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Viva a diferença

Concepções radicalmente novas mudam a forma dos produtos industriais, sejam carros, pias, computadores ou tesouras. O objetivo é ir além do consumidor padrão adulto, destro, nem alto nem baixo e em plena capacidade física e também respeitar as diferenças entre as pessoas

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 31 out 1992, 22h00

Adélia Borges

O empresário norte-americano Sam Farber conseguiu realizar o sonho de muita gente. Depois de 39 anos à frente da Copco, uma empresa de panelas e artigos de cozinha em Nova York, resolveu que era tempo de gozar a vida. Vendeu a companhia por US$ 1,3 milhão e mudou-se para o sul da França, para ser colecionador de arte em tempo integral. Plano perfeito… Só que sua mulher, Betsy, começou a ter dificuldades para cozinhar por causa de uma artrite nas mãos, que a impedia de manusear as facas, colheres e abridores de latas, feitos para pessoas com destreza manual perfeita.

Privar-se do prazer da cozinha afetou o cotidiano do casal e Farber voltou para Nova York determinado a produzir objetos que contemplassem dificuldades como as de Betsy, pressentindo que o problema não estava nela, mas nos produtos. Abriu a empresa Oxo International e encomendou um projeto ao escritório Smart Design. Depois de longos estudos, auxiliados pela Arthritis Foundation e pela geriatra Patricia Moore, os designers chegaram aos Good Grips, uma linha completa de utensílios de cozinha cujo “segredo” é a empunhadura mais grossa que a habitual, feita de santoprene, um material macio e que não escorrega nas mãos. O sucesso foi imediato.

Só na feira de lançamento, em abril de 1990, o Oxo vendeu 750 mil unidades, como descascadores de batatas, tesouras, espremedores de alho, facas. No primeiro ano de comercialização, o faturamento foi de US$ 3,4 milhões.”Os Good Grips são atraentes, divertidos e confortáveis de usar pelas pessoas saudáveis e tornam o ato de cozinhar possível para aquelas que têm deficiências temporárias ou permanentes, ou para as que estão envelhecendo, quando a força, a coordenação e o senso de percepção vão decaindo”, diz o vice-presidente da Smart Design, Tucker Viemeister (ele ganhou esse nome porque seu pai trabalhou no projeto do carro Tucker, um sonho falido do design norte-americano relatado em filme por Francis Ford Coppola).

Viemeister diz que “são os produtos e a arquitetura que definem as deficiências” (em inglês, o termo parece bem menos pesado e discriminatório: disabilities, falta de habilidade). Ele é uma voz dentro de uma corrente crescente no design internacional de objetos, de equipamentos, de edifícios e de áreas urbanas, que advoga prestar muita atenção em problemas específicos de faixas esquecidas para resolver os problemas de todos.

Quem já quebrou o braço ou a perna alguma vez, sabe como é desagradável depender dos outros para atos corriqueiros, e só aí começa a reparar no grau de dificuldade que podem ter atividades que antes se faziam de maneira quase automática. Essas dificuldades “invisíveis”, que poucos percebem, marcam os obstáculos enfrentados pelos canhotos. Quem é destro nem sequer imagina que banalidades do tipo abrir uma lata ou usar uma tesoura exigem muito suor. Produtos que podem ser usados tanto por destros quanto por canhotos têm uma penetração crescente no mercado. Um exemplo é o computador portátil Powerbook Apple/Macintosh. Um de seus diferenciais é ter o mouse posicionado exatamente no meio do teclado com fácil acesso para ambas as mãos.

Esse modelo está estourando em vendas nos Estados Unidos.Uma das questões mais importantes no design para pessoas de idade e hábitos diferentes é a busca de uma estética não discriminatória Num mundo em que os meios de comunicação e a propaganda exaltam o tempo todo o ideal da juventude e do esplendor físico, é difícil desejar produtos que têm “escrito na cara” o fato de serem dirigidos a pessoas “anormais”. “Designs pesados e embaraçosos reforçam sentimentos de isolamento e inadequação das pessoas com deficiências, contribuindo para a sua estigmatização pela sociedade”, escreveu a curadora Cara McCarty no catálogo para a exposição “Design para uma vida independente”, apresentada no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1988. Segundo McCarty, freqüentemente é o equipamento usado pelo deficiente, e não o seu problema, que o deprecia aos olhos dos “normais”, podendo provocar até repulsa. Com sua espontaneidade, as crianças usualmente são a, que mais expressam essa repulsa que os adultos procuram disfarçar.

