandas. A jovem sentou um dia e escreveu 153 linhas numa tábua de argila. Essa gravação sobreviveu por quatro mil anos e continua entre nós. É o trabalho autoral mais antigo que se tem notícia. Se não foi o primeiro da história da humanidade, certamente é um dos.
E dizia: “Acimbabbar virou o templo de ponta cabeça! Destruiu tudo. Eu mesma achava que ele fosse companheiro, e ele parecia mesmo ser. Mas percebi que Acimbabbar só se aproximou de mim por inveja. Inanna, vamos tirar esse homem do nosso caminho. Vamos acabar com ele. porque, realmente (…)”. E tome mais bronca contra o sujeito, com a princesa usando a deusa como amiga imaginária. Ou seja: o primeiro texto autoral da história é basicamente um textão. Um textão feminazi.
Depois piorou. Na Grécia de 700 e poucos a.C., os textões de cento e tantas linhas viraram trambolhos de milhares. Intermináveis. A primeira coisa que fizeram nessa linha, aliás, foi colocar no papiro todas as poesias e causos que os contadores de história recitavam em volta das fogueiras. Juntaram tudo e colocaram na forma de dois textões, que hoje conhecemos como “Ilíada” e “Odisseia”. De quebra, ainda colocaram uma assinatura falsa: “Homero”. Pois é: assinatura falsa sempre ajudou a dar credibilidade pra textão.
Tanto ajudou que, na mesma época dos textões homéricos, outro pessoal começou a produzir seus próprios textões com assinaturas fake. Eram os hebreus, o povo de Israel. Com o intuito de ganhar mais likes, vários autores israelitas assinavam seus textos com os nomes de heróis do seu folclore.
A série de cinco textões sobre a origem do mundo e o início da saga daquele povo, conhecido hoje como “Pentateuco”, ganhou a assinatura de um Moisés, um herói mitológico, como o Aquiles, da “Ilíada”. Em outro textão, os “Salmos”, puseram a assinatura de Davi, um líder militar que tinha vivido séculos antes da composição dos Salmos, e que já possuía aura de legendário. Esses dois textões, com outros 25, formariam mais tarde a Bíblia, o textão dos textões.
Moisés, Josué, Davi, Isaías e cia foram os Veríssimos e as Clarices Lispectors dos autores reais da Bíblia: emprestaram involuntariamente suas credibilidades para textões escritos por outras pessoas.
Mais tarde, porém, as assinaturas fake saíram um pouco de moda. Os autores dos textões, afinal, também tinham ego. Queriam os likes para eles mesmos. Era o caso de Platão, Aristóteles, Epicuro, Diógenes, Zenon. O bonde dos gregos postava textão ferozmente em seus rolos de papiro. Cada um mais desembasado que o outro. Aristóteles mesmo chegou a postar que certas pessoas “mereciam mesmo” ser escravas. E que as mulheres, além de mais “imaturas” que os homens, não eram nem mães biológicas dos seus filhos. Toda a “semente” da criança viria do pai. O útero seria apenas a terra onde essa semente se desenvolve. Machinho fascista da porra, o cara.
Lá por 300 a.C., veio a decadência pra valer. Na cidade mais importante do Egito, pegaram e fizeram um prédio só para guardar textão. Era a Biblioteca de Alexandria, que funcionava como um HD gigante, cheio de posts idiossincráticos.
A epidemia, então, foi tomando o planeta. O único momento em que a produção de textões deu uma baixada foi a Idade Média. Mas tal como um Aedes Aegypti, a praga do textão voltou das cinzas e para assombrar a humanidade.
Recuperaram os textões dos gregos (putz…), e até criaram uma máquina de reproduzir textões: a prensa de tipos móveis. Aí choveu caçador de like: Cervantes, Shakespeare, Descartes, Spinoza, Rousseau, Hobes, Locke, Dostoiévski…. Não bastasse esse bando de pré-blogueiro, começou um fla-flu insuportável. De um lado, os coxinhas dos infernos: Adam Smith, Hayeck, Friedman. Do outro, a petralhada desgracenta: Marx, Sartre, Hobsbawm.
E chegamos ao caos de hoje. A esse obscurantismo profundo causado por quatro mil anos de textões. Já deu. Você também quer acabar com essa palhaçada? Então faça como eu: não poste textão. Não compartilhe textão. Vamos colocar só foto de cachorro, imagem da nossa cara, gif de panda nessa porra. Porque a história está de prova: texto é coisa de quem não tem o que dizer.