Fofuchos de Darwin
Como a evolução produziu bebês rechonchudos, lindinhos e completamente dependentes dos papais e das mamães
É preciso ter um coração de pedra no peito para não se derreter ao menos um pouquinho diante das bochechas de um bebê. Se o infante em questão tiver, ainda por cima, braços roliços, olhos enormes e sorriso cativante, quase todo mundo cai na dele feito um patinho. Não é por acaso: tudo indica que milhões de anos de evolução moldaram adultos e até crianças mais velhas para ficarem de quatro diante de tanta fofice.
Esse processo de “sobrevivência dos mais fofos” começou com os primeiros vertebrados e provavelmente alcançou seu ápice nos seres humanos, talvez os animais que tenham dominado com mais habilidade a arte de ser bebê. Somos tão fanáticos por crianças pequenas, aliás, que essa paixão acabou influenciando até a evolução artificial dos nossos bichos domésticos – produzimos cachorrinhos que mantêm a cara de bebê depois de adultos por seleção genética. E há indícios fortes de que esse processo de “babyficação intensiva” teve um papel importante para que o Homo sapiens desenvolvesse sua característica mais importante: o cérebro grandalhão e complexo que todos adoramos ter.
Coisa de embrião
Humanos, cachorros, canários e lambaris compartilham, como sabemos, uma origem evolutiva comum, descendendo de um mesmo ancestral – um vertebrado primitivo que deve ter vivido no mar há uns 600 milhões de anos, a julgar pelos dados vindos de fósseis e do DNA. Essa ascendência compartilhada deixou uma série de marcas na maneira como o organismo de todos esses bichos se desenvolve, e uma das mais importantes é um “programa” comum de desenvolvimento embrionário: aquele processo que faz uma única célula, oriunda da junção entre o óvulo da mamãe e o espermatozoide do papai, acabar virando um indivíduo adulto.
Acontece que um dos elementos mais constantes dessa “linha de montagem” biológica em quase todos os vertebrados são as feições que todos nós aprendemos a associar a bebês, independentemente da espécie. Embriões de peixe e tartaruguinhas que acabaram de sair do ovo já ostentam olhos grandalhões, focinho encurtado e membros (ou nadadeiras) proporcionalmente mais curtos, a exemplo do que vemos em filhotes de mamíferos como nós.
Para entender melhor o significado desse fato, é importante levar em conta que a evolução é mestra em pegar características já existentes e usá-las para criar “gambiarras” se isso for capaz de favorecer as chances de um indivíduo de sobreviver e se reproduzir. A “cara de bebê” de um peixinho ou de uma tartaruga-marinha recém-nascida muitas vezes é só um subproduto do desenvolvimento embrionário e não diz absolutamente nada para os pais desses bichos – até porque eles botam centenas ou milhares de ovos e picam a mula, deixando a prole à sua própria sorte. No entanto, se a espécie por algum motivo desenvolve o chamado cuidado parental – ou seja, a tendência de os pais cuidarem de seus bebês após o nascimento -, surge o incentivo para que o processo de “babyficação” se intensifique.
Nesses casos, a carinha típica dos filhotes deixa de ser uma característica neutra para virar um sinalizador – ou, se você quiser um termo mais sinistro, um manipulador. Afinal, é do interesse (inconsciente, claro) dos filhotes atrair ao máximo a atenção dos pais e garantir cuidados de primeira qualidade – afinal, em muitos casos, a sobrevivência dos bichinhos depende disso. Do mesmo modo, pensando de maneira darwinista, os bebês são literalmente o bem mais precioso dos pais (e isso vale mesmo que nenhum sentimentalismo entre na jogada): sem filhos saudáveis, o sucesso evolutivo dos genitores vai pelo ralo. Então, também é do interesse do papai e da mamãe que eles sejam altamente sensíveis aos traços típicos dos filhotes.
