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Passei 50 dias sem mentir (ou quase)

Fui um honesto radical. Perdi amigos e a vontade de conversar. E descobri que somos dependentes da mentira para viver.

Por Felipe van Deursen
Atualizado em 25 jun 2020, 12h28 - Publicado em 23 nov 2011, 22h00

Fazia mais de um mês que não ia para a casa dos meus pais. Sábado de sol, com “comidinha especial para os filhos queridos”. Família reunida, tarde gostosa. Mas minha mãe estava inquieta à mesa. Não ficou satisfeita com o risoto que preparara. “É, está apenas passável, mãe.” Ela concordou, cabisbaixa. “Mas talvez o problema seja eu. Passei a noite em claro. Ainda estou meio doidão”, disse, ao dar um belo gole de caipirinha. Silêncio.

“Aliás, estou falando isso porque tenho que passar um tempo sem mentir para escrever uma reportagem. Posso usar esta conversa para abrir o texto? Sabe como é, as pessoas têm esse velho tabu de falar mal da comida da própria mãe, então acho que é um bom jeito de começar. Que tal?” Ela concordou, mas fez um alerta: “Tome cuidado com o jeito de falar as coisas”.

Não queria fazer esta reportagem. Achei que corria o risco de sofrer uma lenta degradação social. Parar de fingir que atendo o celular para não falar com alguém? Deixar de usar a salvadora “Não ouvi o telefone tocar”? Era uma enrascada. Mas aceitei, por 2 motivos:

1. Levar uma vida 100% sincera levanta uma boa discussão sobre nossa relação com a mentira;

2. Eu gosto de aparecer.

Informei-me sobre revistas e livros que já trataram o assunto (sim, a ideia não é inédita) e decidi passar 50 dias em função da honestidade radical, prática defendida pelo psicoterapeuta americano Brad Blanton. “Então é falar o que dá na cabeça?” Não necessariamente. Basicamente, a proposta é ser sincero consigo mesmo o tempo inteiro. Só assim se consegue ser com os outros. Ser honesto com seus sentimentos em relação às atitudes das pessoas que importam à sua volta.

Já aviso para não enganar ninguém: fraquejei algumas vezes. Policiar as próprias mentiras é perceber a facilidade com que as cuspimos o tempo todo. Mas, ao reconhecê-las e voltar atrás, você assume erros e se mostra mais, inclusive o lado pouco louvável. Confessei pequenos pecados do dia a dia, extravasei inveja, egoísmo, prepotência, manipulação e futilidade. Porque eu minto. Muito. E quer saber? Você também.

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Petulância sincera

Em seu livro de maior sucesso, Radical Honesty (sem edição em português), Brad Blanton explica por que mentimos tanto. Fomos educados assim. Desde a infância aprendemos a interpretar papéis no cotidiano. Mentimos para ser aceitos na turma do futebol, para a professora gostar de nós, para chamar a atenção da menina mais bonita da escola, para conseguir emprego. Interpretamos papéis autoimpostos – e lutamos para mantê-los verossímeis.

Quando eu queria um brinquedo mais caro no Natal, puxava papo com minha avó, ouvia-a falar mal do Collor, concordava com tudo mesmo sem entender e buscava mudar o assunto para dizer como gostaria de ganhar aquela pista incrível de carrinhos. Bem, posso dizer que é “o meu jeitinho”. A vida é assim, certo? Mas jeitinho é mentira. E mentira é a maior fonte de estresse e infelicidade do mundo, segundo Blanton.

Ele diz que se todos parassem de usar tantas máscaras as pessoas teriam mais tempo e vigor para se dedicar a relações honestas. Vivemos o tempo todo a imagem que queremos ter de nós mesmos e que os outros tenham de nós. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos diz que 93% dos americanos assumiram que mentem regularmente. Estamos acostumados a agir assim porque é mais confortável. E vamos levando.

