E se a China se tornar os novos Estados Unidos?
Ser potência militar e econômica é só o começo. A China ainda vai ditar moda e dominar a indústria cultural. O "sonho chinês" vai mudar a vida de muita gente - inclusive a de um casal que você vai conhecer agora
Emiliano Urbim
“Que foi, minha flor-de-lótus?”
Ela não queria contar ali. Mas quando Robson viu Kellen chorando, a pergunta veio. E a notícia junto.
No começo da tarde, tinham concordado em ir ao cinema no Xangai Shopping – o do Chinatown só tinha filme americano, muito cabeça. Saíram atrasados porque ela demorou até acertar a maquiagem que deixava o olho bem puxadinho. Sejamos justos: se atrasaram também porque, quando ela já estava pronta, Robson ficou assistindo aos gols dos maiores craques do mundo na Super Liga Chinesa.
O horóscopo na TV do metrô chamou atenção dos dois. A previsão para eles, nascidos no ano do Tigre, falava em “avaliar finanças”, “poder de sedução a mil” e “grande mudança no horizonte”. Robson achou que não tinha a ver, Kellen disse que talvez tivesse.
“Não tinha que valer para os dois? Nunca entendo.”
“Quando o vento sopra, alguns constroem muralhas. Outros constroem moinhos.”
“OK: o que eu nunca entendo são os teus provérbios.”
Chegaram tarde – estavam lotadas todas as sessões de Taikonautas em Marte. Houve troca de acusações (“maquiagem”, “futebol”) seguida de reconciliação (“pazes?”, “pazes”) e busca por um novo filme.
“Americâncer. Mais um de terroristas americanos.”
“Clichê.”
“Condenados ao Riso. No corredor da morte, um guarda e um preso trocam de identidade e…”
“Sério?”
“Mãe Tigre, aquela animação. Só que é dublado.”
“Não tem uma comédia romântica?”
“Um Bom Partido. Garota prodígio do comunismo…”
“A protagonista sempre tem profissão bacana.”
“…deve decidir entre a política e o amor.”
“Pode ser esse?”
Tinham duas horas até a próxima sessão. Tentaram trocar seus feiosos iPhones por estilosos Xiaomi, mas ainda faltou dinheiro. Numa boutique, Robson viu uma jaqueta de couro vermelha. “Ó, tipo cantor de mandopop.” Descobriu que era um produto europeu. “A gente vai pensando que é made in china… Aliás, por que ainda escrevem em inglês nas etiquetas? Coisa de velho.” Kellen se encantou com um vestido verde escuro, indiscutivelmente um original chinês. Imaginou-se em um filme de Wong-Kar Wai, passeando pelas margens do rio Yangtze, com trilha sonora de alguma banda de C-rock… Robson pôs a mão em seu ombro.
“Preciso ir ao banheiro.”
Ela foi também, saiu antes e sentou em um banco em frente a uma agência de viagens. “Maravilhas da China – 12 dias.” “China Tradicional – 10 dias.” “China Encantadora – 13 dias.” Fotos da Grande Muralha, da Cidade Proibida, dos cassinos de Macau, da mãe panda abraçando seu ursinho. Calma, Kellen, calma.
“Vamos?”
Robson a tirou do transe.
Na lanchonete do cinema, ele pegou bifun com frango. Ela, gafanhoto frito – estava com uma cara boa.
Um Bom Partido era uma comédia romântica típica. Tinha amor à primeira vista, briga à segunda vista, correria até o aeroporto e final feliz. Mas Kellen estava chorando. Robson, sem entender nada, perguntou.
“Que foi, minha flor-de-lótus?”
A sala escura foi ficando vazia.
“Não foi o filme, né?”
As luzes se acenderam. As lágrimas tinham borrado toda a maquiagem.
“Eu vou embora, Robson.”
“Claro, vamos”, ele disse em pé.
“Eu vou embora para a China.”
Robson sentou de novo.
“É lá que está tudo que eu quero.”
“Calma, minha flor. Eu te entendo, mas calma.”
“Você não entende. Surgiu uma vaga no escritório de Xangai. Eu me candidatei e fui chamada. É lá que estão as ideias novas, as pessoas que transformam o mundo. É lá que as coisas funcionam, que as coisas acontecem. É de lá que vem o celular que eu quero ter!”
“Kellen…”
“Olha esse shopping. É um cenário, uma imitação de outro lugar… Um lugar real. É lá que eu quero estar.”
“E eu?”
Kellen se levantou e enxugou as lágrimas.
“Quando o vento sopra, alguns constroem muralhas. Outros constroem moinhos.”
Robson ficou sentado na sala vazia até que os últimos ideogramas subissem na tela.