Ratos surdos voltaram a ouvir após terapia genética
Animais com surdez congênita passaram a ouvir até sussurros. Segundo os autores do estudo, a técnica pode ser adaptada para bebês humanos.
Uma das disfunções genéticas mais graves que existem é a Síndrome de Usher. Ela afeta um em cada 25 mil recém-nascidos (aproximadamente — a taxa muda de país para país), e tem consequências pesadas: os bebês nascem surdos, e na primeira década de vida também perdem, gradualmente, a visão. A doença era considerada incurável, mas a medicina está virando esse jogo.
Pesquisadores do Hospital Pediátrico de Boston, nos EUA, usaram terapia genética para impedir que as mutações afetassem o ouvido interno de ratinhos recém-nascidos que portam a síndrome. Graças ao tratamento, 19 dos 25 animais conseguiram ouvir ruídos superiores a 80 decibéis (quase um liquidificador), e o mais surpreendente: alguns reagiram a barulhos de apenas 25 decibéis (equivalentes a um sussurro) — um grau de recuperação sem precedentes na área. O melhor? Segundo os cientistas, a técnica provavelmente poderá ser adaptada para uso em bebês humanos em um futuro próximo – uma intervenção essencial para que eles tenham contato com a língua materna desde cedo e possam desenvolver habilidades linguísticas no período correto.
O truque para conter a síndrome não é difícil de entender. E saber como funciona uma guitarra pode te ajudar.
Como assim?
Seu ouvido e o instrumento do Keith Richards têm algo em comum: ambos transformam vibrações em sinais elétricos. Essa capacidade é tão útil que tanto a evolução biológica quanto a tecnologia do século 20 deram um jeito de desenvolve-la. Na guitarra, a peça responsável por transformar sons em elétrons é chamada captador magnético. Ele é um eletroímã, e aqui entra uma pitada de física básica do ensino médio: magnetismo e eletricidade são faces da mesma moeda. Não dá para cutucar um sem afetar o outro. Quando a vibração das cordas gera um distúrbio no campo magnético na parte de fora da guitarra, na parte de dentro esse distúrbio muda as características do sinal elétrico que é enviado ao amplificador, e é assim que ele descobre qual nota você tocou. Faça-se o barulho!
No ser humano, a peça equivalente é um pequeno tubo de osso em forma de caracol chamado cóclea. Esse rolinho fica escondido no interior do seu ouvido, é do tamanho de uma ervilha e, é óbvio, não gera um campo magnético. Seu truque para transformar vibrações em sinais elétricos é mais simpático: lá dentro há um exército de células em forma de pelinho, parecidas com cílios, que estão mergulhadas em um líquido.
Quando um som qualquer chega lá dentro, o líquido vibra e os cílios microscópicos saem do lugar, desencadeando um processo químico que cria sinais elétricos — como eles fazem isso não é nada fácil de entender, mas os corajosos, médicos e biólogos de plantão podem tentar.
Para a nossa explicação, o importante são duas coisas: a primeira é que essa operação complexa converte ondas sonoras em um “tipo de arquivo” que o cérebro é capaz de entender, feito de impulsos elétricos — da mesma forma que precisamos gravar música em um formato como .MP3 ou .WAV para que um computador seja capaz de entendê-la.
A segunda é que esses pelinhos são organizados como legionários romanos lá dentro, e essa organização toda é essencial para fazer a conversão. O problema de pessoas e animais com surdez congênita causada pela Síndrome de Usher é justamente que seus cílios vêm de fábrica “despenteados” e mal calibrados — como se fossem um captador de guitarra que não consegue sentir vibrações em seu campo magnético (e que, portanto, não manda sinais para o amplificador) Dá para entender melhor na imagem abaixo, fornecida pelos autores do estudo.
A primeira coluna, com imagens de um animal saudável, mostra triângulos de células com uma camada azul, uma amarela e uma vermelha. A segunda, feita no interior da cóclea de um animal surdo, mostra os triângulos imperfeitos e as cores misturadas. O resultado da técnica de terapia genética aparece na terceira imagem: ela funciona como um pente, e põe os cílios de volta em um topete perfeito.
Isso é feito usando um vírus modificado, que não causa doença nenhuma. Pelo contrário: ele “infecta” entre 80% e 90% das células em forma de pelinho, tirando a parte do DNA que tem problemas e pondo uma versão atualizada no lugar. “O estudo é um marco” afirmou Jeffrey Holt, um dos autores do artigo científico. “Nós demonstramos, pela primeira vez, que fornecendo a sequência de genes correta a um grande número de células sensoriais do ouvido, nós conseguimos restaurar a audição.” Vale uma ressalva: a técnica, por enquanto, só dá certo se a intervenção for feita com recém-nascidos, praticamente após o parto — na primeira semana de vida. De qualquer forma, os bebês do futuro agradecem.