Os cientistas criaram algumas expressões complicadinhas, embora divertidas, para explicar como funciona essa via de mão dupla entre bebês fofos e pais dedicados. Um dos pioneiros nessa área, o especialista em comportamento animal austríaco Konrad Lorenz, afirmava que, nas espécies em que o cuidado parental é importante, os traços dos bebês são um mecanismo liberador inato (ou MLI, para encurtar). Em outras palavras, ver um filhote fofo seria, para qualquer adulto normal da mesma espécie, e às vezes até de espécies diferentes, algo parecido com apertar um interruptor mental prontinho para entrar em ação. Instintivamente, aquela imagem despertaria os reflexos de carinho e cuidado essenciais para a sobrevivência do filhote.
Isso tudo significa que, conforme o cuidado parental vai aparecendo entre os vertebrados, características que associamos a bebês humanos vão ficando mais e mais comuns. É o caso dos dinossauros, por exemplo: apesar da fama de brucutus, os grandalhões pré-históricos parecem ter sido, muitas vezes, papais e mamães exemplares, a julgar pelos indícios trazidos pelos fósseis.
Embora os ovos de dinos sejam um achado relativamente raro, e a presença de bebês dentro da casca ou nos arredores dela sejam ainda mais incomuns, sabemos que os filhotes desses animais tinham cara tão fofa quanto a de um gatinho ou cachorrinho. E, mais importante ainda, mais de uma vez os paleontólogos já descobriram os restos mortais de mamães (ou papais) em aparente tentativa desesperada de proteger seu ninho de enchentes ou tempestades de areia.
Com o passar de milhões de anos, esse tipo de comportamento foi se tornando ainda mais importante em aves (que, afinal, não passam de dinossauros emplumados) e mamíferos. O grupo de animais ao qual nós pertencemos tende a intensificar a fofice de seus bebês porque o elo entre a mãe e a prole normalmente é muito próximo, a começar pelo fato de o filhote se desenvolver dentro da barriga de quem o gera e ser amamentado por longos períodos. Outro fator-chave é que muitos mamíferos, como elefantes e baleias, são animais relativamente grandes, de crescimento lento, tempo de vida de várias décadas e inteligência avançada. Tudo isso significa que os bebês são mais raros e caros de criar e também mais capazes de criar laços profundos com a família – o que vira combustível para uma carga anabolizada de charme infantil.
Um primata bebezão
Se mamíferos em geral já fazem um investimento desproporcionalmente alto em bebês, primatas como babuínos, chimpanzés e humanos são ainda mais exagerados. Entre esses animais, como entre nós, a regra é ter apenas um filhote de cada vez, após uma gestação comprida. Os bebês têm um período longo de desenvolvimento e aprendizado, o que lhes confere mais flexibilidade comportamental e inteligência quando adultos – mas, ao mesmo tempo, significa que eles vêm ao mundo em estágio mais imaturo e indefeso. Ou seja, o cuidado parental de que necessitam é elevado, e a maneira mais fácil de garantir esse carinho é seduzir a mamãe (bem mais raramente, o papai) com características fofas.
Acontece que os bebês dos seres humanos modernos levam essa tendência às últimas consequências. O paleoantropólogo Richard Leakey calcula que, para que as crianças humanas nascessem no mesmo nível de desenvolvimento cerebral dos filhotes de chimpanzés, por exemplo, a gestação deveria durar não nove meses, mas cerca de 20 meses. Em síntese, é por isso que bebês macacos conseguem ao menos se agarrar ao pelo das costas da mãe logo depois do nascimento e começam a andar poucos meses depois (em vez de cerca de um ano depois, em média, como acontece no nosso caso).
Nascendo tão dependentes dos adultos, nossos filhotes têm marcas especiais para implorar por cuidados, e uma das mais importantes é a gordura corporal, justamente a responsável pelo lado visual da “fofura”. Segundo a primatóloga americana Sarah Hrdy, dependendo dos bebês primatas com os quais os nossos são comparados, as crianças da nossa espécie nascem com uma reserva de gordura corporal que é entre quatro e oito vezes maior, correspondente a mais de 15% do peso total do bebê.
