NeoCov não é capaz de infectar humanos – mas renova preocupação com experiências de laboratório
Vírus descoberto em morcegos é geneticamente parecido com o Mers-CoV, que mata 30% dos infectados; novo estudo revela que ele tem baixa capacidade de penetrar em células humanas, mas cientistas fizeram uma modificação genética para aumentá-la

Vírus descoberto em morcegos é geneticamente parecido com o Mers-CoV, que mata 30% dos infectados; novo estudo revela que ele tem baixa capacidade de penetrar em células humanas, mas cientistas fizeram uma modificação genética para aumentá-la
“Neste estudo, nós inesperadamente descobrimos que o NeoCoV e seu parente próximo, o PDF-2180-CoV, podem usar de forma eficiente alguns tipos da enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) de morcego e, menos favoravelmente, a ACE2 para entrada [nas células]“. Essa frase, contida em um estudo publicado por cientistas da Academia Chinesa de Ciências e da Universidade de Wuhan, espalhou medo e apreensão nos últimos dias.
Há dois motivos para isso. O primeiro é que o NeoCoV é o vírus conhecido geneticamente mais próximo do Mers-CoV: um coronavírus que foi descoberto em 2012 no Oriente Médio, onde causou um surto localizado – e levou à morte em 32,7% dos casos. Essa taxa de letalidade pode estar superestimada, pois o número total de infectados foi pequeno (cerca de 2.500), mas o Mers-CoV é bastante agressivo. Muito mais letal que o Sars-CoV-2.
A segunda razão é que, no estudo dos cientistas chineses, o NeoCoV conseguiu infectar células humanas usando os receptores ACE2 – os mesmos usados pelo Sars-CoV-2. Isso levou algumas pessoas a juntar as duas informações e imaginar uma combinação tétrica: o NeoCoV poderia ser tão mortal quanto o Mers-CoV e tão contagioso quanto o Sars-CoV-2.
Na prática, não é bem assim. Primeiro porque o NeoCoV não é novo: ele é conhecido desde 2014, quando foi descoberto em um morcego africano. Pode ter sido, inclusive, o precursor do Mers-CoV. Os países árabes costumam importar camelos criados em nações africanas – onde esses animais poderiam ter sido infectados por morcegos portadores do NeoCoV. Ele teria sofrido mutações dentro dos camelos, originando o Mers-CoV.
Mas o mais importante é que, segundo o próprio estudo chinês, o NeoCoV não é capaz de “interagir de forma eficiente com a ACE2 humana”. Ele se conecta bem aos receptores ACE2 de morcegos, mas não aos nossos: “não houve entrada, ou houve entrada muito limitada, em células que expressam a ACE2 humana”, diz o trabalho. Logo, ele não representa um risco real.
Porém, o estudo tem uma passagem intrigante – e, aí sim, preocupante. “A substituição T510F no NeoCoV aumentou notavelmente sua capacidade de conexão à hACE2 [enzima ACE2 humana], e houve um ganho significativo de infectividade em células”, diz o trabalho. Traduzindo: os pesquisadores chineses fizeram uma alteração genética no vírus, substituindo o aminoácido treonina (T) por fenilalanina (F) na posição 510 da proteína spike. Com isso, criaram um NeoCoV que é bom em infectar células humanas.

É justamente o tipo de modificação que, segundo uma das hipóteses para explicar a origem da pandemia, teria levado à criação e ao vazamento acidental do Sars-CoV-2 do Instituto de Virologia de Wuhan (WIV). Os procedimentos de segurança do WIV já haviam recebido críticas em 2018, e a China nunca permitiu que o Instituto fosse periciado – o que levantou dúvidas com relação às pesquisas realizadas no país.
O novo trabalho, com o NeoCoV, revela que cientistas chineses continuam fazendo alterações experimentais em vírus. Há uma diferença crucial: neste estudo, os pesquisadores usaram “pseudovírus”: um vírus montado em laboratório. É uma versão modificada do VSV (que infecta cavalos) conectada a pedaços do NeoCoV. Na prática, ele se comporta exatamente como o NeoCoV, servindo para estudá-lo. Porém, como todo pseudovírus, não é capaz de se replicar – eliminando o risco de vazamento.
O uso de pseudovírus é uma medida de segurança comum nos estudos de laboratório. Mas já era assim quando o Instituto de Virologia de Wuhan realizou suas pesquisas – nas quais utilizou vírus reais, não pseudo, e chegou até (em colaboração com a Universidade da Carolina do Norte, nos EUA) a combinar material genético do primeiro Sars-CoV e do SHC014-CoV, que infecta morcegos, para criar um vírus “quimérico”, que não existe na natureza.