Malandragem no laboratório
A ciência já foi chamada de mãe da verdade. Mas basta examinar sua história com mais atenção para ver que por vezes está mais para madrasta. Veja as maiores imposturas sustentadas por ela e quais as intenções veladas
Álvaro Oppermann
Dá para confiar plenamente nas pesquisas médicas publicadas nas revistas científicas? O médico e pesquisador John Ioannidis fez essa pergunta a si mesmo, foi investigar o assunto e… caiu para trás com o que descobriu. Pois a triste resposta, diz ele, é que menos de 10% dos trabalhos publicados hoje em dia são inteiramente confiáveis.
“A verdade é que, em cada etapa do processo científico, há brecha para manipular resultados, intencionalmente ou não”, diz Ioannidis, professor da Escola de Medicina Tufts, em Massachusetts, e também da Universidade Stanford. Por exemplo, vários estudos financiados pela indústria farmacêutica garantem que os antidepressivos são 100% eficazes. Já outros pesquisadores mostram que, dependendo do caso, o Prozac, o Zoloft e o Paxil são tão eficientes quanto o placebo. Foi-se o tempo em que o eminente biólogo Daniel Koshland escrevia, na revista Nature (em 1987), que “99,99% da pesquisa científica era precisa e confiável”. Talvez Ioannidis seja pessimista. Mas a pulga não sai de trás da orelha.
A pesquisa médica, aqui, é só um exemplo. Na história da ciência, a mentira tem uma longa ficha corrida. A gente não está falando de teorias postuladas em algum momento histórico e depois refutadas. Desde a Antiguidade a mentira imiscuiu-se no processo científico, sempre com algum beneficiado.
A primeira peça conhecida foi pregada no século 2 pelo astrônomo e matemático Cláudio Ptolomeu (90-168 d.C.). Para criar seu sistema geocêntrico, ele utilizou os cálculos matemáticos do cientista Hiparco. Até aí, nenhum problema, não fosse um detalhe. Ptolomeu deu uma de João Sem-Braço e fez de conta que os cálculos fossem seus. Essa foi a conclusão dos professores Pablo Schulz e Issa Katime, das universidades Nacional do Sul, Argentina, e do País Basco, Espanha. Afinal, a disposição dos astros descrita por Ptolomeu não poderia ter sido feita em Alexandria – sua cidade -, mas em Rodes, a cidade de Hiparco.
Seu deslize pode soar inocente para nós hoje. Porém, como dizem os autores William Broad e Nicholas Wade, ele deu o pontapé inicial à longa história de cientistas tentando ludibriar o público leigo (e seus colegas). No livro Betrayers of the Truth (“Traidores da verdade”, sem versão em português), eles dão outros exemplos. Ao descobrir – e explicar – a propagação de ondas sonoras no ar, Sir Isaac Newton (1643-1727) disse ser capaz de calcular perfeitamente a velocidade do som. Fez então experimentos práticos, comparando o cálculo mental com a realidade dos corpos. Mas a realidade deu uma rasteira em Newton. O resultado entre ela e o cálculo insistia em diferir. Uma discrepância de 10% que, aqui entre nós, não arranharia em nada a imagem do imponente físico. Mas Newton fez o que não podia: arredondou os dados, puxou números mais à esquerda, ou à direita, para eliminar a diferença.
Outro pecadilho foi cometido por Gregório Mendel (1822-1884), monge agostiniano que se tornou conhecido como o “pai da genética”. Entre 1856 e 1863, Mendel testou mais de 29 mil mudas de ervilha cultivadas nos fundos do Mosteiro de São Tomás, na cidadezinha de Brünn, onde vivia. Do cruzamento das ervilhas, Mendel descobriu que existiam nos seres vivos “unidades hereditárias” (que hoje chamamos de “genes”) de caráter dominante ou recessivo. Tais regras explicavam por que algumas ervilhas nasciam amarelas e lisas, outras verdes e rugosas, por exemplo. Seus experimentos, publicados na monografia Ensaios sobre a Hibridação das Plantas, em 1865, eram tiro e queda. Porém, em 1911, o matemático e estatístico inglês Ronald Aylmer Fisher levantou a hipótese de que Mendel teria manipulado seus dados. O monge, apesar de ter anotado o resultado de milhares de cruzamentos de ervilhas, só utilizou em sua monografia um número insignificante deles.
