Seis graus de separação – ou como Kevin Bacon está matando os líderes messiânicos
Frigyes Karinthy era um humorista húngaro. Viveu no começo do século 20, e hoje seria diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção (sempre esquecia dos compromissos e tinha problemas sérios com prazos…), mas até que era produtivo: em seu 46º livro, uma coleção de 52 contos, tinha um particularmente original. Chamava Correntes, e dizia o […]
Frigyes Karinthy era um humorista húngaro. Viveu no começo do século 20, e hoje seria diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção (sempre esquecia dos compromissos e tinha problemas sérios com prazos…), mas até que era produtivo: em seu 46º livro, uma coleção de 52 contos, tinha um particularmente original. Chamava Correntes, e dizia o seguinte: “Para mostrar que as pessoas de hoje estão mais próximas do que nunca umas das outras, um dos caras da turma sugeriu um teste. Apostou que qualquer um dos 1,5 bilhão de habitantes da Terra [era 1929] estava ligado a ele por uma distância de, no máximo, cinco indivíduos”.
Então o personagem imagina um operário da Ford e tenta ver qual é a conexão entre ele próprio, um sujeito de Budapeste, e o trabalhador braçal de Detroit, a meio mundo dali: “Esse operário conhece o diretor da fábrica dele. É um fato. Esse diretor provavelmente conhece o Henry Ford. O Ford é amigo do presidente da Hearst, a editora de jornais. E o presidente da Hearst, no ano passado, conheceu o Árpad Pásztor, que é muito amigo meu!”. Pronto: cinco “graus de separação” entre o personagem do café em Budapeste e o operário da Ford.
Esse é o primeiro registro escrito daquilo que você provavelmente conhece como “seis graus de separação”. E você conhece como “seis graus”, e não “cinco”, por causa de um psicólogo de Harvard, Stanley Milgram.
MIlgram era filho de húngaros. E os livros humorísticos de Frigyes eram tão populares na Hungria do começo do século 20 quanto os vídeos do Porta dos Fundos são no Brasil do século 21. Talvez Milgram tenha ouvido sobre o conto em algum almoço de domingo quando era pequeno. Talvez a ideia dos “graus de separação” já fosse conhecida na Hungria antes do livro – os jogos mentais, afinal, são para o húngaros mais ou menos o que a feijoada é para nós: uma questão de identidade nacional (tanto que eles inventaram o cubo mágico…).
De um jeito ou de outro, a ideia chegou até Milgram. E em 1967 ele fez um experimento para testar quantos “graus de separação” haveria entre duas pessoas que não se conhecem. Assim: mandou para 160 pessoas pelo correio a foto de um amigo dele, que era corretor da bolsa em Boston. Essas 160 pessoas viviam em Omaha, Nebraska – que fica a 1.500 quilômetros da capital do Massachusetts. Junto com a foto, ia o nome e o endereço do tal corretor mais as instruções do teste: quem recebesse a carta e conhecesse pessoalmente o sujeito deveria mandar a carta para ele.
Quem não reconhecesse o amigo de Milgram (na prática, todo mundo), deveria mandar a carta para algum amigo que talvez soubesse quem fosse o cara – um conhecido de Boston, por exemplo. O senso comum diz que um teste desses só podia dar em água. Os colegas de Milgram também. Mas em questão de dias chegou a primeira carta para o corretor, vinda de alguém que ele realmente conhecia. A correspondência tinha passado só por dois intermediários. Ou seja: alguém de Omaha que recebeu a carta conhecia alguém que conhecida alguém que conhecia o cara de Boston. E chegaram mais cartas. E mais cartas… No final, 42 das 160 alcançaram o amigo de Milgram por essa via. E o número médio de graus de separação foi de 5,5. Basicamente o que Frigyes tinha imaginado. Uau.