Há muitas hipóteses para explicar esse fato – há quem diga que se trata de reserva de energia enquanto o leite da mãe não vem, ou de uma espécie de “cobertor interno” que ajuda a aquecer um filhote sem pelos. Mas é difícil contestar o fato de que, quanto mais fofo o bebê, mais atraente ele tende a parecer aos olhos dos adultos – de fato, há experimentos feitos com fotos de crianças pequenas, nas quais a preferência estética das pessoas, inclusive de crianças mais velhas, tende a recair sobre os mais gorduchos. Alguns especialistas especulam que o motivo mais profundo por trás disso seria uma espécie de “propaganda” dos pequenos – ao parecerem gordinhos, sinalizariam que são saudáveis, e mandam a mensagem de que teriam boas chances de sobreviver se bem cuidados.
Tudo isso faz muito sentido, claro, mas por que os membros da nossa espécie exageram tanto no lado indefeso e fofinho quando nascem? A hipótese dominante usada para explicar isso tem o simpático nome de “dilema obstétrico” e leva em conta o fato de que o cérebro dos bebês passa por uma expansão das mais dramáticas após o nascimento.
É que, num recém-nascido, o cérebro tem pouco menos de 30% do tamanho máximo que o órgão adquire ao longo do desenvolvimento fora do útero. Para nascer mais “pronto” e independente, um bebê humano, em tese, teria de nascer com um cérebro maior e, portanto, com uma cabeça maior. O problema é passar pelo canal vaginal da mãe para nascer, num período da (pré-)história humana no qual, claro, a cesariana não era nem sonhada – daí o termo “dilema obstétrico”.
Na verdade, o dilema é ainda mais complicado que isso porque, além da mera questão do tamanho do bebê, também é preciso levar em conta a dimensão dos quadris da mãe. É que, segundo a visão convencional, quando os ancestrais do homem viraram bípedes, o quadril precisou ganhar determinada configuração para que o andar em duas pernas funcionasse. Nisso, o tamanho do canal vaginal acabou ficando limitado, o que atrapalharia a passagem de bebês com cabeças maiores e cérebros mais desenvolvidos.
Aliás, outra característica típica dos recém-nascidos humanos que acentua sua fragilidade – a “moleira” de longa duração – talvez tenha a ver com isso também. É o que afirma uma pesquisa publicada neste ano por Dean Falk, antropóloga da Universidade do Estado da Flórida. Ela examinou um fóssil célebre, o garoto Taung, um Australopithecus africanus que morreu com quatro anos de idade há 2,5 milhões de anos na África do Sul.
Ocorre que Taung parece ter tido uma moleira não totalmente fechada ainda nessa idade, coisa muito rara nos grandes macacos atuais. A hipótese dela é que a cabeça molinha ajudava justamente os bebês hominídeos mais cabeçudos a passar com menos dificuldade pelo canal vaginal da mãe.
Já nascem sabendo?
Se esse é o passado da evolução dos bebês humanos, resta saber qual será o futuro. O que nos leva à pergunta que nove entre dez avós do século 21 costumam fazer: será que essa molecada já nasce sabendo? Menos, vovó. É verdade que sabemos muito mais sobre as habilidades dos bebês hoje do que há 50 anos. Eles eram vistos antigamente como incapazes de enxergar, perceber estímulos e interagir. As pesquisas mais recentes demonstram que os bebês são muito mais competentes do que se supunha inicialmente (veja reportagem sobre o tema na página 22). E muita coisa mudou desde então no ambiente dos bebês e dos pais, em razão das próprias alterações da sociedade e da tecnologia. “O que mudou é que hoje sabemos mais sobre os bebês do que antes, quando havia equívocos como imaginar que nasciam sem enxergar ou não entendiam nada do que falávamos”, afirma a psicóloga Maria Stella Alcântara Gil, da Universidade Federal de São Carlos.
Ela lembra que houve ainda uma grande transformação na sociedade, sobretudo no que diz respeito à estimulação. O marcador da modificação é a entrada precoce das crianças na creche. No fim das contas, as interações sociais entre os pequenos tão cedo é que têm verdadeiro impacto no desenvolvimento.
É claro que não somos gênios em relação aos nossos pais e avós. O ambiente diferente é que nos faz responder com mais agilidade mental a certos tipos de questões. De qualquer maneira, nós – e nossos bebês – vamos continuar evoluindo.