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Alexandre Versignassi

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Blog do diretor de redação da SUPER e autor do livro "Crash - Uma Breve História da Economia", finalista do Prêmio Jabuti.

Pedro Álvares Cabral ganhou R$ 5 milhões para chefiar sua expedição

As grandes navegações foram empreitadas milionárias de um capitalismo nascente – e deram origem ao mercado financeiro como o conhecemos hoje.

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 5 set 2024, 09h08 - Publicado em 30 abr 2020, 12h20

Bartolomeo Marchionni tinha uma fortuna de R$ 500 milhões em dinheiro de hoje, e mantinha uma carteira de investimentos bem diversificada. Esse florentino radicado em Lisboa, além de ser dono de um banco em Florença, tinha negócios na costa da África: traficava marfim, ouro e populações escravizadas.

Depois ele entraria numa empreitada bem mais arriscada: virou o maior financiador privado da expedição de Pedro Álvares Cabral para a Índia. Você passou a infância ouvindo só um pedaço dessa aventura. Antes de tocar para a Ásia, a frota faria uma escala de duas semanas no lugar onde hoje fica Porto Seguro – atracaram no dia 21 de abril de 1500, no evento que fez com que este livro acabasse escrito em português, e não em espanhol ou holandês. Mas não ficaria só nisso. No caminho entre o litoral baiano e a Índia, a expedição ainda encontraria outra terra nova para os europeus, Madagascar, mas o descobridor oficial aí não foi Cabral, e sim Diogo Dias, capitão do único navio da frota que ancorou por lá.

Bom, mais do que uma expedição, aquilo ali era uma megacorporação. Cabral, o jovem CEO de 33 anos, tinha acertado um pagamento de 10 mil cruzados pela empreitada. Convertendo a moeda portuguesa da época para hoje, isso dá R$ 5 milhões.1 Seus diretores, os capitães dos outros doze navios, ganhavam R$ 40 mil por mês; e cada um dos 1.200 marinheiros, R$ 5 mil. Uma grande empresa, fundada com o objetivo de lucrar com um negócio que prometia ser o mais rentável da história até então: o comércio de temperos orientais sem intermediários.

Os temperos, ou especiarias, da Ásia já faziam parte da dieta dos europeus desde antes da fundação de Roma. Num mundo sem grandes opções de lazer, boa parte da diversão dos endinheirados era brincar com as explosões de sabor que o cravo, a canela, a noz-moscada e a pimenta-do-reino causam nas papilas gustativas.

E o pessoal ia fundo nisso. Enquanto Jesus fazia suas pregações na Galileia, o historiador Plínio temia pelo futuro do Império Romano. A elite, ele escreveu, estaria gastando todo o ouro de Roma em temperos do Oriente. Não era exagero. Nas palavras do historiador Frederic Rosengarten, : “os romanos foram os mais exagerados usuários de aromatizantes da história”. Faziam todo tipo de combinação não só na comida, mas também em vinhos e perfumes. Os mais excêntricos dormiam em travesseiros recheados de especiarias acreditando que a fragrância delas curava ressaca.2

Como notou Plínio, esses eram hábitos despudoradamente caros. As especiarias passavam por dezenas de intermediários no caminho entre sua terra natal, o Sul da Ásia, e a Europa. E o preço subia a cada vez que elas trocavam de mão. Os temperos podiam não valer seu peso em ouro, mas chegavam perto: quando os visigodos sitiaram Roma, em 408 d.C., disseram que deixariam a cidade em paz em troca de uma certa quantidade de ouro, prata… e especiarias.

Os temperos podiam não valer seu peso em ouro, mas chegavam perto: quando os visigodos sitiaram Roma, em 408 d.C., disseram que deixariam a cidade em paz em troca de uma certa quantidade de ouro, prata… e especiarias.

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Os romanos perderam seus travesseiros antirressaca para os invasores, e a Idade Média nublou os ares da Europa, mas o comércio intercontinental de especiarias seguiu firme. E do jeito que era antes: mercadores da Península Indiana enchiam barcos com cravo, canela, noz-moscada e pimenta-do-reino e velejavam até a Península Arábica para vender seu ouro em pó. De lá, os temperos iam em lombo de camelo até o Egito, onde eram revendidos para comerciantes do Mediterrâneo via porto de Alexandria.

A partir do século 14, porém, não era mais qualquer comerciante europeu que podia comprar especiarias ali. Os governantes do Egito tinham feito um acordo com Veneza, e dali em diante só os mercadores do ducado colocavam as mãos nos temperos. Você só ancorava em Alexandria se fosse veneziano.

Quem quisesse comprar especiarias, então, tinha de ir até Veneza e pagar o quanto esses intermediários cobrassem – não foi à toa que a cidade da Praça de São Marcos ficou bonita daquele jeito, nem que a peça de Shakespeare sobre um comerciante sem um pingo de caráter chame O mercador de Veneza.

