“Do chão nós nos erguemos; Nas nossas naves, vivemos; Nas estrelas, sonhamos”, diz um provérbio exodoniano logo nas primeiras páginas de A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil, da escritora Becky Chambers. Se você está se perguntando o que é “exodoniano”, deve correr para ler esse livro, já considerado um marco recente na literatura de ficção científica.
Trazida pela editora DarkSide ao Brasil, a obra conta a viagem da nave Andarilha ao pequeno planeta do título, onde a tripulação precisa furar um túnel que permitirá a participação desse planeta em um aliança galáctica. Mas, o fascinante da obra vai muito além disso: as relações entre as diversas raças que convivem na nave colocam temas como feminismo, amizade, xenofobia e poliamor em pauta.
Metáforas ao nosso mundo são feitas de diversas formas, e a maneira como a autora trata tudo isso é, ao mesmo tempo, sutil, delicado e forte. Em entrevista a MUNDO ESTRANHO, Becky, fã de sci-fi desde criança e nova aposta dessa literatura, conta um pouco sobre os temas abordados e seus personagens mais marcantes.
MUNDO ESTRANHO: Você já disse em entrevistas que gosta muito do trabalho da Ursula K. Le Guin. O personagem Dr. Chef foi inspirado nos habitantes de Gethen, os personagens não-binários de A Mão Esquerda da Escuridão? O quanto Ursula a inspirou em seu trabalho?
BECKY CHAMBERS: A cultura getheniana me absorveu completamente quando eu li A Mão Esquerda da Escuridão pela primeira vez, mas eu não posso dizer que ela foi uma inspiração direta para o Dr. Chef – ao menos, não intencionalmente. O trabalho de Le Guin é um de muitos ingredientes que passaram anos cozinhando na sopa criativa que levou às coisas que escrevo. Ela escreve sobre cultura alienígena melhor do que qualquer autor que eu já tenha lido, sem comparação. Isso foi uma enorme inspiração para mim e se eu algum dia escrever algo que tenha metade da qualidade do que ela escreve, estarei satisfeita. Mas eu também me sinto inspirada pelo mundo natural e eu cresci em uma casa cheia de peixes de estimação e insetos e todo tipo de coisas que não se pareciam e nem se reproduziam do jeito que humanos fazem. Quando eu escrevia o Dr. Chef, eu estava principalmente pensando, bem, sobre peixes e insetos. Mas eu teria escrito ele, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito se eu não tivesse lido Ursula K. Le Guin uma década antes? Definitivamente não.
ME: No livro, parece que a raça humana é “inferior” às outras (pelo menos foi minha impressão, já que eles nem mesmo são parte das espécie líderes da Comunidade Galactea). Por que você decidiu nos colocar nessa posição? É uma crítica a quem nega a existência de outras formas de vida?
BC: Foi mais no sentido de uma resposta a como os humanos geralmente tendem a ser retratados em sci-fi espacial. Nós ou somos o exemplo brilhante a ser seguido pelo resto da galáxia, como em Star Trek, ou somos uma espécie subestimada, mas algum de nós salva o dia (Farscape, Mass Effect, Guardiões da Galáxia e por aí vai). Eu estou mencionando algumas das minhas histórias favoritas aqui, então não ache que eu as estou menosprezando. Mas esses clichês parecem uma extensão de uma atitude que me incomoda no mundo real – a ideia de que nós somos a parte final da evolução terrestre, de que esse planeta foi feito para nós, de que nós somos a coisa mais especial que já aconteceu na história do universo. Eu concordo que nós somos especiais, mas especial não precisa ser sinônimo de melhor. Eu concordo com a visão de Carl Sagan a respeito: nós somos insignificantes e também únicos. As duas coisas são verdadeiras ao mesmo tempo. Então, no meu futuro imaginário, eu queria retratar a humanidade como uma espécie que finalmente conseguiu entender que o universo não pertence somente a nós, mas que somos parte dele tanto quanto qualquer um. Eu percebi que precisávamos de uma lição de humildade para chegar lá. Eu não nos enxergo como inferiores, pelo menos não em relação às outras espécies que inventei. A gente simplesmente não os alcançou ainda.