Percebi a facilidade com que mentia no terceiro dia. Um clássico: aumentar um conto. Em uma conversa sobre música, exagerei ao falar “que conheci o movimento punk da Lombardia”. Que bobagem. Não conheci nada, só ouvi um CD largado na casa de um primo nos arredores de Milão. Nem sequer me dei ao trabalho de checar se o som era mesmo da Lombardia. A primeira máscara a cair seria a da insegurança cultural. As pessoas engoliam meu personagem antenado e eclético. E eu sentia necessidade de manter isso, para mim e para elas, o que produz muitas mentiras como efeito colateral.

“Quando você assume que representa, você assume sua ignorância”, explica Blanton. Ao assumir, fiquei inseguro por sujar minha pose (“Como assim você ainda não ouviu essa música!?”). Mas senti alívio. Parei de fazer esse papel e passei a dizer: “Não faço ideia do que você está falando. Conta mais”. Em um almoço com a redação, demonstrei minha curiosidade ao aprender, por exemplo, que a suposta tartaruga que ajudou Charles Darwin a criar a teoria da evolução morreu em 2006.

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Antes, me sentiria mal em reconhecer que não sabia. Fingiria que conheço o assunto e acenaria com um vago “pode crer”, enquanto caramujos, joaninhas ou huskies siberianos passeavam no pensamento, lá longe. O problema é que expressões assim não são saudáveis. O “pode crer” é o açúcar refinado da roda social. Adoça, mas em excesso faz mal.

O bem-estar me conduziu à prepotência. Afinal, eu estava me despindo de fantasias mentirosas que usava desde sempre. Eu falo a verdade, os outros mentem. Logo, sou superior. É o nível 1 da honestidade radical: revelar fatos sobre você. A súbita sensação de prazer deu um verniz de legitimidade a explosões grosseiras. “Você é pago para escrever qualquer lixo que sai da cabeça sem ninguém para questionar”, disse a um amigo temporariamente insatisfeito no emprego.

“Não vou divulgar a pesquisa, isso é um porre”, a uma prima que pediu ajuda para colher respostas para um trabalho de faculdade. “Se você tirar o quebra-mato, seu carro ficará muito efeminado”, a um editor desta revista. Cheguei a xingar uma colega em um dia de estresse. Estaria perdoado pela sinceridade. Mas não é assim. Extravasar raiva é um exercício que precisa ser usado a seu favor (veja mais nos boxes). Falar o que vem à cabeça não faz de mim uma pessoa necessariamente honesta. O caminho é outro.

Discutindo a relação

“Você só quer me pegar?”, perguntou uma garota no bar, na lata. “Sim”, respondi. “E só quer isso de mim?”, insistiu. “Não. Às vezes tenho vontade de conversar.” Achei que levaria um tapa (que foi o que aconteceu quando uma amiga perguntou o que eu tinha achado do seu corte novo de cabelo e respondi sem piscar “Está pronta para o abate”), mas não. Ela queria que fosse algo com sentimento. Fui sincero. Então não houve nada. Mas não dá para ser direto e honesto assim sempre na hora de paquerar.

Uma pesquisa com universitários americanos diz que 34% dos homens admitiram mentir para ficar com alguém. E 11% das mulheres mentem sobre peso em sites de relacionamento, segundo a empresa de segurança online Symantec. Blanton defende que a honestidade é o caminho da felicidade em qualquer tipo de relacionamento. Então vamos lá.

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Outra garota perguntou, no 10º dia, o que eu faria no feriado. “Nada.” “Que coincidência, eu também.” Perguntei se era uma indireta para chamá-la para sair. “Não, sou eu te chamando para sair, se estiver afim.” Fiquei impaciente e expliquei que a grafia certa é “a fim”. “Obrigada, editor.” A conversa acabou. Ela não me procurou mais.

