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A ameaça dos radicais livres

Quando se respira, o oxigênio pode se transformar em radicais livres, moléculas capazes de atacar as células, até destruí-las. Ao observar essa metamorfose, os cientistas esperam descobrir novos tratamentos para uma série de doenças.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 5 mar 2024, 14h43 - Publicado em 31 out 1990, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

Ele são criadores de encrenca dentro das células, sempre furam a fila das substâncias que precisam ser usadas quebrando a ordem que garante o bom funcionamento do organismo. E isso não é nada perto da confusão que fazem ao arrancar moléculas das membranas celulares e dos genes. Esses verdadeiros anarquistas são os radicais livres, moléculas que reagem com qualquer substância que encontram pela frente. A cada cria, surgem novas evidências de que, agindo dessa maneira promíscua, os radicais estão por trás de problemas tão diversos como o câncer e os ataques cardíacos. Alguns cientistas também desconfiam que o processo de envelhecimento seria o acúmulo dos estragos provocados por esses baderneiros. À primeira vista, portanto, caso tudo se confirme, pode parecer simples acabar com uma série de males: em teoria, basta impedir a ação dos radicais. Mas tal como acontece na política, também para a Biologia isso tem sido impossível, por uma razão muito simples: a principal fonte dos radicais é o oxigênio, um gás indispensável para a maioria dos seres vivos.

Radicais livres são, por definição moléculas instáveis, cujos átomos possuem um número ímpar de elétrons – e o elétron, a partícula eletricamente negativa que gira em torno do núcleo atômico, prefere estar acompanhado. Quando isso não acontece, a molécula incompleta é capaz de capturar elétrons de qualquer outro átomo, para recuperar o número par. Só há 21 anos se confirmou que o oxigênio é capaz de formar essas moléculas altamente reativas dentro dos organismos. Foi quando os bioquímicos americanos Irwin Fridovich e Joe McCord descobriram que quase todos os seres aeróbicos, ou seja, que respiram, sintetizam uma enzima especializada em se livrar de certo radical derivado daquele gás — sinal de que a substância existia, ali, nas células e, pior, tinha efeitos nocivos, a ponto de haver um mecanismo natural para bloqueá-las. De lá para cá, cientistas do mundo inteiro investigam o papel dos radicais nos seres vivos.

“Há muito tempo já se especulava sobre o assunto”, conta o bioquímico Etelvino José Bechara, da Universidade de São Paulo, que pesquisa radicais há dezessete anos. “Existia, porém, um imenso tabu. Era difícil cogitar que o oxigênio, essencial à vida, tinha um lado vilão.” No entanto, hoje se sabe que, ao se respirar, 2 a 5 por cento desse gás acabam gerando radicais livres. O cenário dessa transformação, de mocinho para bandido, na maioria das vezes é a mitocôndria, uma organela com formato de feijão, cem vezes menor do que um grão de areia, que se encontra mergulhada no citoplasma, como é chamado o líquido que recheia as células. Essa estrutura minúscula pode ser comparada ao motor onde o combustível — no caso do organismo, a glicose — é queimado, produzindo energia, gás carbônico e água.

Para se ligar a dois átomos de hidrogênio e formar uma molécula de água, o átomo de oxigênio da respiração precisa ganhar quatro elétrons. O problema é que nem sempre ele se transforma diretamente em água, pois em alguns pontos da mitocôndria aparece o que os cientistas chamam vazamentos. O nome do fenômeno não poderia descrevê-lo melhor: um elétron literalmente escapa e é logo capturado pela molécula de oxigênio. Esse gás tende naturalmente a receber um elétron de cada vez em vez de quatro, de supetão. Mas, ao receber elétrons um por um, ele passa por três estágios intermediários, antes de virar água. Nesses estágios o oxigênio é capaz de reagir com moléculas da própria célula.