Os resultados de Mendel se encontram todos dentro dos limites do erro provável – o que seria dificílimo no mundo real, segundo Fisher. Ou o monge austríaco era extremamente sortudo, ou então “teria descartado as plantas duvidosas”, disse Fisher à espantada plateia. A teoria de Mendel continua aceita, mas geneticistas posteriores, como Walter Fiers, o primeiro a sequenciar um gene, fazem questão de frisar que a realidade não é “quadradinha” assim.
Sob o jaleco
Por que cientistas fazem coisas assim? Segundo o historiador da ciência Horace Freeland Judson, autor de The Great Betrayal (“A grande traição”, de 2004, inédito em português), a explicação é simples: eles têm ego, como qualquer ser humano.
A imagem do cientista rigoroso em busca da verdade é quase sempre só isso: uma imagem. A mentira científica nasce da teia de relações humanas no dia a dia da comunidade científica, do relacionamento do cientista com seus pares, da convivência com o pessoal do laboratório, das artimanhas do poder nas instituições. Desse emaranhado surge o que Judson chama de “padrões de cumplicidade” – um jogo de acobertamento de más práticas entre os envolvidos.
“As cumplicidades encaixam-se dentro de parâmetros, talvez até mesmo de síndromes, bem previsíveis”, escreve o historiador, que detectou 4 dessas “síndromes”.
A primeira é a síndrome do mentor seduzido. Um jovem cientista, para impressionar seu chefe, falsifica ou manipula dados e dá uma aparência genial à sua pesquisa. Em 1985, o imunologista David Baltimore, ganhador do Prêmio Nobel nos anos 1970, e sua jovem assistente, Thereza Imanishi-Kari, viram-se enredados numa trama de acusações. Num artigo sobre o sistema imunológico dos ratos, as conclusões, tiradas dos experimentos realizados pela doutora Imanishi-Kari, eram sensacionais: abriam as portas à modificação genética do sistema imunológico humano. Eram tão geniais que outros cientistas tentaram refazer os passos da doutora. Sem sucesso algum. Foi aí que começaram os problemas da dupla. A suspeita virou denúncia de manipulação de dados. Baltimore e sua assistente foram processados. No fim, terminaram inocentados, em 1991.
Não, porém, sem mácula à sua carreira. “Graças à notoriedade de Baltimore, o caso só perdeu em cobertura na mídia para a Guerra no Golfo”, comentou (exagerando, claro) o jornalista de ciência David Goodstein. Até hoje se suspeita da conduta de Imanishi-Kari, que na história pagou um mico enorme.
A segunda síndrome recebeu a alcunha de loucura a dois, que fica mais deliciosa no original, em francês, como é usado por Judson. Originalmente, folie à deux é um transtorno mental em que sintomas psicóticos são compartilhados por duas pessoas. Na ciência, é pura malandragem entre “parceiros no crime”.
Foi o caso do matemático suíço Johann Bernoulli (1667-1748), um dos inventores do cálculo. Em 1738, ele plagiou um trabalho do próprio filho, o também matemático Daniel Bernoulli – com a anuência deste. A relação camarada, contudo, azedou quando os dois foram indicados simultaneamente a um prêmio da Academia Francesa de Ciências. O filho venceu, e papai botou o rapaz para fora de casa.
As duas últimas síndromes são as mais comuns – e também, em geral, as mais graves. Vamos à síndrome da arrogância do poder. Foi o caso do cientista alemão Ernst von Haeckel (1834-1919). O naturalista conseguiu estabelecer sua fama – é ele, por exemplo, o autor do termo “ecologia” na ciência. Em 1874, Haeckel criou uma série de desenhos de embriões de vertebrados que mostravam similaridades marcantes. Segundo o darwinista convicto, isso provaria que todos os vertebrados teriam um ancestral comum, e isso serviria de ponte essencial para a teoria da evolução das espécies. A teoria de Darwin estava (e está) certa. Acontece que os desenhos estavam errados. Haeckel tinha inventado boa parte deles. Mas isso só foi descoberto em 1997, pelo embriologista inglês Michael Richardson. Por um século os desenhos de Haeckel foram base para os manuais de biologia sobre o evolucionismo.
“Pelo jeito, essa é uma das maiores falsificações da história da biologia”, escreveu Richardson, na época, na revista Nature. Apesar das provas incontestáveis da falsidade de seus desenhos, muitos cientistas voltaram-se, furiosos, contra o embriologista. Ele ofendera um monstro sagrado da ciência.