O monopólio, na verdade, não era tão “mono” assim. Também chegavam especiarias por terra fora do eixo Egito–Veneza, principalmente via Constantinopla (atual Istambul). Só que em 1453 o Império Otomano invadiu e tomou o controle da cidade, fechando as portas desse comércio para os europeus.

Nisso, os mercadores de Veneza ficaram realmente com o mercado todo para eles. O governo egípcio percebeu logo a oportunidade e, assim que Constantinopla caiu, passou a cobrar 30% de imposto sobre o valor das especiarias que chegassem a seus portos. E o preço final na Europa, que já era alto, ficou obsceno. Uma saca de pimenta chegava a custar o equivalente a seis meses de aluguel de um cômodo no centro de Veneza (dezesseis ducados).

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Tão obsceno que encontrar um jeito de comprar especiarias direto dos indianos, sem intermediários, virou obsessão. A única forma seria descer pelo Atlântico, contornar a África inteira e entrar no oceano Índico. Só que lá no século 15 isso era equivalente a mandar uma expedição tripulada para Plutão. Ninguém tinha contornado a África antes, nem fazia ideia se isso era fisicamente viável. Mas a possibilidade de lucro era tão grande que insanidade mesmo seria não tentar. E Portugal saiu na frente na corrida pelo caminho das Índias.

Os portugueses, com vista privilegiada para o Atlântico e munidos de caravelas – seus incríveis barquinhos capazes de navegar contra o vento –, já tinham colonizado os arquipélagos dos Açores e da Madeira no começo do século 15. Nada mau se considerarmos que os dois ficam a quase mil quilômetros da costa europeia.

Os arquipélagos eram úteis como escala de abastecimento para expedições cada vez mais ao sul da costa africana. E as caravelas foram descendo, descendo… até que uma dessas frotas, a do capitão-mor Bartolomeu Dias, descobriu que, sim, uma hora a África acabava. Ao fazer a curva lá embaixo, em 1488, Bartolomeu sofreu com vários dias de tempestades – e batizou esse lugar onde a África dava cabo de “Cabo das Tormentas”, já que a pororoca oceânica do encontro do Atlântico com o Índico deixa as águas bem traiçoeiras por lá.

Mas o rei de Portugal, dom João II, preferiu renomeá-lo Cabo da Boa Esperança. Esperança de “meter as mãos na garganta de Veneza”, como diziam os nobres portugueses na época.

Bartolomeu Dias fez a curva, mas de lá voltou para Portugal − sua missão era só encontrar o fim da África mesmo. Dez anos depois, Vasco da Gama contornaria de vez o cabo. Sua expedição chegou a puxar mais de 10 mil quilômetros em mar aberto sem escalas, feito que entraria para o Guinness Book do século 15, caso o livro existisse.

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Depois de dez meses navegando, Vasco da Gama terminou em Calicute, o centro nervoso do comércio de especiarias, na costa oeste da Índia (não confunda com Calcutá, que fica do outro lado do subcontinente). Era a glória. O maior feito da humanidade até então. Mas o que os indianos viram foi outra coisa: um bando de mendigos aportando sujos e malvestidos no lugar mais importante do mundo.

Vasco da Gama levou roupas, jarros e mel para usar como moeda de troca. A corte do samorim (o chefe de Estado) de Calicute debochou.

Vasco levou roupas, jarros e mel para usar como moeda de troca. A corte do samorim (o chefe de Estado) de Calicute debochou. Disseram que ou eles traziam ouro e prata, ou não teria negócio. Mesmo assim, os portugueses não voltaram de mãos abanando. Os chapéus, as calças e o mel que levaram podiam não valer grande coisa em Calicute, mas as especiarias eram mais baratas ainda. Então conseguiram embarcar algumas sacas de pimenta, cravo, canela e gengibre. E levantaram as velas para encarar mais um ano de mar até Lisboa.

Não era uma viagem simples. Numa época sem geladeiras, só existiam dois jeitos de transportar a comida: ou com muito sal, ou conservada pelos próprios anticorpos da comida – ou seja, levar os animais vivos no barco e mantê-los assim até a hora de comer. Então gaiolas cheias de galinhas e coelhos iam amarradas nos mastros. Barris com camadas intercaladas de peixe seco e sal completavam o suprimento de proteína da tripulação. Depois dos primeiros meses, as galinhas e os coelhos já tinham acabado.

O jeito era se virar com os peixes – que os marinheiros lavavam com água salgada para deixar a carne menos salgada. Usar água doce para isso, nem pensar, já que o racionamento era de guerra. Ou pior. Se bem que chamar aquilo de água doce é eufemismo. Se deixar água destampada na geladeira já deixa ela com um sabor estranho, imagine o que acontece com a água repousada por meses num barco cheio de ratos.

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O jeito era misturar a água com vinho para dar uma desinfetada, deixar o líquido relativamente menos intragável e, claro, baixar o estresse. E bota estresse nisso. A tensão era de presídio. Os mais fracos tinham de amarrar bem as calças para evitar que acordassem estuprados. Não que a tática desse certo sempre. E havia as tempestades.

