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El Niño. A receita da confusão

Um ano depois de sua última aparição, que durou de 1992 a 1995, o principal causador de transtornos climáticos no planeta já está de novo em ação. E com força total.

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Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 31 out 1997, 22h00

Flávio Dieguez e Cássio Leite Vieira

Quando ele chega, tudo muda de lugar. Ventos que durante milênios sopravam num mesmo sentido passam a correr de trás para a frente. Chuvas viram secas, calor dá lugar a frio e o que era gélido começa a torrar. O responsável por tudo, o El Niño, é o primeiro indício descoberto pelos meteorologistas de que o clima pode mudar em escala planetária num período muito curto, praticamente de um ano para outro. Nesta reportagem você vai descobrir como se arma o escarcéu, o que a ciência sabe sobre ele e como os seus efeitos vão se espalhar pelo planeta entre o final deste ano e o começo do ano que vem.

Uma língua de calor numa gangorra de ar

O alarme veio dos sensores do satélite americano Noaa, o poderoso vigilante do clima do mundo. No dia 2 de março, eles registraram uma manchinha de calor no Pacífico, a cerca de 100 quilômetros da costa do Peru. Como logo ficaria provado, ali estava o primeiro sinal de que o clima, este ano, ia sair dos trilhos. Era um embrião do El Niño, que, tecnicamente, é exatamente isso: um aquecimento acima do normal das águas do Pacífico.

Em março, elas estavam só 1 ou 2 graus Celsius acima dos 24,5 que são normais. Em 15 de setembro, seis meses e meio depois, a diferença tinha chegado a 5 graus. E continuou subindo. E a manchinha no mar virou uma língua de calor, com quase 10 000 quilômetros de extensão por 2 000 de largura.

“A rapidez da evolução do El Niño foi um espanto”, disse à SUPER o especialista Gilvan Oliveira, do Cptec, o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos, em Cachoeira Paulista. No dia 9 de junho, o Cptec fez bonito: foi a primeira instituição do mundo a matar a charada. Foi ele quem anunciou que a manchinha de calor, que logo se transformaria na grande língua, era de fato a instalação do El Niño. Era quente, líquido e certo: logo viriam as inundações, tempestades, nevascas e secas.

Se o El Niño causa tudo isso, o que é, afinal, que causa o El Niño? A melhor resposta existente parece piada: o que causa o El Niño é uma gangorra. Sempre que a pressão atmosférica sobe no Oceano Índico, ela desce no Pacífico. E vice-versa. Notados há poucas décadas, o El Niño e a gangorra são traços milenares do clima. A gangorra intrigante, que foi ironizada quando anunciada pelo inglês Gilbert Walker, em 1928, não só era para ser levada a sério, como está na raiz desse hospício instalado no nosso planeta. Louco não foi o descobridor da gangorra da pressão. Louco mesmo era o clima.

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Um jogo de empurra sobre o planeta

A peça-chave do clima planetário é um jogo de empurra que faz a pressão atmosférica subir num ponto e, ao mesmo tempo, descer num outro canto da Terra. É chamado de Oscilação Sul e, como faz uma aliança com o El Niño, os cientistas, agora, sempre falam no par El Niño-Oscilação Sul, ou Enso, que é a sua sigla em inglês. Hoje, é difícil descer num lugar do mundo onde o Enso não se intrometa.

Vamos lá. Pousando no Paquistão, em agosto, você presenciaria crianças com sede, arrastando as sandálias no chão rachado de tão seco. É que o Enso faz a pressão subir sobre o Oceano Índico. Traduzindo, faz o ar descer do alto da atmosfera para a superfície. Assim, empurra para longe a umidade das monções. E, sem esses ventos, não chega chuva no Paquistão.

Executivos esfogueados

Pulando daí para a Flórida, já no final do ano, você veria donas de casa na praia vigiando o horizonte. Torcendo para que o jogo das pressões despedasse os furacões lá no meio do Oceano Atlântico, bem antes de eles chegarem ao continente.

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Corta para o Japão. A cena são executivos esfogueados, em dezembro, porque o frio não chega, apesar de ter passado da hora. É que a pressão empurra o ar para baixo, espalhando as nuvens. Aí, o sol bate direto e eleva a temperatura.

No Nordeste, afinal, em março de 1988, os figurantes seriam homens e mulheres aflitas, correndo para cima e para baixo para resolver o problema da chuva que não cai. E a seca poderá vir por falta das frentes frias, vindas da Antártida, que o Enso promete bloquear.

É por tudo isso que boa parte da massa cinzenta queimada pelos estudiosos do clima, nos últimos quinze ou vinte anos, foi consumida para investigar a dupla El Niño-Oscilação Sul. Foram tantos estudos e análises que os cientistas já viram uma lógica dentro da loucura, e com isso fazem até previsões. “Observando os sinais de que o Enso está se formando, podemos antecipar as características do clima com antecedência de até dois anos”, diz o secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial, Godwin Obasi.

Os cientistas só não sabem dizer, ainda, qual é o gatilho que dispara o próprio transtorno. Há quem tente botar a culpa no efeito estufa, que é o excesso de calor provocado pela poluição industrial. Mas o Enso aparece em registros históricos, muito antes de existir indústria e poluição. Então, por enquanto, tentar forçar uma explicação só aumenta a doidice que já cerca o fenômeno. E aí, a loucura não é mais do clima. É da imaginação.