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Mas a estigmatização é ainda mais dolorosa quando ela é exercida sobre as crianças com problemas, desde cedo acostumadas a se verem, pelos olhos dos outros, como seres diferentes e desprezíveis. A Bissel Healthcare Company, de Michigan, EUA, lançou uma linha infantil que passa ao largo da discriminação. Um dos itens é o Tadpole, um conjunto de peças macias e moldadas usado para exercícios físicos com crianças com paralisia cerebral ou outras disfunções motoras. As peças são feitas de uretano flexível, à prova d’água, durável e retardador de chamas. Fixadas com velcro, podem ser livremente montadas para colocar a criança na posição sentada, deitada ou inclinada. Leve e portátil o Tadpole foi concebido para ser usado por terpeutas que vão de casa em casa para trabalhar com as crianças, mas a simplicidade das formas e a clareza de como elas se agrupam permitem que sejam deixadas nas casas para que os pais continuem a fazer os exercícios com as crianças. O Tadpole ganhou um prêmio nos Estados Unidos no ano passado, e uma das qualidades apontadas pelo júri foi a de não parecer um produto para deficientes e provavelmente atrair a atenção de qualquer criança, fazendo-a querer brincar junto.

Outro exemplo de aparência não discriminatória é a cadeira de rodas New Move, que acaba de ganhar a medalha de ouro no Idea 92, concurso anual da Industrial Design Societies of America, com o apoio da Business Week. O carácter de seu design é menos de um produto institucional e mais de uma “mountain bike”. Além disso, Douglas D. Clarkson, do Art Center College of Desing, da Califórnia, usou componente normais de bicicletas e tubos padrão em vez de peças especialmente manufaturadas, o que torna sua produção extremamente barata. A New Move tem eficiência de 100% na tração, contra a média convencional de 40% ao empurrar uma roda, e atende a um antigo desejo de pessoas com problemas de locomoção. Há uma infinidade de modelos de cadeiras normais disponíveis no mercado e a escolha de uma delas passa por critérios como conforto e preço mas também pelo estilo, levando em conta a preferência de quem as usa — formal? Informal? Pós-moderno? As cadeiras de rodas — que sempre foram mais ou menos iguais, e quase sempre horrorosas — já são usadas para disputar torneios esportivos Já era hora de tê-las também em “estilo esportivo”.

A tendência nos países desenvolvidos é cada vez mais considerar a cadeira de rodas como um veículo pessoal de transporte urbano. Talvez o modelo que tenha ido mais longe neste conceito seja o desenvolvido por médicos e designers suecos para a empresa norte-americana Permobil. Ela é toda voltada para ativar a independência de quem a usa. Através de um joystick igual ao dos video-games instalado no braço da cadeira, o usuário aciona um sistema computadorizado e faz tudo. Coloca-se na posição vertical no meio de uma multidão num jogo de futebol, ou quando quer falar “de igual para igual” com um parceiro de negócios. Coloca-se na posição deitada para descansar. Sentado, aciona um elevador para pegar uma lata de cerveja no alto da prateleira do supermercado. A altura regulável permite adaptar-se às alturas das coisas e não o inverso (mudar a pia da cozinha ou a mesa do escritório). Vai para onde queira: anda na neve, em terrenos com pedras e até sobe morro. O motor elétrico é exatamente silencioso, permitindo, como diz a propaganda, que a pessoa chegue a um concerto depois que ele começou. Para usuários com dificuldade de fala, há o acessório Alpha Writer, através do qual pode escrever sentenças com ligeiros movimentos de mão e mostrá-las numa tela acoplada na cadeira (o sistema também funciona acoplado a um sintetizador de voz ou a uma impressora de computador).