Ou seja, ao ganhar um único elétron, graças ao vazamento na mitocôndria, o oxigênio se transforma em superóxido relativamente fraco, mas capaz de roubar um elétron de outra molécula para, assim, formar um par. Quando isso acontece, o superóxido volta a ser uma substância estável, o peróxido de hidrogênio, que nada mais é do que água oxigenada. A água oxigenada, portanto não é um radical, porque possui um número par de elétrons — dois a mais do que o oxigênio. Mas, ao contrário dos radicais que, de tão rápidos, reagem no mesmo lugar onde são formados, as moléculas de água oxigenada são capazes de passear de uma célula para outra, o que aumenta a probabilidade de esbarrarem em um átomo de ferro — a atração entre os dois elementos químicos pode ser fatal para a célula. Em outras palavras, ao se combinar com o ferro, a água oxigenada ganha mais um elétron – o equivalente ao oxigênio com três elétrons extras —, formando o terceiro e mais terrível dos radicais: a hidroxila, que reage instantaneamente com moléculas da célula.

Surpresa para os cientistas foi descobrir que os radicais aumentam quando se praticam exercícios físicos. “Talvez os genes programem a célula para consumir certa quantidade de oxigênio e, acima dessa dose estipulada, a mitocôndria não dê conta de transformá-lo diretamente em água”, declara Bechara, que realiza uma pesquisa nessa área. A situação inversa, ou seja, quando a célula deixa de receber oxigênio, pode provocar igualmente um crescimento das moléculas reativas. Se um coágulo obstrui uma coronária, o coração termina danificado, levando muitas vezes a pessoa à morte: é o infarto. Acreditava-se que isso acontecia porque as células cardíacas ficavam sem oxigenação.

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Estudos realizados nos últimos dez anos, porém, constataram que uma célula sobrevive mais tempo sem oxigênio do que se supunha, mas, nesse período, continua juntando no citoplasma os rejeitos do trabalho de suas organelas. Quando o coágulo desobstrui o vaso e a célula volta a receber o oxigênio, todo o gás acaba reagindo com aquela espécie de lixo, formando radicais livres em doses brutais. Por isso hoje em dia, naquelas cirurgias em que a circulação deve ser temporariamente interrompida com pinças especiais nas artérias, os médicos injetam um coquetel de antioxidantes nos pacientes. Antioxidantes é como são conhecidas as substâncias capazes de anular o efeito dos radicais de oxigênio. Sem saída diante da produção constante de radicais, graças à respiração, as células criaram enzimas para combatê-los. Uma dessas enzimas, a superóxido-dismutase, transforma o superóxido em água oxigenada; em seguida, entram em cena a glutationa e a catalase, que transformam aquela molécula de água oxigenada na inofensiva água pura. “Com o tempo, porém, o organismo fabrica menos antioxidantes, aumentando a chance de um radical atacar”, lamenta a bioquímica Dulcinéa Parra Abdalla, da Universidade de São Paulo.

Há doze anos, ela estuda a relação dessas moléculas com diversas doenças, fazendo parte da pequena comunidade de cientistas brasileiros que se dedica aos radicais com exclusividade. “Não devemos ser mais do que uma dúzia”, ela calcula. Sua pretensão, ao bisbilhotar as estratégias dos radicais em células cultivadas em laboratório, é ajudar na descoberta de novos tratamentos. “Talvez, a gente consiga drogas para bloquear radicais. Mas, por mais substâncias defensoras que haja na célula, no final é uma questão de probabilidade”, admite a pesquisadora.

É, de fato, puro acaso. Se ao nascer um radical tromba com outro radical, os dois se aniquilam, porque combinam seus respectivos elétrons solitários. Ou ainda, o radical pode encontrar uma enzima antioxidante. Finalmente, é certo que algumas vitaminas, ingeridas na alimentação, também são capazes de anulá-los: é o caso da vitamina E, que, misturada às moléculas da parece celular, funciona como uma barreira, doando um elétron para o radical, tornando-o estável; a vitamina C tem o mesmo efeito, só que por ser solúvel em água, fica montando guarda no meio do citoplasma. Se o radical, contudo, não é aniquilado por nenhum desses meios, então ataca proteínas que compõem a célula, iniciando uma reação em cadeia. O radical livre seqüestra um elétron da proteína, que, desfalcada, se torna ela também um novo radical, roubando um elétron da molécula vizinha, que passa a ser um radical e assim por diante.