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A gestação no Pacífico

Compare o calor da água (vermelho) num ano em que não houve El Niño com dois anos em que ele apareceu.

15 de setembro de 1991: não há El Niño

16 de setembro de 1982: El Niño recorde

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16 de março de 1997: começa o deste ano

15 de junho de 1997: quente e subindo

14 de setembro de 1997: empate com 1982

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A máquina do tempo

Seu combustível é o Sol, que aquece a água, a terra e o ar.

A luz do solar faz a água virar vapor e formar nuvens. Ela também cria os ventos, pois o ar quente se expande e ocupa mais volume. Com isso, fica mais rarefeito, mais leve, e sobe. Sobra um vazio que o ar frio em volta corre para preencher. É o vento. Assim, arma-se um jogo de empurra em todo o planeta que, ao longo dos milênios, criou o clima.

Sob o Sol a água vira vapor. Nasce a chuva

O calor faz o ar subir, criando os ventos

No solo, a luz vira calor

Dois jeitos de ser

O El Niño nasce porque a atmosfera muda de cara.

Dentro da atmosfera, o ar circula junto à linha do equador como se estivesse encanado. Ele gira entre a superfície e o topo da atmosfera formando circuitos fechados, chamados células de Walker. Uma ao lado da outra, elas dão a volta ao mundo. Em 1928, o inglês Gilbert Walker viu que as células amarravam a pressão atmosférica entre dois oceanos: o Índico e o Pacífico. Se a pressão aumenta de um lado, ela diminui do outro, e vice-versa. Ou seja, se o ar pressiona o cidadão contra o solo de um lado, do outro ele sobe e alivia a força, do outro. O jogo das pressões corre pelas células e dá a volta ao mundo. Você vai ver, aqui, como esse jogo cria o El Niño.

O pacífico sem a confusão …

1. É assim que o ar circula na atmosfera, definindo a força e a direção do vento na superfície do oceano.

2. Os ventos sobem e levam umidade para formar nuvens de chuva sobre toda esta região.

3. A brisa empurra a água para a Austrália. O nível do oceano fica 60 centímetros mais alto do que no Peru.

4. Aqui o nível do oceano é baixo. O plâncton do fundo vem à tona e vira comida de peixe. A pesca é farta.

… E com o El Niño

1. A circulação do ar muda em relação à situação normal (acima). O vento agora desce e mata a chuva.

2. O ar úmido agora sobe longe da Austrália. As chuvas caem em alto-mar e o país sofre.

3. Com o vento invertido, a água superficial, aquecida, permanece na costa do Peru. Esse calor é que é a marca do El Niño.

4. O plâncton do fundo não chega à superfície. Os peixes passam fome, procriam menos e as redes ficam vazias.

Transtornos no bolso

O El Niño de 1982 custou 13 bilhões de dólares.

O El Niño de 1982 foi o mais forte do século, até agora. Na América do Sul, quem mais sofreu foi o Peru. A pesca, uma atividade econômica chave, ficou prejudicada. As enchentes também atrapalharam o Uruguai, a Argentina, o Paraguai e o Brasil, na Região Sul. O Nordeste sofreu com a seca. O prejuízo total na América do Sul foi de 3 bilhões de dólares, e, em todo o planeta, 13 bilhões. Leia abaixo o custo dos desastres.

Enchentes

O prejuízo recorde, de 1,3 bilhão de dólares, coube aos Estados Unidos. O Peru e o Equador arcaram com 650 000 dólares, vindo a Bolívia em seguida, com 300 000.

Furacões

Causaram impacto bem menor. O Havaí pagou o maior preço, 230 000 dólares. Ao Taiti couberam 50 000. Os dois lugares ficam no Pacífico.

Secas

A Austrália perdeu 2,5 milhões de dólares. Vieram depois a África do Sul com 1 milhão, a Indonésia com 500 000, as Filipinas com 450 000. A América Central arcou com 600 000 dólares.

Efeitos colaterais daqui até o Japão

Veja as conseqüências que o mundo pode esperar.

O El Niño pode vir de dois em dois anos, ou ficar até sete anos sem dar o ar da graça. Da última vez, apareceu em 1990 e ficou por aí até o início de 1995. E nem deu uma pausa: voltou com tudo, este ano, e já se compara com o de 1982, o mais forte do século até agora. Deve durar pelo menos até março de 1998.

Como ele chegou aqui

Confusões que os brasileiros já viram

O especialista Gilvan Oliveira fez para a SUPER uma lista das mudanças que o El Niño já provocou no Brasil. Uma alteração típica foi o aumento das chuvas na Região Sul, durante o mês de agosto. Já na Serra da Mantiqueira e no litoral da Bahia caiu menos água do que deveria. Os termômetros subiram, em geral, 2 ou 3 graus Celsius no leste de São Paulo, no nordeste de Goiás e no sul do Mato Grosso do Sul. No centro da Bahia e no sul do Piauí o tempo ficou até 3 graus mais fresco. Daqui para a frente, todos concordam que vai chover mais no Sul e menos no Nordeste. Também vai ficar mais frio no Sul e mais quente no Nordeste.

Jato antinordeste…

Correntes de jato são rios de ar que disparam a 12 000 metros de altura. Com o El Niño, uma delas bloqueia as frentes frias que normalmente criam as chuvas do Nordeste em fevereiro e março.

…E antisul

Na Região Sul, o bloqueio da corrente tem um efeito oposto. Ele trava as frentes frias sobre ela, provocando chuvas torrenciais e enchentes.

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