A tensão dentro das caravelas era de presídio. Os mais fracos tinham de amarrar bem as calças para evitar que acordassem estuprados. Não que a tática desse certo sempre. E havia as tempestades.

Desse jeito é até surpreendente que, depois de passar quase dois anos navegando, entre a ida e a volta, Vasco tenha conseguido voltar com dois dos quatro barcos que tinham saído de Portugal e 55 dos seus 170 homens.

Mesmo assim valeu. Não se sabe a quantidade exata de especiarias que o navegador trouxe. Mas o fato é que aquela saca de pimenta que custava 16 ducados em Veneza saía pelo equivalente a 2 ducados em Calicute. Um lucro de 700%.

Então foi Vasco voltar, em julho de 1499, para a Coroa portuguesa começar os preparativos para uma segunda expedição, agora portentosa, com treze navios e 1.200 homens. Lotada do ouro e da prata que o samorim queria em troca das especiarias. Isso mais uma porção de nobres para cuidar da parte diplomática e os melhores navegadores do reino – entre eles, o mesmo Bartolomeu Dias que tinha contornado o Cabo da Boa Esperança pela primeira vez. O problema é que tudo isso custava mais do que a Coroa podia pagar. Dom Manuel precisaria de ajuda. A própria expedição de Vasco da Gama contou com dinheiro privado. Mas essa era a maior empreitada que a Europa lançaria ao Atlântico. Sem o dinheiro de grandes investidores, as caravelas não teriam nem sido construídas. Aí entra Bartolomeo Marchionni, que, com outros banqueiros, ajudou a financiar a operação. Uma aposta de alto risco.

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Mas que funcionou. O maior efeito colateral da expedição – aportar no Brasil e garantir a posse destas terras aqui para Portugal – foi bom para Marchionni, que se tornaria um dos principais comerciantes de pau-brasil na Europa. Na Índia, a expedição acabou sendo um desastre diplomático. O samorim até recebeu bem a frota no começo. Autorizou Cabral a montar um forte e um armazém de especiarias em Calicute e tudo o mais.

O forte do nosso amigo Pedro Álvares, porém, sofreu um ataque – patrocinado por comerciantes árabes que vendiam as especiarias pela rota tradicional, via Egito, e que não estavam nada dispostos a perder terreno para os portugueses. Cabral reclamou com o samorim, mas o soberano lavou as mãos. O descobridor do Brasil mandou seus navios bombardearem Calicute em represália. Os indianos contra-atacaram, e Cabral teve de abandonar o forte e apressar sua volta – até para não sair da vida justo agora que tinha acabado de virar história…

Dos treze navios originais, só voltaram sete. E metade dos homens. Mesmo assim, ele chegou a Lisboa com setecentas toneladas de especiarias, a maior parte pimenta-do-reino. Foi o bastante para que a expedição desse lucro. Assim, mesmo com os problemas sérios de relacionamento entre Cabral e o samorim, agora não tinha mais volta: o comércio de especiarias sem intermediários era viável.

Bartolomeo Marchionni escreveu a seus amigos banqueiros de Florença contando que a empreitada tinha sido um sucesso. O dinheiro começou a fluir. Em 1502, Vasco da Gama partiria pela segunda vez para a Índia. Dessa vez com vinte navios e armado até a medula. Chegou chegando: mandou o samorim expulsar as 4 mil famílias de comerciantes árabes instaladas na região de Calicute. Era isso ou a cidade levava fogo de novo. O samorim pagou para ver. E levou fogo. Os árabes retaliaram, mandando trinta navios de guerra para cima da esquadra. Mas os canhões de Vasco falaram mais alto. Os portugueses massacraram os muçulmanos e conseguiram estabelecer um forte e um complexo de armazéns em Kochi, uma cidade próxima.

Vasco voltou a Portugal em 1503, com treze dos vinte navios (o que não era de todo mau para os padrões da época) e 1.700 toneladas de especiarias na bagagem. Era praticamente a mesma quantidade que Veneza importava do Oriente Médio por ano – só que a margem de lucro dos portugueses era estupidamente maior, na faixa de 700%, contra 50%, 60% dos venezianos, que pagavam bem mais caro pela mercadoria no Egito. Agora sim. O comércio de especiarias sem intermediários tinha virado realidade.

Vasco voltou a Portugal em 1503, com treze dos vinte navios e 1.700 toneladas de especiarias na bagagem. Era praticamente a mesma quantidade que Veneza importava do Oriente Médio por ano – só que a margem de lucro dos portugueses era estupidamente maior, na faixa de 700%.

Portugal mandaria 705 navios para o Oriente ao longo do século 16. Estabeleceria colônias firmes, como a de Goa, que se tornou um pedaço da Península Ibérica na Índia – tanto que falam português lá até hoje. E os negócios do país do outro lado do mundo acabariam indo muito além de levar tempero de rico para a Europa. Portugal começou a lucrar comprando e vendendo dentro da própria Ásia: levava ópio de Goa para a China – onde também fincou outra colônia próspera e até hoje lusófona, Macau. E revendia seda e porcelana chinesa em troca de ouro num lugar onde nenhum europeu jamais havia pisado, o Japão. Banzai.

