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Humanos

Eles pagam por sexo, fazem conchavos políticos, cometem carnificinas - e praticam a caridade também. Novas pesquisas deixam claro: os chimpanzés são ainda mais próximos da gente do que parecem

Por Reinaldo José Lopes
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 9 fev 2015, 22h00

 

O tribunal de apelações do Estado de Nova York está estudando um caso peculiar: o apelo pela libertação de um chimpanzé. Tommy, o símio em questão, não sofre maus-tratos. Mas é obrigado a viver sozinho, numa jaula.

“E o que isso tem de ilegal?”, perguntou a juíza responsável pelo caso, numa primeira audiência, em outubro. Steven Wise, o responsável pelo pedido de libertação, rebateu: “Manter uma pessoa em confinamento solitário é contra a lei, sim”, ele disse à juíza.

O tribunal não tinha chegado a um veredito até o fechamento desta edição. Caso a decisão seja favorável ao chimpanzé, será uma revolução: pela primeira vez um animal será solto por ser considerado “uma pessoa”. Teremos estendido o conceito de “humanidade” a outra espécie além do Homo sapiens.

Faz mais sentido do que parece. Se você voltar 7 milhões de anos no tempo e procurar bem, vai encontrar indivíduos amacacados que são ancestrais tanto do Homo sapiens como dos chimpanzés modernos. Ou seja: você e eles compartilham um mesmo tatata(…)taravô, que viveu há 70 mil séculos. Até por isso, um humano é geneticamente mais próximo de um chimpanzé que um chimpanzé é de um gorila. Jared Diamond, um cientista multidisciplinar, resumiu tudo isso com uma frase certeira: “Não é que eles sejam humanos. Nós é que somos mais uma espécie de chimpanzé”.

Até o final do século 20, era consenso que só os humanos possuíam “cultura”, ou seja, conhecimentos transmitidos dentro do grupo, de pai para filho. As pesquisas mais recentes destruíram esse conceito. O Pan troglodytes tem cultura, sim. Também desenvolve tecnologias e tece redes sociais quase tão complexas quanto as nossas – é capaz de construir alianças políticas, por exemplo; algumas, de dar inveja ao mais fisiologista dos nossos parlamentares. É o que vamos ver nas próximas páginas.

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CADA SAPIENS NO SEU GALHO

Antes de a gente prosseguir, no entanto, vale a pena apresentar nossos astros. Há, na verdade, duas espécies de chimpanzés no mundo – ou três segundo a visão de Diamond. Além do Pan troglodytes, o chimpanzé-comum, presente em várias regiões da África tropical, temos o Pan paniscus, o bonobo, que vive apenas na República Democrática do Congo (África Central).

Os chimpanzés comuns são de Marte e os bonobos, de Vênus. É que as comunidades dos primeiros são dominadas por machos que não hesitam em descer o sarrafo uns nos outros. A pancadaria é constante. No caso dos bonobos, o clima é outro. Quem manda são as fêmeas, bem menos violentas.

As duas espécies são sexualmente promíscuas. Mas os bonobos, com seu corpo mais esbelto e elegante e seus lábios rosados, usam o sexo como forma de resolver conflitos. Em especial entre fêmeas, que adoram roçar clitóris contra clitóris para acabar com uma discussão.

O terceiro chimpanzé… Bom, somos nós mesmos. A semelhança comportamental e genética entre nós e eles é tamanha que, se um dia fizerem uma reforma na taxonomia dos primatas, faria sentido chamá-los de Homo troglodytes e Homo paniscus, em vez de separar o prefixo Homo para uso exclusivo da nossa espécie. Uma pesquisa do primatólogo holandês Frans de Waal, da Universidade Emory (EUA), ilustra bem esse conceito. Recentemente, sua equipe mostrou que os macacos se comportam de modo muito parecido conosco ao participar de um jogo clássico das pesquisas sobre… economia. Exato: é o chamado Jogo do Ultimato. Quando humanos participam, ele costuma envolver dinheiro e é jogado em duplas. O pesquisador dá uma certa quantia – R$ 100, digamos, em notas de R$ 10 – para um dos jogadores, e ele deve decidir quanto daquela quantia vai dividir com o parceiro. Se o companheiro aceitar, todo mundo leva a grana para casa; caso se recuse, ninguém fica com nada. O jogo ajudou economistas e psicólogos a mostrar que dinheiro raramente é encarado com racionalidade. A escolha mais sóbria, do ponto de vista de quem recebeu os R$ 100, seria dar só R$ 10 para o parceiro. O sujeito simplesmente não pode negar. Se ele recusar, perde os R$ 10 e fica sem nada. Não faz sentido… Mas as pessoas recusam. Basicamente ninguém aceita ficar com R$ 10. E nós já sabemos disso por instinto. Então a maior parte das pessoas simplesmente oferece R$ 50 sem pensar, como um seguro para que o outro não recuse.

