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Segura o funk!

O tchan e o axé já eram. Quem faz as meninas rebolar e os puritanos espumar agora é o ritmo que vem da periferia carioca. Antropólogos que estudam rituais de acasalamento nos ajudam a entender o porquê de tanto auê

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 31 mar 2001, 22h00

Mariana Mello e José Augusto Lemos

Não dá para ficar parado. O bumbo e o contrabaixo, ambos eletrônicos, marcam o compasso com tanta força que os ossos das costelas vibram como se fossem de papel. Até aí, nada de original: é a velha batida funk, há décadas apelidada de “bate-estaca” por seus detratores, que a consideram o cúmulo da pobreza musical.

Já as letras das músicas – mais faladas que cantadas, no estilo dos rappers americanos – trazem todas as novas gírias da temporada. Elas, sim, são um código à parte, descrevendo personagens retratados como sátiros e centauros, mezzo humanos, mezzo animais – homens “tigrões”, mulheres “cachorras” ou “potrancas” – e sem esconder de ninguém que seu assunto e sua motivação são um só: sexo, sexo e sexo.

Tanto erotismo não fica só nos versos: se escancara por todo o salão, em uma série de coreografias simulando os diferentes gestos e atos do repertório sexual. É difícil imaginar se os lendários bacanais greco-romanos eram tão desinibidos – e mais difícil ainda entender o fenômeno social “funk carioca, versão 2001” sem cair no lugar-comum, que até aqui tem sido sua condenação pura e simples por aqueles que se enxergam como guardiães da moral e dos bons costumes.

Uma saída estratégica é pedir ajuda à antropologia, ciência especializada em analisar as relações entre cultura e sociedade – mas sem emitir juízos de valor, respeitando o modo como a moralidade varia de uma comunidade para outra, de uma época para outra. Uma das maiores conquistas intelectuais do século XX ocorreu justamente quando os antropólogos partiram para estudar o que chamam de “ritos de acasalamento” em sociedades bem diferentes daquilo que consideramos “civilização”. Com seu clássico A Vida Sexual dos Selvagens, o polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942) abriu um caminho desbravado a fundo por pesquisadores do calibre da americana Margaret Mead (1901-1978). Como os funkeiros cariocas, essa respeitável senhora chegou a ser acusada de perversão por dedicar sua carreira ao estudo do comportamento sexual em livros igualmente fundamentais como Sexo e Temperamento em Três Sociedades Primitivas.

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Fora das universidades, pouca gente se lembra desses dois mestres, tão importantes quanto Freud para esclarecer a obsessão humana pelo erotismo. Mas eles são leitura básica para quem quer que se interesse pelo tema. Isso sem contar seu colega brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), cuja obra principal, Casa Grande e Senzala, elabora uma visão panorâmica de como a interação entre portugueses e africanos foi dar em um país regido pela sensualidade.

Está na cara que os bailes funk servem um banquete para antropólogos que curtem decifrar jogos de sedução e rituais de acasalamento. Basta ficar alguns minutos de uma noite de sexta ou de sábado plantado na porta do Castelo das Pedras, galpão na Zona Oeste do Rio de Janeiro consagrado como epicentro do terremoto funk. A galera vai chegando para a noitada com todos os atributos que identificam os sacerdotes e sacerdotisas de uma das mais tradicionais religiões cariocas: o culto ao corpo. O uniforme feminino se compõe de calças sufocantemente justas e de cintura baixa, praticamente na linha do púbis; quase sempre brancas, em contraste que destaca a pele bronzeada. As blusas se resumem a minúsculos bustiês, deixando a barriga exposta, muitas vezes decorada com piercing no umbigo, purpurina colada na pele ou pistas de uma e outra tatuagem. Os homens também usam calças agarradas, além de camisetas regata sob medida para exibir bíceps esculpidos na academia.

“O corpo é o aspecto mais concreto da sociedade humana. Nós nos vemos e vemos os outros pelo corpo, por isso ele sempre foi e sempre será cultuado. Muito antes da Grécia Antiga celebrá-lo na escultura e nos esportes, tribos primitivas já pintavam e adornavam o corpo, dando a ele um significado ritual”, afirma Mauro Cherobin, antropólogo do Centro de Estudos e Pesquisa de Comportamento e Sexualidade, em São Paulo. Como índios que usam pinturas corporais específicas para ir à caça ou à guerra, adolescentes do mundo todo adotaram as argolas, tatuagens e maquiagens exóticas para definir a identidade de suas tribos. No caso do funk carioca, porém, o foco parece ser mesmo 100% sexual. “Não há dúvida de que esses bailes são um típico rito de acasalamento: tudo parece levar à transa, mesmo quando não passa de brincadeira. Mas também aí não há nada de novo: a dança sempre esteve presente em todos os rituais de acasalamento, em todos os tempos”, diz Mauro.