Por sinal, a relação com os japoneses foi tão estreita que algumas palavras da nossa língua estão no idioma deles até hoje. A história mais manjada, a de que arigatô vem de “obrigado”, é lenda. Linguistas já concluíram que o “obrigado” deles é mais antigo que o encontro com os portugueses. Mas biidro (vidro), shabon (sabão), marumeru (marmelo), kirishtan (cristão) e outras dúzias de palavras estão aí para comprovar o laço.

Outra palavra que chegou lá por essa via foi Oranda (Holanda). Não por acaso: Portugal praticamente monopolizaria o comércio no Índico até o fim do século 16 – só a Espanha representava concorrência. Mas os holandeses logo descobririam uma arma letal. Tão poderosa que deixaria o resto do mundo à sua mercê. Uma arma sem pólvora, porém bem mais explosiva: o mercado de ações.

A união faz a bolsa

A bolsa de valores veio do pântano. Do pântano que a Holanda era há mil anos. Um quinto do território que o país tem hoje estava debaixo d’água, e o resto sofria com enchentes um ano sim e outro ano também. Natural: a Holanda fica encurralada entre o mar do Norte e a boca de dois rios gigantes, o Reno, que desce da Alemanha, e o Mosa, que chega da França. O delta dos dois se junta no leste dos Países Baixos, formando um labirinto de rios menores.

No que dependesse da natureza, não era para ninguém morar nessa região. E, fora uma meia dúzia de pescadores, ninguém morava mesmo. Mas essa foi a sorte grande do lugar que viria a ser chamado de Holanda: o feudalismo não fincou raízes por lá. Enquanto no resto da Europa os agricultores viviam em estado de semiescravidão, trabalhando para poucos e gordos latifundiários (também conhecidos como nobres), na encharcada Holanda muitos eram donos do próprio nariz: plantavam, pescavam, vendiam e compravam por conta própria.

Não que aquilo fosse uma comunidade hippie medieval. Havia também nobres, donos de propriedades maiores. Mas o modelo feudal de trabalhar na lavoura em troca de casa e comida não pegou. Boa parte do trabalho, afinal, era tirar a própria Holanda debaixo d’água para ter onde plantar e criar gado. Para tirar terras debaixo d’água ou afastar a ameaça constante de enchente nas partes secas, só com muito trabalho coletivo.

Os holandeses aprenderam a se unir para domar a natureza. Construíram represas, milhares de canais para drenar a água das terras aráveis e moinhos para bombear essas águas. Os nomes das maiores cidades da Holanda ecoam esse passado: Dam significa “represa”; Amsterdã é a represa do rio Amstel. Roterdã é a do rio Rotte… Os sobrenomes típicos dos Países Baixos também são molhados: Van Damme (“da represa”), Van Dijck (“do dique”). Os séculos de trabalho em equipe fixaram um caráter democrático e humanista na região. Um ditado deles ajuda a entender esse espírito: “Deus criou o mundo; os holandeses criaram a Holanda”.

Holanda
(SepiaTimes/Getty Images)

Numa cultura assim, em vez de feudos enormes, você tinha propriedades divididas entre os homens que ajudaram a tirá-las debaixo d’água. Em vez de trabalho em troca de comida, trabalho em troca de salário. O grande efeito colateral dessa prática era um comércio vivo. No resto da Europa, o dinheiro caía em desuso entre os mais pobres, já que ninguém tinha. Nos Países Baixos, não: a circulação de moeda bombava a economia.

Essa mistura de engenhosidade, trabalho coletivo e economia voltada para o comércio transformou o lugar numa ilha de capitalismo. E, quando o Renascimento começou a dar as caras no Velho Mundo, a Holanda já tinha largado na frente. Tudo acontecia em ritmo acelerado. A pesca, por exemplo, já era industrial nos anos 1500. Os holandeses tinham transformado seus barcos de pesca em fábricas. Eles eram projetados de modo que a tripulação pudesse pescar, limpar e estocar os peixes em barris de sal a bordo. Isso permitia que cada navio passasse dois meses em alto-mar pescando ininterruptamente, com tripulações de vinte a trinta homens. Em 1560, a Holanda tinha quatrocentos barcos-fábrica desses – a maior parte de propriedade de investidores urbanos.5

A criação de gado também era industrial. Apesar da imagem bucólica das vacas holandesas, o povo dos Países Baixos foi pioneiro na criação de gado confinado – em que o boi vive trancado num cubículo se entupindo de ração até ir para o corte. Péssimo negócio para o boi, mas ótimo para quem cria: eles engordam mais rápido, e a produtividade de carne bomba. A agricultura também entrou nessa onda: eles importavam grãos e deixavam a terra para culturas mais valiosas: cânhamo para as velas dos navios, lúpulo para as fábricas de cerveja, linho para os vestidos das mulheres – mais tarde viria o tabaco; e as tulipas.

