O gigante (do futebol) acordou
Os protestos de junho geraram um filhote inesperado: a união dos jogadores de futebol pelos seus direitos. Saiba por que esse é um fato histórico
Fábio Soares
No último 13 de novembro, o Cruzeiro conquistou os pontos que faltavam para confirmar o título do Brasileirão. Mas aquela 34a rodada do campeonato ficaria marcada por uma disputa bem mais abrangente. Pela primeira vez na história, jogadores de futebol cruzaram os braços. Em quase todas as partidas daquela quarta-feira, equipes inteiras ficaram imóveis ou trocaram passes insossos durante o primeiro minuto dos jogos. O levante foi arquitetado pelo Bom Senso F.C., grupo recém-criado por atletas que reivindicam melhores condições de trabalho. Parar de jogar duas vezes por semana é o principal ponto da pauta. Assim como as manifestações populares que tomaram as ruas em junho, o ultimato dos jogadores surpreendeu, considerando a histórica passividade da categoria diante de seguidos calendários ilógicos, que minam suas articulções e abreviam suas carreiras. Os atos do meio do ano, na esteira da Copa das Confederações, tiraram os boleiros da inércia. “Serviram de inspiração”, dizem os cabeças do movimento. E no lugar dos “graças a Deus”, “o time tá unido”, “vamos atrás dos três pontos” e outros jargões surrados no meio, entrou o discurso sobre direitos trabalhistas e fisiologia.
Liderados por Paulo André (Corinthians), Alex (Coritiba), Rogério Ceni (São Paulo), Dida (Grêmio) e D’Alessandro (Inter), o movimento já tem praticamente todos os jogadores dos principais clubes do país engajados. E elenca algumas prioridades: menos jogos no calendário, férias de 30 dias, punição a clubes que atrasem salários e representatividade dos jogadores na CBF e nas federações. Nada disso apareceu no calendário anunciado para 2015. Veio então o gesto coletivo do dia 13.
O calendário atual reserva 21 datas para esses torneios, espremidos entre Libertadores e Copa do Brasil. Dessa forma, os jogos ficam concentrados nos cinco primeiros meses do ano e encurtam férias e pré-temporadas. É unânime entre o Bom Senso que para corrigir isso é preciso encurtar os campeonatos estaduais. Tal mudança, no entanto, esbarra nas federações estaduais e na Rede Globo, que financia os clubes em troca dos direitos de transmissão. As federações querem esses certames longos. Como são os votos de seus mandatários, que elegem o presidente da CBF, querer é poder. Convencer a Globo a reprogramar sua grade, com partidas às quartas e aos domingos, tampouco é simples.
O Bom Senso argumenta que, nesse debate, menos é mais. Com um calendário enxuto, os jogadores ganharão tempo de preparação, o número de contusões diminuirá, a qualidade dos jogos vai melhorar e o produto pelo qual a emissora paga R$ 1,6 bi por ano atrairia mais gente. A premissa é amparada por números. Entre 2012 e 2013, a média de público da Série A caiu da 13a para a 18a do mundo, atrás da Austrália, país com tradição zero no futebol. No ranking de ocupação dos estádios, o pentacampeão Brasil despencou de 18o para 31o do mundo. Uma comparação entre o tempo de descanso entre times de ponta no Brasil e na Europa ajuda a explicar. Um exemplo: o Bayer de Munique, que chegou à final de todos os torneios que disputou na última temporada europeia, fez 54 jogos. Enquanto isso, alguns times brasileiros jogaram quase 80 partidas. E um que tivesse alcançando as finais da Libertadores e da Sul Americana, por exemplo, chegaria a 87. Aí não tem joelho que aguente. Até o fechamento desta edição, uma comissão do Bom Senso tinha se reunido duas vezes com a CBF e uma com a Globo. O grupo se comprometeu a apresentar alternativas ao calendário atual, no qual 101 clubes jogam o ano todo, enquanto outros 500 jogam apenas quatro meses.
Seja como for, o que mais chama a atenção nessa história é um contraste. O contraste entre o discurso tranquilo e articulado de Paulo André, o principal porta-voz do movimento, com a verborragia obtusa dos cartolas que mandam no futebol. E a inteligência está mostrando resultado. Tanto que, segundo os líderes do Bom Senso, a conversa com a Globo rendeu. Mas, para variar, a reação da CBF, ou a falta dela, foi decepcionante.
Veio então outro protesto na rodada dos dias 23 e 24 de novembro. Jogadores de Vasco e Cruzeiro sentaram no gramado por 30 segundos depois do apito inicial, sob aplausos dos torcedores no Maracanã. O passo em discussão pelo Bom Senso agora é prolongar esses segundos de paralisação para uma greve geral no início de 2014. É algo sem precedentes no Brasil. E que funciona. Na Argentina, por exemplo, greves de jogadores levaram a conquistas relevantes. Na primeira, em 1931, após oito paradas, conseguiram profissionalizar o futebol por lá. A partir dos anos 1970, houve pelo menos uma greve por década, a última em 2001.
O que está acontecendo aqui, porém, é algo maior. Nesses tempos de comunicação onipresente e instantânea, o conjunto dos nossos jogadores formou uma espécie de inteligência coletiva, capaz de negociar diretamente com quem paga pelo show – a TV e a própria torcida, que apoia o movimento. Tudo isso faz pensar: será que o Brasil ainda precisa de gente como José Maria Marin, o presidente da CBF? Imaginamos que não. Pelo jeito, nossos jogadores estão a caminho de tornar a CBF desnecessária. Tão obsoleta quanto a figura de seu presidente.
* Alexandre Rodrigues é jornalista, escritor e mestre em relações internacionais pela UFRGS.