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E se a criogenia funcionasse?

Já que ainda é ficção científica, fizemos a nossa: como seria um mundo em que a criogenia fosse comum há décadas?

Por Emiliano Urbim
Atualizado em 9 fev 2017, 15h48 - Publicado em 9 dez 2014, 22h00

14 de agosto de 1962
Mulher bonita: Brigitte Bardot. Comida gostosa: bife à parmegiana. Time do coração: Botafogo. Música boa: Garota de Ipanema. Melhor lugar: praia de Ipanema. Viagem inesquecível… acho que nenhuma vai superar essa que eu vou fazer agora.

Foi o doutor quem me pediu para listar minhas coisas favoritas. É um exercício: eles não sabem como vai estar minha memória quando eu for descongelado. O que não deve demorar muito. A quimioterapia não funcionou, mas estamos na Era Espacial, a ciência avança na velocidade de foguetes. Logo o homem vai estar na Lua. Perto disso, a cura do câncer é fichinha.

Hora de entrar na máquina. Volto logo!

2 de dezembro de 1969

Que semana…

Acordei depois de sete anos e parecia que tinha tirado só uma soneca. Enquanto me recuperava do descongelamento, o doutor me garantiu que tudo ia dar certo. Novas drogas expandiriam minha mente, minha mente expandida atacaria o tumor, o tumor regridiria e pronto. O médico já havia provado da coisa. Garantia, no mínimo, a expansão da mente.

Não deu certo.

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Em algumas horas volto para a câmara de criogenia. Tenho fé que a próxima vez é a boa: este ano os americanos foram e voltaram da Lua. Até breve!

P.S.: Mulher bonita, assistente do doutor.

4 de abril de 1985

Vi meus pais. Pareciam meus avós. Meus avós nem vieram. Minha namorada de 62 também não veio. Mandou um abraço e uma foto com sua família. O doutor tenta disfarçar a idade com o que, suponho, sejam as roupas da moda. Sigo com 18 anos.

Dessa vez me descongelaram para tentar um tratamento com um recurso revolucionário: raios laser.

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Mas o tumor está como sempre esteve.

O doutor ainda tem esperança. Eu não.

Mamãe já esperava – dá para sentir o desprezo na voz dela quando resmunga “raios laser”. Papai chorava. Pedi que ele me ensinasse a dar nó em gravata. Nos atrapalhamos, ele seguiu chorando, mas riu também.

Perguntei do mundo. A TV é colorida. Pedem pizza por telefone. Os astronautas andam de ônibus espacial. Garota de Ipanema no walkman é radical.

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2 de fevereiro de 1992

Acordei e vi um rosto estranho. O advogado.

Desesperados, meus pais haviam aderido à criogenia. Queriam sair quando eu fosse descongelado e curado. Aderiram a um plano mais barato, vulnerável a falhas de energia, veio um apagão e, enfim, o advogado sentia muito, mas, como único herdeiro, eu precisava assinar alguns papéis antes de voltar para a câmara.

Aproveitando a oportunidade, o doutor mencionou uma linha de pesquisa muito promissora. Pensei em minha mãe resmungando: “células-tronco”.

1º de janeiro de 2000

Talvez as falhas de memória previstas tenham começado. Não tenho certeza de que os acontecimentos das últimas horas foram reais.

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O doutor e sua assistente – agora a senhora sua esposa – me acordaram na noite de 31 de dezembro. Não, ainda não havia cura. Muito bêbados e muito nervosos, me explicaram que haviam corrido para o laboratório me despertar antes do “bug do milênio”. Pelo que entendi, os computadores iam pifar achando que depois de 1999 vinha 1900, iam ficar perdidos no tempo. Me solidarizei com as máquinas.

O plano: passar a virada fora e, se o sistema não caísse, retornar. Não questionei. Pedi champagne.

Não achei que fosse fazer mal. E, a essa altura, o que é fazer mal? E se eu tivesse de morrer em 2000? E se eu quisesse morrer em 2000? E se fosse um sonho e eu acordasse em 1962?

Os fogos estouraram, os computadores seguiram. Bug nenhum. Escrevi esse registro. Brindamos à cura. Feliz ano-novo. De volta à geladeira.

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5 de julho de 2037

Suco de quiabo. Pode parecere engraçado, mas foi o que me curou. Estou bilionário: esse tempo todo minha caderneta de poupança ficou rendendo. Tenho a vida pela frente – e essa neta do doutor é um pedaço de mau caminho. Mas, antes de tudo, eu quero comer um bife à parmegiana. Em Marte.

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