Tudo isso transformou a Holanda de um pântano pegajoso em uma potência econômica. Em 1581, já era uma república – a primeira na Europa desde que Roma virou oficialmente uma ditadura, em 27 a.C. Em 1595, só Amsterdã já controlava um volume de comércio maior que o da Inglaterra e o da França juntas (mesmo tendo um PIB bem menor). Mas a hora da Holanda ainda não tinha chegado. O comércio mais lucrativo do mundo, àquela altura, estava nas mãos dos portugueses (e dos espanhóis, que tinham anexado Portugal em 1580). Só os ibéricos compravam especiarias direto na fonte para revender na Europa.

Naquela época, finalzinho do século 16, os holandeses já sabiam como navegar até o oceano Índico. É que outro produto de exportação do país eram marinheiros, calejados pela cultura pesqueira dos Países Baixos. Então, o que não faltava nos navios de Portugal eram holandeses. Um deles era conhecido em Lisboa como Arnaud de Hollanda, um sujeito nascido em Utrecht, ao sul de Amsterdã. O marinheiro participou de uma viagem portuguesa ao Brasil em 1525, fincou residência em Pernambuco e deu origem à família Buarque de Hollanda. Mas importante mesmo para a nossa história aqui foi um certo Jan Huygen van Linschoten – um cara tão fundamental para o que viria a ser o mercado financeiro do século 21 quanto o tata(…)tatataravô do Chico Buarque para o que viria a ser a MPB. Mas com uma participação mais ativa.

Jan Huygen passou nove anos fazendo a ponte marítima Portugal-Índia em navios lusitanos e, quando voltou para a terra natal, lançou um livro bombástico, contando tudo o que os portugueses tinham aprendido em quase um século de comércio com o Oriente: rotas de navegação, direção dos ventos, mapas dos melhores lugares para comprar especiarias, tabelas de preços dizendo quanto ouro levar para comprar tantos sacos de pimenta, cravo, canela ou noz-moscada… Só faltou encartar cupom de desconto e dar um GPS de brinde.

O livro, chamado Relato de uma viagem pelas navegações dos portugueses no Oriente, veio a público em 1596. Mal a obra tinha saído, e os holandeses começaram a içar velas para tentar a sorte no oceano Índico. Em 1600, já havia seis empresas na Holanda operando navios mercantes para a Índia – seis “Companhias das Índias”, como esse tipo de empreitada ficou registrada na história. O livro de Huygen, por sinal, também tinha chegado à Inglaterra, que também fundaria sua Companhia das Índias no ano 1600. Começava a corrida do tempero.

O maior problema nessa corrida, porém, era arranjar a gasolina – o dinheiro para financiar as expedições. A fórmula tradicional era a portuguesa: reunir banqueiros, levantar empréstimos, pedir ao rei… Mas, mesmo com as promessas de lucro pornográfico, não era tão simples achar gente disposta a correr o risco. Principalmente num país sem o know-how dos portugueses para grandes navegações. Dos 22 barcos que tinham saído da Holanda para o Oriente em 1598, só doze voltaram – índice de perda que Portugal já havia superado. Haja poder de persuasão para convencer investidores a arriscar seu ouro numa dessas.

A outra solução seria diminuir substancialmente o risco da empreitada. E foi o que eles conseguiram. Como? Chamando não apenas um ou dois megainvestidores para bancar a operação, mas centenas. Cada um daria um pouco de dinheiro em troca de um pouco do lucro, caso ele viesse mesmo. Desse jeito o negócio deixava de ser um tudo ou nada. Se a empreitada ao Oriente desse em água (literalmente, com os navios afundando), cada um perderia só um pouco. E bola para a frente. Se desse certo, todo mundo ganhava. Aí dá para conversar…

Ideia exótica para uma Europa que mal tinha saído da Idade Média, mas natural para um país que construiu seu caráter com base no esforço coletivo. Se o trabalho em equipe tinha escavado os canais e levantado os moinhos que literalmente tiraram o país do fundo do poço, agora o financiamento coletivo levaria os navios do país ao Índico.

A iniciativa partiu do governo holandês. A República uniu as seis Companhias das Índias do país, formou uma grande estatal e convidou a população a se tornar sócia. Vinha ao mundo a primeira megacorporação da história: a Vereenigde Nederlandsche Oostindische Compagnie (Companhia Unida Holandesa das Índias Orientais) – para não complicar, vamos fazer como os holandeses do século 17 e chamá-la pela sigla simplificada que eles criaram: VOC.

“Convidar a população para virar sócia” significava dividir a empresa em partes. Milhares de partes. E então vender os pedaços no mercado. Em que mercado? Construíram um em Amsterdã para comercializar as “partes” da VOC e deram o nome de bourse (bolsa).