O problema, que todos os químicos conhecem bem, é que não se tiram ou acrescentam impunemente elétrons em uma molécula, sem alterar as suas características. “No final da cadeia, podem surgir produtos tóxicos para a célula”, nota Dulcinéa. Nas membranas que revestem tanto as células como as suas estruturadas, reações disparadas pelos radicais terminam destruindo moléculas responsáveis pela flexibilidade desses tecidos. Depois de sucessivos ataques de radicais, a célula fica enrijecida. É como se surgissem trincas em sua parede protetora e, desse modo, ela vai perdendo o controle do que entra e do que sai — deixa de evitar a invasão de compostos tóxicos e permite a fuga de substâncias das quais necessita. Diante de tamanha falta de organização, a célula não trabalha direito, perdendo funcionalidade, e acaba morrendo.

Todo esse processo, em um universo de milésimos de milímetro, explica por que com a idade, por exemplo, a pele enruga, a memória começa a falhar, o fígado se torna mais lento. “Envelhecer parece ser um aumento na porcentagem de células danificadas pelos radicais”, acredita Dulcinéa. Atualmente, a pesquisadora investiga, ao lado do químico cearense Hugo Monteiro, da Fundação Hemocentro, em São Paulo, a relação entre radicais livres e a formação das terríveis placas nas artérias, na chamada aterosclerose. Monteiro passou os últimos dois anos na Nova Zelândia e nos Estados Unidos estudando os mecanismos das inflamações, em que os radicais livres têm, enfim, uma ação positiva para a saúde. “Como na inflamação, o problema do colesterol envolve células do sistema imunológico”, justifica o químico.

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Os radicais são capazes de reagir com o chamado lipídio de baixa densidade, ou mau colesterol, que circula no sangue. Essa gordura alterada pelo oxigênio chama a atenção de células imunológicas conhecidas por macrófagos, que fazem um serviço de limpeza no organismo, engolindo uma molécula de colesterol atrás da outra. Essas células, contudo, são convocadas para recuperar eventuais machucados na parede dos vasos e, chegando ali, muitas vezes estouram de tão gorduchas, espalhando o conteúdo oxidado pela lesão. Isso atrai mais macrófagos para o lugar, criando aos poucos um monte de colesterol depositado, que pode impedir o livre trânsito do sangue. Monteiro e Dulcinéa desconfiam que a ação dos radicais vai além disso.

O cientista levanta a pista dessa suspeita: “O grande destruidor é o radical hidroxila, que aparece apenas quando se combina água oxigenada e ferro”. O organismo, cauteloso, guarda microscópicos grãos desse metal em proteínas especiais, que só liberam a substância quando é muito necessário. Mas, em tubos de ensaio, Monteiro tem observado que as células imunológicas conseguem retirar o ferro das proteínas que o embalam. Com água oxigenada por perto, cria-se uma bomba capaz de arrasar vasos e artérias. Recentemente, cientistas japoneses encontraram água oxigenada na fumaça de cigarro o que talvez esclareça a maior incidência de problemas nas artérias nos fumantes.

Segundo o bioquímico Rogério Meneghini, da USP, o efeito dessa combinação bombástica pode ser visto a olho nu, quando por exemplo um surfista descolore os cabelos com água oxigenada. “A substância reage com o ferro presente nos cabelos que, em seguida, graças ao radical hidroxila formado, destrói os pigmentos”, descreve o pesquisador. Meneghini é um dos pioneiros no estudo dos efeitos dos radicais nos genes. Em 1984, sua equipe propôs que o núcleo celular seria atacado pelo radical hidroxila, graças ao ferro existente nos cromossomos. “Ali, no núcleo celular, é como se os radicais livres riscassem um disquete de computador”, ele compara. “Os dados perdidos, por azar, podem controlar o crescimento. Sem eles, a célula inicia uma multiplicação sem freios, característica do câncer.” No entanto, é possível respirar com alívio: o organismo dá conta de sua produção habitual de oxigênio reativo. Os problemas de saúde aparecem apenas se a quota de radicais é excessiva — um risco que, sabe-se, existe para quem consome muitos medicamentos, álcool, cigarros e ainda traga os poluentes encontrados na atmosfera das grandes cidades.