E com modificações na casa, pode torná-la “inteligente”: com o controle remoto, faz chamadas telefônicas, aumenta o som do estéreo e abre ou fecha portas sem ter que se deslocar. “Enfocar a satisfação dos portadores de deficiências é uma forma de garantir a melhoria qualidade ambientar para todos os usuários”, diz o arquiteto mineiro Marcelo Pinto Guimarães. Ele cita exemplos: O espaço adicional para manobrar cadeiras de rodas em pequenos apartamentos assegura que a especulação imobiliária respeite como mínimas as dimensões reais de conforto; barras de apoio para corrimãos em longos corredores ou escadas de poucos degraus são sempre bem acolhidas. Efeito similar se obtém com piso de textura antiderrapante telefones com controle auditivo de volume; ou maçanetas acionadas pelo cotovelo em vez de mãos ocupadas.

Guimarães é uma das maiores autoridades nesse tema no Brasil. Em 1990 concluiu um mestrado na Universidade de Nova York sobre design sem. barreiras. De volta, abriu uma empresa de projetos em arquitetura e design, e de consultaria em qualidade ambiental. Foi consultor do Prêmio Nacional de Design, Pesquisa e Adequação do Mobiliário Urbano à Pessoa Portadora de Deficiências, promovido no ano passado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil — Seção Minas Gerais.Um dos projetos vencedores desse prêmio é um belo exemplar de design universal.

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O estudante Guilherme de Avelar Rosa, de Betim, bolou uma adaptação do tradicional jogo de amarelinha para que as crianças cegas ou que enxerguem mal também possam brincar. Isso é obtido através de sinais sonoros produzidos eletronicamente (uma placa de circuito eletrônico reproduz um bip com sete tonalidades, do grave ao agudo). O jogo propriamente dito é feito de placas de compensado pintada em sete cores diferentes, com números arábicos feitos de lixa colado na superfície, além de números em braile de cabeça redonda fixados na placa. Na justificativa de voto, os jurados do prêmio salientaram que esse projeto estimula a integração entre portadores e não-portadores de deficiências. Qual é a criança com visão normal que não vai querer pisar num “tapete” que emite sons?

O projeto de Avelar Rosa ainda está no papel: os empresários brasileiros consultados por ele não se sensibilizaram com a idéia de produzir para o “diferente”. Não é o que acontece em outros países, como os Estados Unidos. Em reportagem recente sobre design universal, a Business Week, a revista de negócios mais lida em todo o mundo, destacou a banheira Precedence. Atentos ao fato de que o banheiro é um dos locais onde mais acontecem acidentes dentro de uma casa, os designers da Kohler, de Wisconsin, projetaram uma banheira com porta. Nada mal: você entra, acomoda-se num assento dobrável e fecha a porta. Quando a banheira começa a se encher de água, censores inflam automaticamente para impedir vazamentos.

Outra inovação neste campo é o banheiro público Inax, projetado pelo GK Design, de Tóquio. O objetivo foi prover “espaço, conforto e fácil acesso por pessoas com bagagem, com crianças, usando bengalas, velhos, jovens, etc.” Eles desenvolveram quatro modelos: para uso exclusivo feminino, masculino, ambos os sexos e para portadores de deficiências. Mas mesmo os modelos normais prevêem facilidade de utilização para pessoas com diferentes graus de dificuldades físicas e são o que eles chamam de “transgeracionais”, ou seja, servem para diferentes idades. Os japoneses cunharam a expressão silver industry, agora usada no mundo todo, para designar a produção para pessoas com “cabelos prateados” (entre nós, brancos). Os estudos demográficos mostram um aumento da porcentagem de idosos na composição das populações.

A expectativa de vida de seus habitantes é um dos indicadores do grau de desenvolvimento de um país. E os países desenvolvidos estão atentos à necessidade de melhorar a auto-suficiência, mobilidade e qualidade de vida dos velhos. As indústrias também estão de olho no poder aquisitivo dos idosos, em geral superior ao dos jovens, por exemplo. Um dos lançamentos recentes para esse mercado é o Microcar Vessa, inglês, cuja propaganda é toda baseada na autonomia dos idosos. Mais fácil de guiar do que os automóveis normais, extremamente compacto e conversível, o Microcar pode ser usado sob chuva ou sol, no campo e na cidade — inclusive em ambientes internos como os shoppings.