Bolsa era a denominação que os holandeses davam aos lugares onde os comerciantes se reuniam para negociar. Por que chamavam isso de bolsa? Ninguém sabe. A lenda mais persistente é a de que mercadores do século 14 se reuniam em Bruges, na Bélgica, um centro comercial importante da época, e se hospedavam num certo Hôtel des Bourses (Hotel das Bolsas). E o nome foi se espalhando. Também existe uma hipótese mais simples. Pessoas carregavam moedas em bolsas, poxa. Era lógico que um lugar onde circulava muito dinheiro, como uma reunião de comerciantes, ganhasse esse nome – do mesmo jeito que os entrepostos comerciais de verduras em alguns lugares do Brasil ganharam o apelido de “sacolão”. Era o “bolsão”, então.

E a VOC foi para a bolsa. Exatamente 1.143 pessoas compraram partes da empresa. Em tamanhos variados. Oitenta indivíduos colocaram mais de R$ 350 mil em dinheiro de hoje (10 mil guildas no da época), mas boa parte era formada por pequenos investidores: 445 puseram mil guildas (R$ 35 mil) ou menos. Trabalho financeiro coletivo é isso aí.

Cada pedaço da VOC era chamado de “parte de uma ação”. “Ação” no sentido de empreitada, já que o dinheiro era para financiar empreitadas mesmo – expedições para a Índia atrás de pimenta, cravo e canela. Mas a palavra ficou – nas línguas latinas, pelo menos; os países anglófonos preferiram chamar a coisa só de “partes” mesmo (shares). E hoje as multinacionais brasileiras vendem shares em Nova York e ações no Brasil.

Somando todos os papéis que tinham ido à venda, a VOC arrecadou 6,5 milhões de guildas, ou R$ 340 milhões. Esse passou a ser o “valor de mercado” da empresa –, a soma do preço de todas as ações que ela tem no mercado.

Parece pouco para quem está acostumado aos números do mercado de hoje – anões da bolsa brasileira valem mais de R$ 3 bilhões, caso da Marcopolo, uma fabricante de carrocerias de ônibus. Mas estamos falando de um mundo bem menor. O PIB da Holanda em 1602 era de R$ 8,5 bilhões em dinheiro de 2019, o que equivale ao da cidade de Montes Claros, em Minas Gerais. E o PIB do planeta inteiro na época, estima-se, estava na faixa de R$ 1,3 trilhão, ou duas cidades de São Paulo.6

Hoje o PIB mundial é trezentas vezes maior. Lá atrás, o capital de 6,5 milhões de guildas da VOC já fazia dela, tranquilamente, a maior empresa do planeta – sua rival britânica, aquela fundada em 1600, valia quase dez vezes menos.

Como a Companhia das Índias Orientais explica a Petrobras

As ações da VOC faziam o que ações fazem: davam direito a uma parcela dos lucros da companhia. Se você tivesse colocado mil guildas ali, poderia embolsar 0,00015% de todo o dinheiro que a empresa fizesse com suas viagens nos anos seguintes – esse seria o seu dividendo, a grana que lhe cabia. Estava agendado um pagamento de dividendos em 1603, outro em 1605 e mais dois, em 1607 e 1608. Só tinha uma coisa: não dava para saber quais seriam os lucros – ou se haveria algum lucro. Ou se algum navio voltaria mesmo das viagens.

Pior: você colocou suas guildas no negócio quando estava solteiro e, agora, em 1603, está casado, com um par de gêmeos para criar, e nada de os barcos voltarem. O que você faz? Bom, você podia ir até a Bolsa de Amsterdã e vender suas ações da companhia. Elas não eram pessoais e intransferíveis, mas papéis ao portador. Se a necessidade batesse, dava para passá-las para a frente e vender o direito à sua parte dos lucros para outra pessoa a fim de encarar o risco.

Os anos foram passando, e não veio dividendo algum. A VOC tinha gastado mais da metade do capital com a construção de 22 navios, e outras centenas de milhares de guildas para adquirir os metais preciosos de que precisava para trocar por especiarias do outro lado do mundo. A competição com os portugueses e os espanhóis também não ajudava. E era competição no melhor sentido da palavra: a Holanda estava em guerra com a Espanha desde 1568 – e continuaria assim até 1648. Até por isso qualquer navio mercante carregava canhões. Qualquer encontro no mar entre Holanda e Espanha terminaria em um embate sanguinário.

Um caso típico: barcos holandeses capturaram galeões espanhóis em 1605, no Canal da Mancha. O almirante holandês, em vez de fazer prisioneiros, afogou todos os tripulantes, amarrados um a um. Ninguém perdia tempo.

Por essas, a VOC estava fazendo mais dinheiro saqueando navios espanhóis do que com o comércio propriamente dito. Mas não conseguia montar fortes e entrepostos comerciais no Oriente – os inimigos da Península Ibérica, que já estavam bem estruturados na região, não deixavam. E sem essa infraestrutura não dava para garantir um comércio constante: uma hora os navios voltavam bem fornidos, outra hora não voltava navio nenhum.