ME: A fuga dos padrões é algo natural em seu trabalho. Não há restrições de gênero ou espécie nos relacionamentos, os habitantes do navio Andarilha, mesmo com diferenças morais e culturais, coexistem harmoniosamente. O seu livro vai muito além de ficção científica comum e coloca em cheque valores e tabus da sociedade atual. Qual é o propósito de trazer esses temas para seu trabalho?
BC: Estamos falando de pessoas que vivem centenas de anos no futuro. Volte 500 anos na história da Terra. Volte mil. Você não encontrará os mesmos problemas sociais ou tabus que temos hoje, então me parece que não iríamos encontrar o nonsense moderno no futuro. Com certeza existem muitas diferenças culturais e tabus entre a Comunidade, e eu acho que eles causam problemas quando as espécies interagem. Mas dentro dessa nave, você encontra pessoas que descobriram como superar isso. E esse é o elemento que é verdadeiro não importa o século em que você esteja. As pessoas sempre tiveram dificuldades com as diferenças, mas nós também encontramos jeitos de fazer tudo funcionar. Eu quis tomar o caminho mais otimista.
ME: Seu trabalho é sobre pessoas ordinárias (com as características de sua raça) e o desenvolvimento desses personagens acaba sendo mais importante do que o clímax do livro. Você poderia comentar sobre essa escolha?
BC: Eu acompanho histórias espaciais desde que era criança, mas nunca me identifiquei com os heróis. Eu sempre fui curiosa a respeito das pessoas no fundo, as pessoas que estão simplesmente andando pelo hangar espacial. Eu queria saber como era para uma pessoa ordinária viver em um desses futuros fantásticos. Heróis rendem histórias fantásticas, mas as deles não são as únicas histórias que importam. A maioria de nós não é herói. A maioria de nós nunca terá que sobrepujar impérios malignos ou impedir a galáxia de explodir. Estamos pensando sobre nossas famílias, nosso trabalho, ou sobre o que comer no jantar. Todas essas coisas normais em que a maioria das horas humanas são gastas. Essas histórias são simples, mas ainda importam. São essas que eu gosto de contar.
ME: O personagem Ohan, tratado às vezes no singular e às vezes no plural, é provavelmente o mais fascinante do livro. Toda a cultura por trás deles tem uma aura mística, como se fosse uma religião. Mas o desfecho deles acaba indo contra tudo em que eles acreditavam. Por que optar por um desfecho assim, em que o diferente acaba se rendendo ao comum?
BC: Eu queria colocar o leitor em uma situação sem uma solução boa. As normas culturais dele são, naquele momento, incompatíveis com as de alguns de seus colegas de tripulação, e isso acaba virando um problema. Algo é perdido, algo é ganho. Eu escrevi o livro e honestamente não sei dizer se acho que o final do arco de Ohan é moralmente certo ou errado. É os dois, provavelmente.
ME: Muitas espécies alienígenas possuem anatomias diferentes uma da outra, algo bem distante das aparências humanoides em ETs de filmes de ficção científica. Como você inventou cada raça? Algumas são baseadas em animais, como os Aaandriskans, que vêm dos répteis, mas você desenhou rascunhos de cada uma?
BC: Inventar alienígenas é uma das minhas partes favoritas de escrever sci-fi. Eu às vezes faço rascunhos, mas não sou uma grande desenhista (o Dr. Chef, por exemplo, eu nunca fui capaz de desenhar de um modo que fique igual ao que imagino em minha cabeça). No final, o que eu quero é uma galáxia que seja tão biologicamente diversa quanto nosso planeta. A ideia de que corpos humanoides são o padrão é simplesmente chata, então eu geralmente pesquiso mais do que mamíferos para inspiração (o que é muito divertido – eu fico muito empolgada com invertebrados em particular e animais em geral). Eu encontro uma característica que desperta meu interesse e então eu começo a me fazer questões a respeito. Se você não consegue regular sua temperatura corporal, então como isso afetou sua tecnologia? Se você se comunica por cores, como você decora sua casa? Se seus filhos podem andar e comer sozinhos a partir do momento em que nascem, como isso afeta a estrutura familiar? Eu adoro pensar e descobrir essas coisas.