Milgram arredondou o número para seis. E a coisa entrou para o folclore moderno como “seis graus de separação”. O psicólogo de Harvard, diga-se, nunca usou a expressão “graus de separação”. Esse foi o título de uma peça da Broadway dos anos 90, inspirada pelo estudo de Harvard. A peça, depois, inspirou uma piada. Em 1994, um grupo de estudantes mandou uma carta para o programa de TV do comediante americano Jon Stewart dizendo que “qualquer pessoa no mundo está a no máximo seis graus de separação de Kevin Bacon”. É que Bacon teria feito tantos filmes que fatalmente trabalhou com muita gente. Então qualquer um conheceria alguém que conhece alguém (…) que trabalhou com ele. A piada era ok, mas cientificamente imprecisa: a conclusão de Milgram lá atrás era que a regra valia para qualquer pessoa, claro; não só para o ator de Footloose. Mas foi desse jeito, ilustrada pelo ator da segunda divisão de Hollywood, que o meme ganhou o mundo. O mais importante ali, porém, era outra coisa: a ideia dos seis graus de separação mostrava que os seres humanos, de alguma forma, estão conectados em rede.
Foi o que um matemático da Universidade Cornell percebeu quando ouviu sobre os “graus de separação”, numa conversa casual com o pai, no final dos anos 90 – não por coincidência, bem quando o meme Kevin Bacon estava se espalhando. Duncan imaginou que o conceito por trás dos seis graus de separação poderia trazer a chave para um mistério que ele tentava decifrar havia anos: a sincronicidade entre insetos.
O assunto é mais legal do que parece, você vai ver.
Para entender de que tipo de “sincronicidade” estou falando aqui, pense num aplauso de multidão no meio de um show. Não num aplauso formal, que as pessoas dão por educação quando a música termina, mas num espontâneo mesmo, tipo os que acontecem de vez em quando no meio da música. É praticamente impossível saber onde a coisa começou. O que a multidão percebe é que, de uma hora para outra, está todo mundo aplaudindo.
Isso acontece com alguns vaga-lumes também. Uma espécie do sudeste da Ásia tem um ritual indiscernível de mágica: grupos de milhões de vaga-lumes machos se reúnem em volta das árvores e, de uma hora para a outra, começam a acender e apagar seus rabos exatamente ao mesmo tempo, numa sincronia perfeita. O enxame vira uma luz pulsante, visível a quilômetros de distância. Um flashmob artrópode.
Eles fazem isso para avisar as fêmeas que estão ali (e com a corda toda). A piscada em uníssono funciona como um letreiro luminoso, que avisa onde é a balada do acasalamento. Aqui:
O mundo está cheio de exemplos parecidos: as sardinhas tentam enganar os predadores formando cardumes tão densos e sincronizados que, para um tubarão desavisado, a coisa parece mais uma baleia. Até o canto dos grupos de grilos parece seguir as ordens de um maestro. A natureza é terrivelmente sincronizada.
E, quando Duncan Watts ouviu do pai a história dos seis graus, percebeu que ela podia ser útil para explicar tudo isso. Ele sabia que a única coisa que um vagalume ou uma sardinha tem noção na vida é o comportamento dos outros vaga-lumes e sardinhas imediatamente ao redor dele. “Se o meu vizinho acender o rabo, vou ligar o meu”, pensaria o vaga-lume, se tivesse um cérebro capaz disso. Ele não pensa, claro, só imita por instinto.
(Plantão Darwin: os vaga-lumes que nasceram com esse instinto se reproduziram mais do que os vaga-lumes comuns, já que atraíam mais fêmeas com seu show de luzes involuntário; e uma hora os insetos sincronizados tinham deixado tantos descendentes a mais que viraram a população dominante por lá. Essa é a explicação evolutiva).
Mas o que importa é o seguinte: Watts passou a entender que os vaga-lumes de uma ponta do enxame estavam a “poucos graus de separação” dos da outra ponta, a milhões de indivíduos de distância. Para um matemático isso faz toda a diferença: mostra que os vaga-lumes funcionam em rede.