Isso gerou um clima de especulação na Bolsa de Amsterdã. Quando apareciam boatos de que navios da VOC tinham afundado, um monte de gente que tinha colocado suas suadas mil guildas nas ações queria mais era se desfazer delas a esperar por um lucro que, provavelmente, nunca viria. Aí o jeito era vender para o primeiro otário mal informado que aparecesse: “Sabe como é, minha mulher teve gêmeos… Não queria mesmo. Mas vou ter de vender essa maravilha de ações. Vamos lá, só 900 guildas…”. Em suma, com muita gente querendo vender, o preço da ação caía.

Quando o boato era de que os navios estavam voltando carregados de especiarias, a conversa era outra, claro. Otário, agora, era quem não comprasse. E mal informado era quem vendesse: “Essas ações são uma roubada, né? Mas eu quero te ajudar, amigo. Compro as suas por 1.010 guildas. Sabe como é. Só fico feliz quando ajudo as pessoas…”. E o preço da ação subia.

Em 1607, um terço das ações da VOC tinha trocado de mãos na bolsa. Ou seja: bastou surgirem as ações para que aparecesse o mercado de ações –, aquele em que as pessoas compram e vendem papéis todos os dias. Esse mercado, diga-se, sempre foi mais guiado pela psicologia do que pela economia: um sinal de que a empresa ia se dar bem, e os preços bombavam; uma desconfiança, de leve, e o valor dos papéis ia para o buraco.

Não mudou nada de lá para cá: em 2011, por exemplo, uma onda de turbulências nos países árabes fez o preço do petróleo subir 25% em um mês – um evento raro. No mesmo período, as ações da OGX, a petroleira de Eike Batista, subiram exatamente 25%. Detalhe: a OGX nunca tinha produzido uma gota de petróleo. Ninguém sabia se um dia ela produziria para valer – coisa que até acabou acontecendo anos depois, mas em volumes pífios. Mas beleza: lá atrás, em 2011, só a esperança de que os eventuais lucros da empresa no futuro seriam mais gordos por conta da possibilidade de um eventual barril de petróleo mais caro no futuro foi o bastante para chover compradores para a petroleira do Eike, e jogar o preço da ação dela lá em cima. Parece insano, é insano, mas o mercado funciona assim.

Ainda bem. Porque, se não há a esperança de que ações deem lucro e subam de preço, não existe mercado de ações. E, sem mercado de ações, as grandes empresas ficariam amarradas – seria bem mais difícil levantar dinheiro para operações caras. Isso valeu para a VOC lançar seus barcos de madeira em alto-mar no século 17. E valeu para a Petrobras lançar suas brocas mar abaixo no século 21. A exploração do pré-sal seria inviável se dependesse do dinheiro que a empresa tinha em caixa e de empréstimos bancários. A companhia teria de esperar sentada pelos bilhões que precisasse para investir. Então ela agiu como os holandeses de 1602: foi atrás de microssócios.

Bem mais microssócios, na verdade. A Petrobras já tinha ações no mercado desde 1953, quando fora fundada por Getúlio Vargas. Até 2010, a empresa estava dividida em 9 bilhões de ações (tendo o governo como acionista principal, por isso ela sempre foi uma estatal, mesmo tendo sócios privados).

Quem tinha uma ação da Petrobras, então, era dono de 0,11 bilionésimo da companhia – bom, como as ações hoje geralmente são comercializadas em lotes de cem, o normal é que os menores acionistas tenham pelo menos uma centena de papéis de qualquer empresa; então vamos ser realistas: quem tinha um lote de 100 ações da Petrobras era dono de 11 bilionésimos dela. Então tinha direito a uma parcela equivalente dos lucros da empresa. Se a Petrobras desse R$ 20 bilhões de lucro no ano, cada proprietário de cem ações podia ficar com até R$ 220 em dividendos (“até” R$ 220 porque a empresa não é obrigada a converter todo o seu lucro para os acionistas – ela pode pegar a maior parte do que ganhou no ano e reinvestir na companhia; e é o que basicamente toda empresa faz).

Aí a Petrobras se viu com o pré-sal pela frente. Precisaria gastar algo na faixa de R$ 400 bilhões para explorar essas reservas. Era dinheiro demais para arranjar emprestado com bancos. O jeito, então, foi partir para a solução que os holandeses tinham criado: a bolsa.

A Petrobras lançou 3,75 bilhões de ações novas no mercado em 2010. Esses papéis extras dividiram a empresa em mais partes do que antes. Se lá atrás eram pouco mais de 9 bilhões, agora eram 13 bilhões. Quem já tinha papéis da empresa viu sua participação diminuir. Um lote de 100 dava direito a 11 bilionésimos do lucro da companhia, certo? Agora dava só 8 bilionésimos – se a empresa lucrasse R$ 20 bilhões de novo, você, pequeno acionista, ficaria com, no máximo, R$ 160.