 

 

Para saber mais:

Longa vida aos moços

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(SUPER número 5, ano 4)

 

Vitaminas, você tem que tomar

(SUPER número 3, ano 9)

 

Feitiço do tempo

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(SUPER número 4, ano 11)

 

 

 

Mocinhos e bandidos

A mitocôndria pode ser comparada ao motor que gera energia para a célula trabalhar, usando o oxigênio para queimar o combustível, transformando-o em água e gás carbônico. Eventualmente, vazamentos nas mitocôndrias deixam escapar espécies de oxigênio, como o radical peróxido e a água oxigenada, que podem reagir com moléculas das células.

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Verdadeiros guardiões barram os baderneiros radicais e a água oxigenada, antes que desencadeiem reações perigosas para a organização celular. É o caso de enzimas fabricadas pela própria célula e das vitaminas C e E, ingeridas nos alimentos. Por azar, uma molécula de oxigênio reativo pode escapar. Se for de água oxigenada, ao encontrar uma molécula de ferro, faz surgir o radical hidroxila, capaz de reagir imediatamente com qualquer coisa. O radical hidroxila pode reagir com a membrana celular, provocando o envelhecimento.

Outro alvo desse radical são os lipídios de baixa densidade, ou mau colesterol, que passam a se depositar nos vasos sangüíneos. A hidroxila também pode cancelar as informações gravadas nos genes, o que eventualmente dispara o câncer.

 

 

 

Por que se respira

O aparecimento da respiração, há 500 milhões de anos, nos chamados seres aeróbicos, foi um tremendo avanço na evolução das espécies.

Assim, alguns seres puderam usar o oxigênio para transformar a glicose dos nutrientes em gás carbônico e água. Para formar esse líquido, as moléculas de glicose transferem, de uma só vez, quatro elétrons para o átomo do oxigênio, e este salto formidável gera muita energia. Os seres primitivos que não utilizavam oxigênio, como o levedo de cerveja, conseguem transformar a mesma glicose em gás carbônico e álcool, em vez de água.

Resultado: cem gramas de glicose produzem 381 000 calorias – unidade que mede a energia nos organismos – na reação com o oxigênio e apenas 31 000 calorias na reação típica das espécies que não respiram. Uma célula do pulmão humano produz 38 vezes mais energia do que gasta para trabalhar.

É uma economia e tanto: se o homem não respirasse, deveria ingerir doze vezes mais nutrientes para sobreviver.

 

 

 

Oxigênio extra

Durante dois meses, um grupo de ratinhos nadou uma hora por dia na piscina montada em um laboratório na Universidade de São Paulo. Após as sessões diárias, os cientistas examinavam a taxa de enzimas antioxidantes no sangue das cobaias, que parecia sempre maior do que o normal. “O aumento nessa defesa indicava que os ratinhos produziam mais radicais livres, por causa da respiração acelerada durante o exercício”, raciocina o bioquímico Etelvino Bechara, um dos coordenadores da pesquisa, cujos resultados ainda estão sendo analisados. Mas já se sabe que, depois desse período de treinamento, cerca de uma em cada cem fibras musculares vermelhas dos animais acabou danificada por radicais livres.

Segundo Bechara, o fato de o esforço físico aumentar os radicais, devido ao consumo extra de oxigênio, talvez explique por que é comum encontrar ferro no suor de atletas: o organismo, zeloso, provavelmente prefere se livrar dessa substância, antes que ela ajude a formar os perigosas radicais hidroxilas. “É por isso que os médicos, freqüentemente, diagnosticam anemia por falta de ferro em corredores de maratona”, exemplifica o pesquisador.

 

 

 

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