Outro traço tipicamente brasileiro do culto funk, e que também parece incomodar muita gente, é a adoração, sobre todas as coisas, ao par de músculos chamado gluteus maximus – o bumbum, ou “popozão”, no linguajar da tribo. Assim como sua prima e precursora axé music, esta religião tem como deusa número um A Popozuda, cantada em verso e prosa pelos funkeiros cariocas, além de enaltecida nas coreografias cujo “passo” fundamental é empinar o traseiro. “O tamanho dos quadris é uma das principais motivações inconscientes masculinas na escolha de uma parceira. As mulheres de bumbum grande passam uma mensagem de que serão boas parideiras, garantindo a transmissão dos genes do macho, como se dissessem ‘veja como eu posso lhe dar filhos saudáveis’”, afirma a antropóloga paulista Mirela Berger, especialista em estudos do corpo.

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Se o baile funk não passa mesmo de apenas mais uma versão contemporânea dos ritos de acasalamento ancestrais, há pelo menos duas coisas realmente inéditas e surpreendentes nessa história toda. Contrariando o que tradicionalmente se espera do homem e da mulher num jogo de sedução, os machos se exibem provocativamente – usando roupas justas e rebolando na pista de dança tanto quanto as fêmeas; enquanto elas, pelo menos nas letras das músicas, se colocam como sexualmente ativas – seja a “cachorra”, que diz tomar a iniciativa de transar com quem quiser, quando quiser, e até ter mais de um namorado; seja a “preparada”, que se apresenta como uma verdadeira enciclopédia sexual. Ambos os comportamentos parecem contrariar frontalmente uma das acusações mais comuns à tribo do funk, de que seria uma manifestação cultural machista, tratando as pobres meninas, pela bilionésima vez, como meros objetos sexuais.

“Dizer que as mulheres são usadas é uma visão ingênua e simplificadora. O raciocínio delas é outro: ‘Eu vim aqui para me dar bem, para escolher e não ser escolhida’”, afirma Glória Diógenes, antropóloga da Universidade Federal do Ceará que estuda o cenário funk carioca há dez anos. A estudante Edileine da Silva, de 18 anos, flagrada em total êxtase na pista de dança, confirma a mesma tese com outras palavras: “Eu venho aqui para curtir, para dançar. E se rolar, rolou…”

“O baile funk é, acima de tudo, uma grande festa: o momento e o local de liberar a agressividade, o erotismo e a adrenalina”, diz Glória, lembrando que a fixação erótica da nova geração de funkeiros do Rio veio amenizar a violência entre gangues que dominava os bailes há alguns anos e, volta e meia, os colocava como palco de assassinatos no noticiário policial. “O fato é que essa agressividade chegou à beira do insuportável. O que houve agora foi um desvio de energia para outro tipo de disputa, o sexo. O foco continua sendo a disputa de território – mas esse território não é mais o salão, ou o bairro, e sim o próprio corpo. O corpo é a arma na guerra do sexo”, afirma Glória.

Mas esse ponto não é pacífico. Uma outra antropóloga especializada na tribo funk, Fátima Cechetto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, enxerga alto teor machista na classificação que os funkeiros fazem dos diferentes tipos femininos: de um lado, as “cachorras”, “potrancas” e “preparadas”, feitas para serem levadas para a cama e descartadas logo em seguida; do outro, as “tchutchucas”, princesinhas para namorar sério e eventualmente casar. A novidade estaria, é claro, em moças como a cantora Tati Quebra-Barraco se assumirem, com todo gosto e convicção, como “cachorras” – ela mesma adotou como sobrenome uma expressão da tribo que significa uma imbatível atleta sexual, a “preparada das preparadas”. As letras de Tati são sexualmente mais explícitas que as de qualquer expoente masculino do funk carioca.