Na prática era como se uma nova empresa estivesse abrindo as portas: uma companhia com 13 bilhões de ações – sendo que apenas 9 bilhões delas já tinham donos (os acionistas antigos). O resto estava à venda no mercado para quem quisesse entrar como sócio.

Que vantagem Maria leva em comprar ações de uma empresa que tinha acabado de se diluir? A seguinte: a Petrobras esperava aumentar os lucros. Em 2010, ela produzia 2 milhões de barris por dia. A expectativa, com o pré-sal, era de que a produção dobrasse até o fim da década.

Um lote de 100 ações da Petrobras dava direito a 11 bilionésimos do lucro da companhia. Depois da emissão de novas ações, essa fração baixou para 8 bilionésimos.

Isso significaria dobrar o lucro, claro. Então os 8 bilionésimos da “nova Petrobras” dariam automaticamente direito a mais dividendos que os da velha – R$ 320 contra R$ 220, usando os números do nosso exemplo. Isso na hipótese de que tudo desse certo. Não deu – o fim da década chegou, e a Petrobras segue produzindo os mesmos 2 milhões de barris de antes.

Mas lá atrás não faltou gente que acreditasse na promessa de lucro dobrado. Se a venda de ações da VOC foi a primeira da história, a da Petrobras, em 2010, foi a maior do mundo em todos os tempos. A venda dos 3,75 bilhões de ações rendeu R$ 120 bilhões ao caixa da empresa numa tacada só – o segundo maior lançamento de ações foi o do Banco Agrícola da China, um gigante de 441 mil funcionários (contra 390 mil da Petrobras), também em 2010: R$ 36 bilhões em valores da época. Só.

Claro que, como sempre acontece num lançamento de ações, todo mundo que entra está topando o risco de ver seu dinheiro evaporar. O banco chinês pode falir, o petróleo pode baixar a ponto de não fazer sentido gastar meio trilhão de reais para perfurar o pré-sal… E os barcos da VOC podiam afundar.

Vale a pena gente comum, como eu e você, encarar esse tipo de risco, então? Para quem tinha papéis da VOC, valeu. A Companhia Holandesa das Índias Orientais conseguiu driblar os portugueses e os espanhóis, passando batido pela Índia, e fincando seus postos comerciais mais a leste, na Indonésia. A primeira conquista da VOC na região foi o arquipélago de Banda, um paraíso com ilhotas cheias de especiarias despontando num mar azul-turquesa daqueles de derreter os olhos. Não que a eventual comoção dos holandeses com a beleza do lugar tenha durado muito. Os moradores de Banda obviamente não acharam a melhor ideia do mundo virar colônia de um bando de ruivos vindos de Marte, e reagiram à invasão.

Mas o contra-ataque da VOC foi fulminante. Jan Pieterszoon Coen, capitão de navio e diretor da companhia, promoveu uma carnificina nas ilhas para mostrar quem mandava. Fez o nome “Oranda” ficar conhecido no Japão ao contratar tropas de mercenários nipônicos para torturar e matar bandaneses. Decapitou líderes da resistência bandanesa e exibiu as cabeças em postes. Quando a VOC chegou para fazer negócios em Banda, o arquipélago tinha 15 mil habitantes. Depois de quinze anos, eram apenas seiscentos. Mas não tinha outro jeito. Para ser um grande executivo no século 17, você precisava ser um grande executor. De pessoas.

Para um psicopata como Jan Pieterszoon Coen, o mundo empresarial era um prato cheio – e continua sendo, por sinal: hoje a proporção de psicopatas entre os executivos de empresas é quatro vezes maior do que entre a população em geral (4% contra 1%). Não ter dó dos outros ajuda a massacrar a concorrência. É do jogo.

Ruim para os bandaneses, bom para os acionistas da VOC. A companhia se mostrou um baita investimento. Depois de garantir a Indonésia, os holandeses conquistaram algumas posições dos portugueses na Índia e foram ganhando terreno até que a VOC se tornasse a maior fornecedora de especiarias para a Europa. Em 1622, as ações tinham valorizado 300% − isso numa época sem inflação. Fenômeno.

Mais tarde, em 1670, ela já tinha 50 mil funcionários (bastante até para os padrões de hoje – é a quantidade de empregados da Apple). A VOC tinha isso e mais um exército particular de 30 mil soldados e duzentos navios, a maioria armada. E mais importante: estava pagando dividendos de até 40% ao ano.

É lugar-comum dizer que ações sempre valem a pena no longo prazo (e há muito exagero nisso), mas nesse caso foi precisamente o que aconteceu. Ao longo do século 17, a VOC mandaria 1.770 navios para o Oriente, contra 371 de Portugal. Cem anos depois, o placar seria ainda mais elástico: Holanda 2.950 x 196 Portugal.

Não é que esse negócio de ações era bom mesmo? Ô se era. Até vir o primeiro crash do mercado – assunto do nosso próximo capítulo.


Este é o quarto capítulo do livro Crash, Uma Breve História da Economia, escrito pelo autor deste blog.

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