Torino, Chapecoense e as marcas inesperadas da dor
Imagine se o melhor time da Itália viesse fazer pré-temporada em São Paulo. Ainda mais em uma época em que a colônia italiana era proporcionalmente muito maior do que hoje. Em julho de 1948, apenas três anos após a guerra mundial que opôs Brasil e Itália, o Torino, então tetracampeão nacional, veio a São Paulo […]
Imagine se o melhor time da Itália viesse fazer pré-temporada em São Paulo. Ainda mais em uma época em que a colônia italiana era proporcionalmente muito maior do que hoje. Em julho de 1948, apenas três anos após a guerra mundial que opôs Brasil e Itália, o Torino, então tetracampeão nacional, veio a São Paulo em uma excursão de quatro jogos. Foi uma festa.
O time grená enfrentou os maiores clubes da capital e lotou o Pacaembu em todos eles – o jogo menos cheio foi a goleada de 4 a 1 sobre a Portuguesa, com 30 mil pessoas. Apesar de todas as credenciais, foi uma vitória “inesperada”, segundo o Estadão de 27 de julho daquele ano, porque “depois da vitória do Corinthians sobre o conjunto visitante, todos acreditavam no êxito da Portuguesa de Esportes, uma vez que os rubro-verdes, pela característica de jogo que possuem, poderiam, com efeito, registrar um feito de alta expressão”. Os próprios resultados da turnê deixaram todo mundo feliz: os turistas tiveram a delicadeza despropositada de vencer uma partida, perder outra e empatar duas (contra Palmeiras e São Paulo).
Por ser do Piemonte – a região italiana cuja capital é Turim -, meu bisavô atendeu a um pedido do consulado italiano e ciceroneou por uns dias a delegação. Em vez de passear por São Paulo, que àquela época já era uma metrópole de 2 milhões de habitantes, ele desceu a Serra do Mar e levou a italianada ao Guarujá, onde, diferentemente da capital (e do “Guaru” de umas décadas para cá), prédio não havia.
“Eles piraram”, lembra minha avó, adolescente na época, que aproveitou o mês de férias para acompanhar essa excursão pouco usual. “Aquela areia fofa, o mar. O Guarujá naquela época era outro lugar. “Meu pai organizou um almoço para eles, todo mundo passou o dia junto. Foi ótimo. E era cada homem bonito!”
O grande Torino, o time que uniu uma Itália devastada pela guerra e que de tão bom era a base da seleção que buscaria, no Brasil, o tricampeonato mundial em 1950, voltou para a Europa após a bem-sucedida excursão paulistana. Marcou época na cidade.
Pouco mais de nove meses depois, retornando de um amistoso em Portugal, o avião que levava a equipe bateu na basílica de Superga, na própria Turim. Todos a bordo morreram. O time nunca mais foi o mesmo, e a Itália fracassou na Copa. Os rumos do futebol mundial mudaram.
“Passei o dia todo pensando naqueles homens”, disse minha avó quando liguei para ela na terça. “A gente conhece as pessoas um dia e parece que eles eram amigos de infância quando acontece algo assim. Depois daqueles dias em São Paulo, eles foram embora, voltaram para a Europa e aquilo aconteceu. Sabe aquela sensação de injustiça? Foi muito triste, marcou o mundo. Minha irmã e eu jamais esquecemos. Aí acontece isso de novo com a Chapecoense e tudo volta à cabeça.”
Eu não conheci meu bisavô, nunca fui para Turim, Guarujá para a minha geração é sinônimo de praia urbanizada. Mas, ainda assim, de um jeito ou de outro, essa história me marcou, porque a escuto desde criança. Minha avó adotou o Torino como seu segundo time (o primeiro é aquele que foi campeão há pouco justamente jogando contra o time de Chapecó).
A Torre Eiffel iluminada de verde e outras homenagens mais distantes e menos óbvias dão a dimensão global da tragédia. O fato basta por si só: o avião que levava um time inteiro para sua primeira final internacional caiu. Um time pequeno, de ascensão meteórica. Uma cidade se calou, um estado se enlutou e um país dividido parou de discutir, por alguns dias, para compartilhar a dor. O mundo ficou chocado.
Mas, indo além, à medida que as ondas de aceitação, consternação, trauma e superação se alternarem e se aplainarem, perceberemos novas e sutis marcas que as 71 pessoas que se foram deixaram em milhares de outras ao longo de suas vidas. E como a história delas e seu repentino fim repercutirá em quem não tem idade para entender.
O que aconteceu vai ecoar por décadas, porque o futebol é dessas coisas que já são gigantes quando a gente chega ao mundo. Quem nascer verá.