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Mas, para Fátima Cechetto, há também uma enorme distância entre o que se apregoa nas letras e o modo como a moçada se comporta no salão – ou fora dele. “Já vi mais de um tigrão chorando porque levou um fora de uma menina”, diz ela.

A classificação por animais – predadores (o tigre e a cachorra) e suas presas (potrancas e tchutchucas) – não é difícil de interpretar. “Essa é a lógica da liberação: remete ao que há de mais instintivo no ser humano”, afirma Fátima. Mas sua colega Glória Diógenes prefere ver nos mesmos símbolos “arquétipos de jovens que, na verdade, sofrem de baixa auto-estima, por conta da exclusão social. É uma compensação, cheia de charme e energia, para quem vive onde quase não há família nem lei.”

Falta dizer que quem realmente manda na tribo – o cacique e o pajé, por assim dizer – são outras figuras, identificadas por siglas que nada têm a ver com o mundo animal: respectivamente, o MC (ou “Mestre de Cerimônias”), e o DJ (do inglês disc jockey, o “piloto dos discos”). O primeiro é o dono da palavra: aquele que segura o microfone e, além de declamar as letras, comanda em voz alta cada passo da coreografia executada na pista. O segundo é o responsável pela trilha sonora dos bailes, ou pela base musical das canções – na maioria das vezes, uma colagem de trechos de músicas alheias, em vez de uma composição original. Inaugurando esse molde de dupla autosuficiente, o rap americano aboliu cantores e acompanhantes instrumentistas à moda antiga. Foi uma revolução sem precedentes na música pop, ainda que atacada por puristas e tradicionalistas de todas as cores.

Como herdeiro dessa linha, o funk carioca sofre as mesmas acusações – que também poderiam ser rebatidas com um argumento 100% antropológico, sempre lembrado pelo músico inglês Brian Eno. Segundo ele, a visão de que o funk seria artisticamente simplório só faz sentido segundo os padrões da música branca européia, rica em melodia e harmonia, mas ritmicamente pobre em comparação à música de origem africana. Ou seja: bate-estaca é a mãe!

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Para saber mais

Na livraria: O Mundo Funk Carioca, Hermano Vianna, Editora Jorge Zahar, 1997

Na Internet:

https://www.furacao2000.com.br

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mamello@abril.com.br e ja.lemos@abril.com.br

A Máquina Sexual do Dr. Brown

Uma breve história de meio século de epidemia funk

Tem uma cena de cinema especial para quem quer um bom retrato de como nasceu toda essa revolução, na música e no comportamento, que chacoalhou o século XX e continua fazendo estremecer. É a abertura da biografia do grande Jerry Lee Lewis, A Fera do Rock (Great Balls of Fire!). Ainda um moleque de oito ou nove anos, ele espia, em um muquifo de beira de estrada, o baile ancestral de todos os funks, incluindo o carioca – um bando de casais negros pegando fogo ao som do que, naquela época, final dos anos 40, foi batizado rhythm’n’blues. Branquelos como Elvis e Jerry Lee faturaram uma nota preta rebatizando a receita de rock’n’roll – mas a reação foi imediata. Já no final dos anos 50, James Brown preparava a cirurgia que enxugaria o R&B até o osso, criando o funk – palavra cujo equivalente mais próximo em português é “catinga”.

Esse odor orgânico era, claro, elemento integral do suadouro apertado dos velhos salões bisbilhotados pelo jovem Jerry Lee – e o adjetivo funky era usado também, pejorativamente, pelos brancos para dizer que aquilo era “coisa de negro”, enquanto os próprios negões usavam a mesma palavra para elogiar a festa como muito quente, muito sexy. O que James Brown fez foi basicamente transformar todos os instrumentos em percussão, tendo como peça-chave os stabs (literalmente, “facadas”) – acordes de guitarra e do naipe de metais socados isoladamente, como se bate um tambor. Foi o suficiente para o compositor erudito russo Igor Stravinski proclamar que a história da música poderia ser resumida em três Bs: Bach, Beethoven e Brown. Desde então, o baile funk passou por 1 001 mutações – como a discothèque, nos 70, e o hip hop, nos 80, ao qual pertence a vertente chamada Miami Bass Sound, inspiração direta do baticum eletrônico com letras eróticas do novo funk carioca.

Como se vê, a festa continua mais animada e sexy do que nunca – e atraindo a sanha moralista como nos tempos do rhythm’n’blues!

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