“Por trás da maioria dos cientistas, esconde-se um sujeito profundamente idealista. A ciência é sua heroína, cuja inocência imaculada deve ser preservada”, diz Judson.
Por fim, a síndrome do prodígio. “O perpetrador é quase sempre uma estrela em ascensão no mundo da ciência, uma pessoa charmosa e convincente, além de extremamente ambiciosa”, afirma o historiador. Um exemplo ilustre é o do biólogo Paul Kammerer (1880-1926) – no que ficou conhecido como o “caso do sapo falsificado”. Em Viena, no início do século 20, Kammerer era um biólogo em ascensão. Ex-músico, virtuose do violino, em 1909 divulgou uma pesquisa em que provava que sapos de vida terrestre adquiriam características anatômicas de sapos aquáticos quando eram obrigados a copular na água. Esses anfíbios adquiriam com o tempo “cerdas copuladoras” – calosidades nas patas e nos antebraços que facilitavam o sexo na água. Kammerer mostrou um sapo com as tais cerdas, que tinham uma coloração negra. O mais impressionante, dizia, é que, depois de obtida, a característica anatômica passava aos genes da prole. Foi sensação imediata. Contudo, Kammerer não permitia o exame do sapo, mantido no Instituto de Investigação Biológica de Viena.
Quase duas décadas depois, um biólogo norte-americano, G.K. Noble, foi ao instituto e examinou o sapo. Qual não foi sua surpresa ao descobrir que as famosas cerdas eram falsificações grosseiras, feitas com aplicações de camadas de tinta nanquim. No outono de 1926, Noble expôs a farsa na Nature. Kammerer fugiu de Viena e se matou enforcando-se numa árvore no meio de uma floresta nos Alpes.
“A ciência é uma atividade nobre, mas difícil. Devemos nos conformar com a ideia de que só uma pequena percentagem da pesquisa vai produzir grandes mudanças e melhorias”, diz Ioannidis em tom de consolação. Já para Judson existe um lado positivo ao colocarmos uma lupa de aumento sobre os escorregões dos monstros sagrados. O processo científico estuda o anormal para entender o normal. Sem a doença, não haveria medicina. Sem mutações, nunca entenderíamos a genética. “Se é assim, nada mais justo que a ciência avance pela detecção da fraude.”
Quando a mentira está a serviço da política – O caso Galileu
No século 18, o filósofo francês Voltaire (1694-1778) e o escritor italiano Giuseppe Baretti (1719-1789) tomaram carona na popularidade de Galileu Galilei (1564-1642) para inventar um dos mitos mais resistentes da história do embate da ciência contra o obscurantismo católico – o de que Galileu sofreu na prisão pelas mãos da Inquisição depois de ter demonstrado que a Terra girava em torno do Sol. É lenda. Nas duas vezes em que foi chamado a Roma para esclarecimentos sobre sua doutrina, em 1615 e 1633, Galileu foi bem tratado. Sob recomendação pessoal do Papa Urbano 8º, aliás seu padrinho, ele foi tratado com respeito e deferência pelos inquisidores. Por que Voltaire e Baretti criaram o mito? O duo quis usar o prestígio do cientista para combater o papado em nome do ideal iluminista.
Cortina de silêncio – Freud e seus seguidores
Sigmund Freud (1856-1939) tem sido duramente contestado nas últimas décadas. Os casos seminais do pai da psicanálise estão repletos de inconsistências. Um dos supostos exemplos mais espetaculares de cura psicanalítica, do qual Freud se gabava particularmente, era a de Sergei Pankeev, um russo que sofria de depressão. O caso foi descrito no livro Uma Neurose Infantil e Outros Trabalhos, de 1918. Depois de receber alta do pai da psicanálise, porém, Pankeev foi internado diversas vezes em hospitais psiquiátricos. Nos anos 1970, pouco antes de falecer, confidenciou a uma jornalista: “Eu estou hoje no mesmo estado de quando me tratava com Freud”. Freud, segundo Judson, queixou-se diversas vezes por carta ao amigo Wilhelm Fliess de que seus tratamentos mais pareciam uma sucessão de fracassos.
Saiba mais
The Great Betrayal: Fraud in Science
Horace Freeland Judson, Houghton Mifflin Harcourt, 2004
Betrayers of the Truth
William Broad, Nicholas Wade, Simon and Schuster, 1983