Na 4ª semana, a superioridade virou uma sensação de estar se despindo em público. Incômodo, mas com certa dose de liberdade. Bastava não explodir tanto, apenas falar o que sentia e convidar as pessoas a compartilhar a sinceridade. Dói? Muitas vezes. É claro que falar “Olha, achava que tínhamos futuro, mas não vejo nada mais do que diversão em você, ainda gosto de outra” pode ser um caroço de azeitona na garganta. É muito mais fácil desconversar até que a pessoa desista. Aliás, “não há nada de errado, estou bem” é a mentira mais contada por mulheres e a segunda mais usada por homens, segundo o Museu de Ciência de Londres. Quem nunca?

Eu estava chegando ao nível 2 da honestidade radical: ser sincero com os sentimentos. Mas para isso precisava de mais dedicação das pessoas à volta. Quando a sinceridade está em via de mão única, é difícil. No 14º dia, em um bar, disse a uma menina frases do tipo: “Você tem uma desagradável necessidade de ser descolada” e “Para que escrever um livro de boatos sobre os outros, procure algo mais digno na vida”.

A única reação que tive como resposta foi um clima pesado na mesa e um olhar de pouco caso dela. Mas, no 22º dia, retomamos a conversa. Ela saiu da defensiva e tivemos um papo sincero pela primeira vez desde que a conheci. Mas foi só naquela noite. O casaco de couro, o batom vermelho e a pose blasé voltaram no dia seguinte. Pelo menos em público.

Ao dizer somente a verdade, você se abraça a ela porque é o que tem a oferecer. No 8º dia, antes da despedida da banda de uns amigos, um deles me perguntou sobre seu futuro musical. Ele estava emotivo, claro. E eu não podia mentir. Demorei alguns instantes para falar o que sentia: “Você precisa se dedicar mais a se divertir do que a tentar fazer sucesso. Não deposite nos outros colegas de música sua grande vontade de ser famoso”.

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Eu me senti um idiota. Poderia ter dado rodeios e amaciado, falado algo que ele quisesse ouvir. Era o último show, caramba! Mas esse era o eu desprotegido falando, sentindo falta da manta quente da mentira. Fiquei tão perdido nesses pensamentos que quase não vi a reação dele: “Sim, você está certo”. Sinceridade às vezes dói mais na gente. E por causa disso podemos deixar de falar a verdade a quem mais importa.

Solidão antissocial

A reta final foi um caminho mais sofrido. Não aguentava mais me testar e ser testado a todo momento. Não queria mais pedir que as pessoas repetissem o que estavam falando porque eu não estava prestando atenção. Não aguentava mais ser encostado na parede. Nove anos de histórias, brigas e paixões não correspondidas vieram à tona. A maioria das conversas, reconheço, foi boa. Tive reveladoras discussões com amigos de trabalho, faculdade e escola, colegas, chefe, chefe do chefe, garçom do bar preferido, dono do bar preferido. Mas cansa. Demais. Só não discuti a relação com ex-namorada.

Contabilizei 8 pequenas mentiras no período. Coisas irrisórias que passariam despercebidas normalmente, como “Não tenho dinheiro” para o vendedor ambulante da rua, quando na verdade eu tinha. Tinha a sensação que perdi a necessidade de mentir à toa. Mesmo que me achasse um pouco antissocial. Os melhores amigos se afastaram por um tempo. Com um deles cortei a relação de vez ao dizer à sua namorada que a turma inteira estava melhor longe dele. Passei a sair menos.

Não tinha mais vontade de conversar. Somente com quem se dispusesse a tentar ser sincero de verdade comigo. O que foi ótimo. Renovei amizades. No saldo geral, apesar de tudo, ouvi mais elogios que críticas à minha conduta. Mesmo cansado, estava indo bem, já que Blanton havia alertado que o processo é lento. Pena que ele não pôde acompanhar o final da vivência, pois nossa troca de mensagens foi interrompida quando ele foi supostamente preso durante os protestos do movimento Ocupe Wall Street, nos EUA.

Tudo bem. Já estava bem menos apegado às mentiras fúteis que teimamos em incorporar no nosso cotidiano. Valorizava mais o que importava. “Acho que agora acertei”, disse minha mãe ao voltar à cozinha e preparar um macarrão. “Está ótimo”, respondi. Sincero.

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