Cientista ligado ao Instituto de Wuhan diz que não é possível descartar hipótese de vazamento
O inglês Peter Daszak é dono da empresa que repassou verba do governo americano para financiar pesquisas no WIV; ele sempre negou a tese de que o coronavírus tenha escapado de um laboratório; nova entrevista toca em pontos críticos envolvendo a origem do Sars-CoV-2.
O inglês Peter Daszak é dono da empresa que repassou verba do governo americano para financiar pesquisas no WIV; ele sempre negou a tese de que o coronavírus tenha escapado de um laboratório; nova entrevista toca em pontos críticos envolvendo a origem do Sars-CoV-2.
“Se eu concordo que é possível que a Covid-19 tenha surgido por um vazamento de laboratório? Claro. Foi amplamente reportado que nós impedimos a discussão sobre isso. Mas no relatório da OMS, do qual eu fiz parte – e na verdade eu dirigi a parte [de investigação] ambiental e animal – nós afirmamos que é extremamente improvável. Nós não dissemos que é impossível ele ter vindo do laboratório. Claro que é possível”, disse o virologista inglês Peter Daszak ao site The Intercept – em sua primeira grande entrevista desde o surgimento do coronavírus.
Daszak é uma peça-chave na investigação sobre a origem do Sars-CoV-2, pois ele é o dono da EcoHealth Alliance: a empresa que, em 2014, transferiu verba do National Institutes of Health (NIH), do governo americano, para financiar pesquisas com coronavírus no Instituto de Virologia de Wuhan (WIV).
Essas pesquisas, que nem sempre seguiam as normas de segurança, consistiam em criar versões modificadas de coronavírus. Elas incluíram a criação de um vírus “quimérico”, ou seja, que não existe na natureza – e junta pedaços do SHC014-CoV, um coronavírus de morcego, com o primeiro Sars-CoV, que causou uma epidemia na Ásia em 2003. O objetivo era tornar o SHC014-CoV capaz de infectar células humanas (leia mais na reportagem “A origem do vírus”, publicada pela Super em junho de 2021).
Daszak sempre negou categoricamente que o Sars-CoV-2 pudesse ter surgido de um vazamento acidental no Instituto de Virologia de Wuhan, e tentou evitar que isso fosse debatido e investigado. Em fevereiro de 2020, no começo da pandemia, ele organizou a elaboração de uma carta, assinada por 27 pesquisadores e publicada no jornal científico Lancet, que tenta descartar a hipótese: “Nós condenamos fortemente as teorias da conspiração sugerindo que a Covid-19 não tem uma origem natural”.
A carta afirma que o coronavírus é de origem zoonótica, ou seja, veio de um animal. Mas não apresenta provas disso: até hoje, a espécie da qual o Sars-CoV-2 teria se originado não foi determinada (ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com o Mers-CoV e com o primeiro Sars-CoV).
Enquanto coordenava a elaboração da carta, Daszak tentou esconder seu envolvimento com ela. Em um email a Ralph Baric, que é virologista da Universidade da Carolina do Norte e auxiliou os chineses na criação do vírus quimérico, Daszak diz o seguinte: “Você e eu não devemos assinar a carta, para que ela tenha alguma distância de nós e não seja contraproducente”. Baric concorda: “Também acho uma boa decisão. Do contrário, parece que é em causa própria, e perdemos impacto”.
Os dois sabiam que havia ali um conflito de interesses: estavam tentando impedir a investigação de uma pesquisa da qual participaram. Mas o Lancet não se deu conta disso, e publicou a tal carta. Um ano mais tarde, em julho de 2021, o jornal reconheceu o erro, e publicou um adendo explicitando os “interesses concorrentes” de Daszak. A participação de Daszak na investigação da OMS também foi fortemente criticada, assim como os resultados – o documento é considerado superficial e inconclusivo.
Desde então, Daszak evitou dar entrevistas. Mas, agora, aceitou falar com o Intercept – numa entrevista repleta de perguntas incisivas. Daszak é questionado sobre a proposta que em 2018 ele enviou à Darpa, a agência de tecnologia do Pentágono, pedindo financiamento para inserir um “ponto de corte pela furina” em coronavírus – uma alteração genética que poderia torná-los muito mais contagiosos, e está presente no Sars-CoV-2 (entenda melhor a questão da furina).
“Sim, nós enviamos uma proposta à Darpa (…) Foi amplamente reportado que a Darpa a rejeitou porque havia preocupações com questões de segurança. Isso é absolutamente falso”, afirma Daszak. Segundo ele, o projeto não chegou a ser executado. “A proposta da Darpa não recebeu financiamento. Portanto, o trabalho não foi feito. Simples”, diz.
Ele diz que o objetivo principal do projeto não era inserir um “ponto de corte pela furina” em coronavírus, mas acaba admitindo que isso fazia parte dos planos: “Sobre o ponto de corte pela furina, você deve perguntar ao Ralph Baric. Ele escreveu essa parte do pedido à Darpa”.
Perguntado sobre as pesquisas com vírus “humanizados” no Instituto de Virologia de Wuhan, Daszak se esquiva: “Você tem que perguntar ao WIV sobre o que mais eles estavam fazendo. Nós estávamos fazendo uma linha de trabalho com eles”.
Mas, em seguida, há nova contradição: “Nós sabíamos da maioria das coisas que ela [Shi Zhengli, principal cientista do WIV] estava fazendo. É claro. Eles não estavam nos escondendo nada. Eles são cientistas. Eu fiz dúzias de reuniões com pessoas do Instituto de Virologia de Wuhan, nas quais eles falaram abertamente sobre pesquisas não publicadas”.
A entrevista aborda vários outros pontos críticos, como a ação de Daszak, em abril de 2020, para esconder sequências genéticas de vírus em que a Universidade da Califórnia vinha trabalhando a pedido do governo americano. “É muito importante que não tenhamos essas sequências no nosso pacote para o Genbank [banco internacional de dados genéticos] neste momento”.
No email em que dá essa orientação, Daszak explica o motivo: a publicação das sequências genéticas atrairia “atenção muito indesejada para a UC Davis [a universidade], o PREDICT [programa do governo americano] e à USAID [a agência governamental que financiou o projeto].
A íntegra da entrevista, em inglês, pode ser acessada neste link.