É claro que esse é um privilégio caro, para poucos, mas ele mostra o grau de sofisticação tecnológica que o design de produtos pode alcançar. Mesmo porque o tema do design universal é bem mais amplo — chega à escala da arquitetura ou até do desenho das cidades.

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Muita gente que viaja ao exterior volta com a impressão de que nos países desenvolvidos há mais deficientes que no Brasil. Ledo engano! E que lá eles saem mais, já que as ruas, os veículos de transporte coletivo, os edifícios públicos (museus. restaurantes. escolas) estão mais preparados para recebê-los. É o que diz o sociólogo mineiro Paulo Saturnino Figueiredo, que se surpreendeu ao ouvir nos Estados Unidos que cada dólar investido em projetos para portadores de deficiências gera 10 dólares de imposto. “É a visão capitalista inteligente, porque a pessoa passa a ser produtiva”. Figueiredo usa prótese nas pernas e muletas, dá aulas na Universidade e tem uma vida social intensa, locomovendo-se em Belo Horizonte com sua Parati adaptada. Mas ele acha que teve mais mobilidade quando viveu em cidades européias do que no Brasil, porque aqui não se prevê a circulação de pessoas como ele. Apesar da vontade de sair mais para se divertir, muitas vezes ele fica em casa. Em restaurantes com piso liso e derrapante, ou ainda em desníveis, a única saída para ele se movimentar seria engatinhar. Mas isso seria muito constrangedor para os outros.

Várias prefeituras brasileiras, pressionadas por movimentos de portadores de deficiências, começam a seguir o exemplo do exterior. Nesse caso, acabam ganhando todos os cidadãos. Pisos rebaixados nas calçadas, por exemplo, permitem a circulação de cadeiras de rodas, mas também facilitam a vida das mães que empurram carrinho de bebê, ou de quem sai da feira com o carrinho abarrotado.

Para saber mais:

O gênio das aparências

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(SUPER número 11, ano 4)

O que é design?

Mesmo os povos mais ciosos de sua língua, como os franceses e os japoneses, não encontraram uma tradução à altura para a palavra design. No Brasil, da mesma forma, o mestre Aurélio adota em seu Novíssimo Dicionário a expressão inglesa design e a define como “concepção de um produto ou modelo; planejamento”. A habilidade dos profissionais da área, os designers, vai muito além do mero ato de desenhar. Por exemplo: eles também têm que se preocupar com os materiais empregados num produto. Vejam-se as peças do Tadpole. Como foram feitas para crianças, havia a necessidade de torná-las à prova de água e retardadoras de fogo. Por isso os designers escolheram um bom material com essas características: o uretano, atendia ainda à exigência de ser macio e leve. Isso não tem nada a ver com um simples desenho ou projeto, assim como outras preocupações dos designers. Estes têm que adaptar suas idéias ao métodos produtivos existentes, levando em conta aquilo que as indústrias estão ou não aparelhadas a fazer; têm que analisar se os produtos cumprem sua função da melhor maneira possível; têm que examinar se são fáceis de manusear ou operar; e, por último mas não menos importante, se são bonitos. Isso dá uma idéia sobre esses modernos profissionais, cujo trabalho consiste em imaginar, criar e encontrar meios de construir novos objetos que sirvam ao homem.

Deficiência

Os óculos são uma demonstração viva de como é frágil a percepção das pessoas sobre aquilo que é e o que não é “normal” — pois há muito tempo eles deixaram de ser vistos como “aparelhos para deficientes visuais”, e seus usuários são vistos com toda a naturalidade por qualquer um, em qualquer lugar. Em vez disso, até se transformaram em acessório de moda, do qual existem centenas de modelos charmosos e cobiçáveis. Nada impede que o mesmo ocorra com outros aparelhos, desde que se siga a máxima de que no fundo o que conta é a aparência. Na Alemanha, a Feira de Frankfurt este ano premiou um aparelho para deficientes auditivos cuja parte interna é a mesma dos aparelhos existentes. A novidade é forma externa: divertidas figuras (pessoas, animais) que podem ser trocadas como se fossem brincos. Com esse projeto da designer Katryn Müller, as pessoas não precisarão mais sair às ruas com um aparelho que as rotula como diferentes, no sentido pejorativo.

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