 

 

As tradições culturais dos chimpanzés também englobam coisas que não têm a ver com a obtenção de alimento, como gestos típicos e “gírias”. Em Taï, por exemplo, um macho chamado Brutus, que havia conquistado a liderança do grupo, passou a usar um padrão de “batucadas” em troncos de árvore para orientar os movimentos do bando pela mata.

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Em Mahale, também na Costa do Marfim, machos costumam convidar fêmeas para fazer sexo picotando folhas com os dentes, enquanto em Taï o mesmo comportamento significa “Vou fazer uma demonstração de força”. Em suma: são modas mesmo, cada grupo de chimpanzés com a sua.

A semelhança disso com a linguagem humana é o fato de elas serem convenções arbitrárias. Ou seja: não há nada que “exija” que picotar folhas tenha o significado “Vamos transar?”, assim como a palavra “transar” não tem relação nenhuma com o ato sexual. Um americano diz make out, um inglês, shag, um alemão, Geschlechtsverkehr (pois é…). E um chimpanzé marfinense picota folhas. Pronto. Mensagem transmitida. Trata-se de uma operação mental tão sofisticada quanto entender o que um alemão ou alemã quer dizer quando diz que quer Geschlechtsverkehr com você.

Falando em sexo, os chimpanzés de Taï também são conhecidos por outra tradição – também cultivada pelo Homo sapiens. Certos machos conseguem trocar “presentinhos” – nacos de carne de caça – por sexo com as fêmeas que recebem esses presentes. Dá para chamar isso de prostituição? Bem, a analogia não é descabida, mas a diferença é que não se trata de uma troca pontual, do tipo “me dá essa picanha que eu te dou outra coisa”. O que ocorre, na verdade, é que os machos que dividem a carne de caça com as fêmeas acabam fazendo mais sexo com elas ao longo do tempo.

O HORROR, O HORROR

É fácil se concentrar nos aspectos bonitinhos dos parentes mais próximos da humanidade. Mas outro conhecimento valioso que as pesquisas trazem revela os contornos mais sombrios da linhagem primata. E mostra que a guerra, o combate até a morte entre membros de dois grupos rivais, é quase onipresente entre esses macacos – tanto quanto entre aquela outra espécie de macaco que a gente vê no espelho todas as manhãs.

Um mapeamento monumental dos conflitos letais entre chimpanzés e bonobos, publicado em setembro na revista científica Nature, deixa isso mais claro do que nunca. Os autores da nova pesquisa, liderados por Michael Wilson, da Universidade de Minnesota, compilaram dados sobre mortes violentas em 18 comunidades de chimpanzés e quatro comunidades de bonobos, algumas delas estudadas há mais de 50 anos. E chegaram a uma soma de 152 mortes, distribuídas por 15 dos grupos de chimpanzés e um dos grupos de bonobos.

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Isso dá mais de mil “assassinatos a cada 100 mil habitantes”, o dado que usamos para quantificar a violência entre humanos. No bando de 202 milhões de Homo sapiens conhecido como Brasil, que não sai do top ten de países mais violentos do mundo, são 21 homicídios a cada 100 mil habitantes. Ou seja: os chimpanzés vivem num holocausto permanente.

Mas não são menos humanos por conta disso. Nossas estatísticas históricas, e principalmente as pré-históricas, não ficam longe: “Comparamos esses dados de assassinatos entre chimpanzés com as taxas de morte em conflito entre grupos humanos de caçadores-coletores (que têm um modo de vida parecido com o dos nossos ancestrais pré-históricos). A proporção no número de mortos é parecida”, diz Wilson.

 

 

 

 

“A agressão letal entre grupos é rara entre mamíferos, embora aconteça no caso de carnívoros sociais, como lobos, leões e hienas. Mas essa conquista de território que vimos no caso dos chimpanzés não foi descrita entre esses outros animais”, diz Mitani. O fato de a matança afetar principalmente machos de grupos inimigos abre espaço para que as fêmeas desses bandos sejam incorporadas ao grupo vencedor – outro paralelo claro com o comportamento humano ao longo da história.