Numa rede, de computadores, por exemplo, cada uma das máquinas está indiretamente conectada a todas as outras máquinas do mundo. Isso fica bem visível nas redes de torrents. Se você tem um filme no computador e joga ele numa rede de torrents, todas as pessoas do planeta que derem um comando para baixar o seu filme vão se conectar à sua máquina. O nome técnico disso é rede peer-to-peer (de “par para par”). De par para par porque não existe uma central no meio do caminho. É um computador “falando” direto com o outro.
Bom, os enxames sincronizados de insetos são grandes redes peer-to-peer: a informação flui só “entre pares”. No caso dos vaga-lumes, os vizinhos imediatos. Mas, como eles estão conectados em rede, a informação de quando acender e apagar a luz flui com uma rapidez extrema pelo enxame todo. Daí a sincronicidade. Duncan demonstrou matematicamente esse tipo de fluxo (o que não é nada simples). E essa foi sua descoberta.
O matemático gostou tanto dessa história de redes que acabou deixando os insetos de lado e passou a estudar outro animal que de vez em quando forma enxames: os humanos. Nisso, acabou praticamente inaugurando um novo ramo da ciência: a chamada “nova ciência das redes”. Não podia haver época mais propícia. Com o avanço da internet, coisas que antes eram abstrações matemáticas, como “pontos de rede” e “links” já tinham entrado para o léxico popular. E um enxame de cientistas passou a estudar redes – sejam as de computador, sejam as de seres humanos.
Mas as redes humanas tinham um problema: historicamente, nunca formamos grandes “inteligências coletivas”, como os vaga-lumes, grilos e sardinhas. Sempre precisamos de líderes. Se os líderes são absolutistas, nos organizamos naquilo que os cientistas dessa nova disciplina chamam de “redes centralizadas”: ou todo mundo obedece um comando central, ou tem a cabeça cortada. Caso da Coreia do Norte, para ficar num exemplo só. O resultado dessas redes é o comportamento padronizado. E o isolamento. Quem está numa rede extremamente centralizada nem tem contato com outras formas de pensar – tanto que, se meia dúzia de norte-coreanos fugidos para o vizinho do sul resolvem abrir a boca para falar como viviam, vira livro (como o ótimo Nada a Invejar, de Barbara Demick). Em suma: eles estão conectados em rede, mas é como se cada norte-coreano estivesse ligado só ao gordinho Kim Jong-un e às insanidades que ele prega.
Outro tipo de rede é a mais convencional: a que tem vários centros, e onde cada pessoa participa de mais de um. Se você é skatista e advogado, já faz parte de duas redes, a de quem anda de skate e a da OAB, cada uma com seus líderes de ocasião. A “rede de vários centros”, enfim, é basicamente a vida as we know it.
Quer dizer… Não. Não é mais.
O que está acontecendo agora é o afloramento de uma rede nova: uma que une basicamente todo mundo. Os graus de separação entre as pessoas dentro do Facebook, algo que dá para medir automaticamente, é de 3,75. O mundo ficou menor – se algum amigo seu vai morar no exterior, continua participando da sua vida tanto quanto antes, via Whatsapp, Instagram ou o que for. Isso acelerou o mundo. Aquele meme do Kevin Bacon chegou ao Brasil três, quatro anos depois de ter aparecido na TV americana. Hoje, chegaria em 3 segundos.
Uma ideia também não precisa mais “subir na hierarquia” de um sindicato, de um partido, de uma ONG para chegar a todo mundo. Se ela for boa o bastante, vai alcançar milhões em minutos. É por isso que hoje conseguimos formar “enxames” sem a intermediação de líderes. E os protestos de junho foram a prova empírica disso. A prova de que a figura do guru, do ser iluminado que guia os passos do rebanho, está obsoleta. A prova de que estamos virando insetos (no melhor sentido possível). E deixando de ser gado.