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Vale notar que nem todos os grupos de chimpanzés são afligidos por guerras do mesmo jeito, ou com a mesma frequência. O estudo de Wilson na Nature também mostrou que a pancadaria é bem mais comum entre os chimpanzés do leste da África do que entre os que vivem na parte oeste do continente – além de ser muito mais rara entre os bonobos, famosos por seu perfil supostamente paz e amor.

Para Wilson, as condições ambientais parecem explicar, ao menos em parte, a diferença. “A principal razão parece ser o padrão de disponibilidade de comida, em especial frutas maduras”, conta ele. “No caso dos chimpanzés do Leste, os indivíduos muitas vezes são forçados a andar pela mata sozinhos ou em pequenos subgrupos, porque não há comida suficiente para que grandes grupos se desloquem em bloco. No caso dos chimpanzés do Oeste, e ainda mais entre os bonobos, parece que os alimentos são mais abundantes, ou estão distribuídos de tal maneira que é possível se deslocar em grupos maiores e mais estáveis”, diz.

A união, nesse caso, faz a paz: os grupos vizinhos resistem à tentação de atacar os rivais porque sabem que o custo do combate seria alto demais. A Guerra Fria não virou uma “guerra quente” mais ou menos pelo mesmo motivo: quando os dois lados são igualmente poderosos, ninguém quer ser o primeiro a apertar o botão vermelho.

Mas complexas mesmo são as lutas pelo poder político. Frans de Waal conta como o grupo que vivia num zoológico da Holanda passou por uma mudança de comando cuidadosamente planejada. O líder, um macho que os pesquisadores chamavam de Yeroen, passou a ser desafiado pelo antigo número dois na hierarquia do bando, Luit. Em seus primeiros passos, no entanto, Luit não desafiou frontalmente o chefe. Passou a usar as fêmeas como ferramenta para questionar a autoridade de Yeroen, geralmente batendo nelas quando se aproximavam do macho alfa.

Ao mesmo tempo, Luit passou a ser um cavalheiro da mais fina flor quando as mesmas fêmeas não estavam perto de Yeroen, catando piolhos delas e brincando com seus filhotes (talvez para dizer “Olha só como seria boa a vida se eu fosse o macho alfa aqui do bando…”). Como aparente cereja do bolo, o candidato a chefe se aliou a Nikkie, macho que tinha acabado de sair da adolescência, e virado uma massa de músculos. Nikkie também passou a atormentar as fêmeas que mantinham seu apoio a Yeroen. Resumo da ópera: depois de alguns meses de confronto, Luit subiu ao trono. E com o apoio do próprio Yeroen. O antigo chefe não viu saída a não ser apoiar o rival para manter um naco de poder no bando. Qualquer semelhança disso com o que o PMDB faz em Brasília não é mera coincidência: somos todos chimpanzés, para o bem e para o mal.

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CRIME CONTRA A HUMANIDADE

Mas não são só os chimpanzés. Steve Wise, o advogado que move o pedido pela libertação daquele chimpanzé nova-iorquino, diz que, se ganhar o caso, vai lutar para que a noção de direitos humanos seja aplicada a qualquer ser vivo com cérebro relativamente complexo – gorilas, orangotangos, elefantes, golfinhos. É a mesma lógica. São todos animais capazes de se comunicar, traçar planos para o futuro, se emocionar.

O difícil mesmo é saber quais animais não seriam dignos de serem tratados como humanos. Dá para estender os direitos animais a todas as espécies? Juridicamente, até dá. Mas essa não é uma pergunta simples de responder. E não só pelos carnívoros convictos. Se você é diabético, gosta de cinema ou usa cosméticos, por exemplo, vai ter problemas se algo assim acontecer: a insulina, as películas de filme, os batons e os cremes hidratantes são tão derivados do boi quanto a picanha, a maminha, o cupim e o patinho.
Mesmo assim, é cada vez mais lógico imaginar que, daqui a algum tempo, usar macacos como cobaias e encarcerar mamíferos inteligentes em cubículos de zoológico e tanques de parque aquático seja visto como coisas tão absurdas quanto a segregação racial e o holocausto são vistos hoje. E esse dia só vai chegar depois que entendermos que a violência e os maus-tratos aos animais não são só crimes comuns. Mas crimes contra a humanidade.

 

 

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